A Sociedade do Cansaço (recensão)

Com A Sociedade do Cansaço (Müdigkeitsgesellschaft, 2010), tradução de Gilda Lopes Encarnação para a Relógio D’Água, 2014, Byung-Chul Han (sul coreano, estudante de metalurgia, formando-se depois em filosofia na velha Alemanha, com um doutoramento sobre Martin Heidegger) veio abanar o meio filosófico alemão (quase medusado pela áurea oceânica de Peter Sloterdijk). Estranha-se que um livro tão curto (60 pp. na tradução portuguesa) tenha tido um impacto tão grande (apesar do autor ser desconhecido, vendeu quase imediatamente 2000 exemplares na Alemanha, está traduzido em várias línguas e tem recensões prolíficas em francês e inglês). Talvez a palavra “cansaço – dentro da tese de Byung-Chul Han de que somos a civilização do cansaço (mau), uma doença, epidémica, sem verdadeiro antídoto – tenha despertado o interesse do grande público.

Porquê? Porque na nossa época (alucinada pela performance, cujo imperativo económico-moral poderia ser: “que as regras da tua conduta sirvam como modelo universal de performatividade!”) não há reais inimigos exteriores.[1] Nas doenças bacterianas, e nas sociedades da disciplina, era preciso combater as bactérias, ou as ordens, nas viroses, os vírus, era a cena tradicional das patologias modernas. Mas na tardomodernidade (aposta da tradutora para postmodern) a imunização já não trabalha com os meios defensivos normais: fechar ou dificultar o acesso da doença e construir anticorpos. Na época bacteriana, os amigos e inimigos estavam claramente definidos, princípio da Guerra Fria e da oposição proletariado/capitalistas. Esta polarização simplista tornou-se anacrónica, o estrangeiro e o estranho já não são inimigos, mas coisas diferentes, e a simples diferença não possibilita reacções imunitárias. Tanto mais que “O paradigma imunológico não é compatível com o processo de globalização.” (p. 12) A verdadeira ameaça não vem agora de outrem, mas do próprio, cheio de positividade, alimentada, e alimentando, uma sobre-produção e uma sobre-comunicação histriónicas, contra às quais, por serem da mesmidade, não se consegue realmente reagir (dinâmica cancerígena). Por excesso de positividade, a revolta tornou-se impossível, gozamos de uma infinita liberdade de escolha para produzir, consumir e comunicar até ao esgotamento, na vaga esperança de “nos realizarmos”. Segundo Byung-Chul Han, a actual omnipresença da performance demonstra o declínio das sociedades da disciplina e da obrigação descritas por Michel Foucault, hoje o sujeito modelo é o sujeito performativo, arredado de qualquer combate por princípios de justiça. Autodefinindo-se dentro dos limites que ele próprio escolheu para agir e ser. Sujeito pós-colectivo, o seu estilo de vida extrema o individualismo. Senhor e escravo de si mesmo, não se submete a ninguém, excepto a si e à ilusão de uma liberdade benigna sem limites. Em boa verdade, esta liberdade é paradoxal porque exige solidão (“o Eu tardomoderno está totalmente isolado”, p. 34), quando para Han a liberdade é sempre a liberdade com os outros. E este paradoxo acaba por manifestar as linhas patológicas do cansaço: “A sociedade de trabalho e de produção não é uma sociedade livre. A dialéctica do amo e do escravo não desemboca, afinal, numa sociedade em que cada homem que seja capaz de se entregar ao ócio é um ser livre. Ela conduz antes a uma sociedade de trabalho em que o próprio amo se tornou escravo do trabalho.” (p. 35) Por outro lado, a ausência de crenças, o despojamento narrativo do mundo, reforça o isolamento e “o sentimento de efemeridade, tornando a vida nua.” (p. 34)

A “sociedade disciplinar” de Foucault (fabricada em instituições como os hospitais, manicómios, prisões, fábricas, escolas...) foi revogada, “A analítica do poder de Foucault já não é capaz de descrever as mudanças psíquicas e topológicas que aconteceram com a transformação da sociedade disciplinar em sociedade de produção.” (p. 19) Na “sociedade disciplinar” dominava o não, uma negatividade que produzia loucos e criminosos. “A sociedade da produção gera, em contrapartida, deprimidos e frustrados.” (p. 20) É por isso que Han relê o Bartleby de Melville para além das interpretações metafísicas ou teológicas (sobretudo Gilles Deleuze em Critique et clinique), realçando o seu fundo patológico: “Esta ‘história de Wall Street’ apresenta-nos um mundo de trabalho desumano, habitado por pessoas reduzidas, todas elas, a animal laborans.” (p. 45) Mas não se pense que este animal tardomoderno entrou, como transparece em algumas leituras de Bartleby (Deleuze, Agambem...), em negação ou passividade (“I would prefer not to”, Bartleby), ele “é dotado de um Ego tão grande que quase transborda. E é tudo menos passivo.” (p. 33) Só que a sua positividade é patológica, alimenta um sem número de doenças neurológicas e aprofunda o individualismo.

Na época da performance, há uma “violência da positividade, resultante da sobre-produção, sobre-rendimento e sobre-comunicação” (p. 14), e “O esgotamento, a fadiga e a sensação de sufoco perante o excesso não são também […] reacções imunológicas.” (p. 15) Sem uma verdadeira auto-reacção, “A comunicação generalizada e a sobre-informação ameaçam todas as defesas do ser humano.” (p. 14) Já não há sequer gestos impulsivos, primitivos, capazes de desenvolver uma destruição redentora, “A dispersão generalizada, marca da sociedade dos nossos dias, não permite que a ênfase ou a energia da fúria emirjam verdadeiramente. A fúria desenvolve a capacidade de interromper um estado e de fazer nascer um estado novo.” (p. 41) Por isso, as doenças neurológicas alastram, o burnout ou a hiperactividade, por exemplo, retratam bem a dispersão e a positividade, “O prefixo hiper da hiperactividade não é uma categoria imunológica. Representa, pura e simplesmente, uma massificação do positivo.” (p. 17) A relação humana com o tempo alterou-se radicalmente, vive-se em multifuncionalismo (multitasking), dispersão e velocidade, mas isto não representa qualquer progresso civilizacional, “O multifuncionalismo é, com efeito, amplamente praticado pelos animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável à sobrevivência dos animais na selva.” (p. 25)

Han foca-se no mundo do trabalho, na vita activa do homo laborans (convocando e desviando-se de Hannah Arendt), este mundo impõe a violência da positividade que forma a nossa interioridade. A sociedade disciplinar, com excesso de regras e fronteiras, de negatividade, foi substituída pela da performance, do sucesso individual, onde cada um se condiciona a si mesmo, na lógica do empreendedor singular. A motivação pessoal, o espírito de iniciativa e a responsabilidade pessoal são agora a linhas de orientação desta sociedade atomizada e sobre-positiva. A negatividade do “dever” foi substituída pela positividade do “poder fazer”, sintetizada no slogan de Obama: “Yes we can!”. As pessoas já não são exploradas por patrões ou instituições, exploram-se a elas mesmas, tornando-se simultaneamente senhores e escravos. Estamos em guerra contra nós mesmos, uma guerra que desemboca num cansaço estéril.

Contra esta vita activa, suicidária, Han elogia a vita contemplativa, o tempo gasto gratuitamente. Por falta de contemplação e de repouso, a nossa civilização dirige-se para uma nova barbárie, a sociedade da performance é patológica. E esta mudança de paradigma acontece de forma invisível, a sociedade da negatividade cede quase secretamente o seu lugar a uma sociedade que tem excesso de positividade, com as suas doenças neuronais, como a depressão, o défice de atenção/hiperactividade ou o burnout. Não se trata, como disse, de nenhuma infecção vinda do exterior, mas de um enfarte da alma, devido a um excesso de positividade. Por isso escapa a qualquer profilaxia imunológica.

No último capítulo, “A sociedade do cansaço”, relativamente redentor, Byung-Chul Han refere que “Enquanto sociedade activa, a sociedade da produção evolui progressivamente para uma sociedade do doping.” (51) Um doping que entretanto foi traduzido pela expressão mais aceitável de neuro-enhancement, e que todos aceitam desde que permita mais rendimento no trabalho, com a única preocupação de se garantir uma certa equidade no acesso a esses fármacos para que isto degenere numa concorrência farmacêutica sem controlo. Mas este produtivismo pobre em negatividade “produz um cansaço e esgotamento excessivos.” (52) Cansaço patológico, porque individualiza, “separa e isola”. Cansaço violento, porque “destrói tudo o que possa haver em comum, tudo o que se possa fazer em conjunto, aniquilando qualquer proximidade e a própria linguagem”. (52)

De onde vem, pois, a “redenção” de que falámos há pouco? Byung-Chul Han remete-nos para Peter Handke e o seu Versuch über die Müdigkeit (1992), onde se  fala de “cansaço alienante” mas também de um bom cansaço, iluminante (que, aliás, ocupa grande parte deste capítulo, como se Han quisesse terminar com uma nota conciliadora), que dá a ver e a pensar, que se situa entre, favorecendo por isso a coexistência. É, diz Han, um “cansaço que habilita o homem para uma serenidade especial, para um não-fazer sereno.” (54) Pelo contrário, “O cansaço associado ao esgotamento é um cansaço da potência positiva. Torna o homem incapaz de fazer alguma coisa.” (55) O cansaço associado ao esgotamento potencia a acção na comunhão, impulsiona para a realização de alguma coisa: “O cansaço de Handke não é o cansaço do Eu esgotado, do Eu exausto […], Handke concebe uma religião imanente do cansaço.” (pp. 55-56)

Vem talvez a propósito convocar Fernando Pessoa e o seu Cansaço, do metrónomo modernista Álvaro de Campos: “O que há em mim é sobretudo cansaço – / Não disto nem daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada: / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço. […]” Antevisão do cansaço do “Eu esgotado” de Byung-Chul Han, mas que a mim sempre me insuflou uma melancolia produtiva.

 

[1] Alain Ehrenberg em La fatigue d’être soi. Dépression et société, 1998, defendia, num tom mais sócio-psicanalítico, que o cansaço provinha da obrigação de se ser si mesmo, de uma realização pessoal assumindo aquilo que se é, tarefa muito mais exigente do que a da velha obediência e respeito pelos interditos, onde a identidade se construía essencialmente pelo género, a classe social e o grupo profissional. Tudo isto enquadrado pelas lógicas disciplinares e de autoridade. Mas Ehrenberg avançava já com o mito do empreendedorismo, com poucos vencedores e muitos vencidos, sem nenhum exterior para responsabilizar, o falhanço na idade neoliberal deve-se exclusivamente a quem tentou mal ou não tentou, em vez de agressividade social fica-se com a vergonha de si mesmo. Tudo isto, diz Ehrenberg, aumenta exponencialmente os distúrbios de personalidade. 

Do vigor irremediável da presença nómada

Texto de apresentação de Supertubos de Hugo Milhanas Machado, lido no dia do seu lançamento, 7 de Fevereiro de 2016, no Bar Irreal, Lisboa

0- Ao mesmo tempo que Hugo Milhanas Machado revê os marcadores ontológicos que povoam o mundo, faz emergir novíssimas possibilidades de sentido, a presença em vez da evanescência (ao contrário de Derrida, mais versado em “palavras nuas” ou “mitologia branca”). Tudo jogado em palimpsestos rústicos que nunca ganham a forma definitiva de uma inteligibilidade dominante, capazes, pois, de conjurar os velhos demónios da totalidade.

1- Supertubos é o mapa de uma viagem poética de 10 anos, tendo em conta a idade de Milhanas Machado, é o livro da sua vida adulta. Estranhamente coerente no estilo, pela aposta na desconstrução (que palavra tão gasta e tão ignorada) das regulações sintácticas. É como se buscasse uma para-sintaxe, refrescando os sentidos básicos que nos ligam ao mundo e a nós mesmos. Milhanas Machado reconsidera o óbvio pela dislexia calculada, mas nem sempre controlada, que introduz no estrato sintagmático do discurso.

1.1- A sua poesia é simultaneamente muito difícil e fácil, depende do ângulo de ataque. Podemos permanecer na sua musicalidade, dissonante, e deixar-nos envolver pelas palavras que conhecemos de uma longa tradição do léxico poético português (corpo, noite, viagem, céu, estrela, amigo, dança, amor, anjo, mar, praia, paisagem, café, sol, escuro, nevoeiro, barco, mundo, terra...). Mas se praticarmos uma leitura estética, então somos sacudidos por todos os lados, nada é suficientemente estável para repousarmos sequer um pouco numa eira de sentido já constituído, tudo é sempre outra coisa pelas possibilidades que se abrem logo na origem de cada fulguração (“Há aquele braço nas pedras / de colo parado da paisagem /quando é voz percebemos quase corpo / e agasalha se tornar a escutar”).

O espelho que reflecte esta arte poética é um “espelho torto”, talvez por isso tudo deva ser dito e lido circulando, seguindo o que Nietzsche escreveu sobre os benefícios do caos e das caminhadas.

2- Esboçará Supertubos uma poética do eu? De um eu, tantas vezes anjo e marinheiro, de um eu situado nos interstícios do descobridor que naufraga, que só porque fraqueja pode avistar ou inventar a praia onde repousar e beber um cocktail sentado na “areia maluca”. Mas ao mesmo tempo, talvez nunca um livro de poesia tenha tido tantos nomes de pessoas: zés, carlos, alfredos, paulos, vascos..., como se Milhanas Machado quisesse compensar o estilhaçamento do eu com processos tangíveis, carregados de história, de subjectivação.

Em marcha com “letra marinheira” rasga o invólucro frágil onde se guardam os antropónimos que fizeram a felicidade dos notários. Lacera também a gramática das vias terrestres GPScizadas, lineares e enfadonhas. Uma loucura controlada que se manifesta quase sempre através de ritmos dionisíacos recompõe a língua para atingir arqueologicamente as partículas que compõem os horizontes de sentido mais comuns.

Muitos vezes, Milhanas Machado abre espaços amplos, a que se chama por comodismo linguístico paisagens, onde o corpo se perde e se ganha, se dilui em algo mais vasto do que ele, ao mesmo tempo que se concentra furiosamente no único ponto certo, e cego, de si: pulsar, pulsar sem descanso. Certeza arrogante que talvez a paisagem não aceite manter.

3- Milhanas Machado desenha também uma indústria poética, uma “fábrica do gosto” que vai parindo palavras ligadas por fios de Ariadne electrificados. O caos, dizia Deleuze, não é a desordem, mas a velocidade infinita, é isso que nos choca, sem redenção possível. E na poesia de Milhanas Machado temos arranques bruscos, de corrida de bicicletas em perseguição por “caminhos anavalhados”, prontos a esfolhar e partir o corpo-ciclista, como se houvesse pressa em ir a tantos sítios quantos os que fazem e desfazem o absurdo, tudo “rumo ao futuro”. Porque ficamos “escangalhados sempre repousamos”, daí que não devamos passar de “campistas” ou ultrapassar a “babugem do clarão”.

4- Poética da desconstrução, as parcerias não duram nem na “sueca”. Foi a recuperação de linhas de memória escondidas nos batimentos da vida quotidiana que permitiram a Milhanas Machado ver, cheirar e tocar tanta coisa banal e fazer disso uma “vida jeitosa”. Uma banalidade que preenche biografias felizes e se eleva, com a força da metamorfose que acompanha a arte, até ao andar da cultura erudita. Numa espécie de homenagem metafísica, Milhanas Machado vai tricotando poemas com esse fio de vida passada. Trata-se, antes de mais, de feitiço, pegar nas coisas e repô-las em palavras, eterno retorno embruxado. Tanto mais que “dizemos por empréstimo”, pedir emprestado a outras vidas e a outros tempos para que a nossa se mantenha de pé, ora num pé ora noutro.

5- O amor acontece na dentada de um anzol. A corte faz-se como se pesca. Junto às rochas. A aventura pode ser miúda, como o peixe. Mas dará para a caldeirada.

6- Milhanas Machado reincide ao trazer a oralidade para a escrita divina da poesia, apontamentos de luz (em claro-obscuro: um brilho turvo de “fogueira de noite”, “alumiando um pouco diante do corpo”) despejados no caleidoscópio vital que recupera de uma memória descomplexada e prolífica. Tudo misturado com sons, muitos sons, imagens e por vezes cheiros, esbatidos por um tempo que oscila entre a eternidade e o instante. Talvez cada instante contenha a eternidade, não é preciso somá-los à força de máquinas de calcular para chegar aos números imensos, haver uma aproximação assíntota ao que dura desde sempre e para sempre. Mas também o instante carece de substancialidade, tudo se vai “esfrangalhando”.

7- Estrelas fora de nós e mar dentro de nós, para glosar, com deslizes, o grande/pequeno immanuel Kant. Pontos cardeais de Hugo Milhanas, ligados pelo voo incerto da linguagem e vividos num corpo inteiro, às vezes de anjo, não belo mas ferido, rasgado, demonstrando que vive acima da crença anódina das figuras de cera poéticas. Milhanas Machado encosta-se ao leitor e aponta um rumo, mas não o deixa tomar o leme, sugere linhas hermenêuticas vagas, desfralda uma ou outra vela, sopra o quente e o frio, sempre de través para evitar bolinar. Gostamos dele, como de um amigo, gostamos e antipatizamos, como a flecha que sai do arco.

8- É preciso “ver torto” e ler torto, são poemas em movimento, “mexem bastante”. Não nos levarão à “terra do nosso regresso”. Como podemos fiar-nos num verso que diz “sopra tão limpo cruel o fabuloso”? Mesmo com “pés gigantes e bronzeados”. Talvez as frases sirvam apenas de contraste ao “silêncio crepuscular”, o corpo é que tem de se bambolear à procura de um equilíbrio que evite uma e outra vez quedas na calçada, isto até chegar ao baloiçamento do barco (ou à biomecânica do ciclista em dia de montanha), mar a toda a volta, por cima e por baixo, esse mar infinito sem fronteiras que interrompam o viajante. Obliquemos e naveguemos pela vida fora!

A Voz

Portugal é um país luminoso, todos o dizem com orgulho. E mesmo que uma modéstia santa nos proibisse qualquer sobranceria, as estatísticas meteorológicas confirmariam esta ideia.

Todavia, por vezes deslizamos para o lodo metafórico, sem nunca termos tido um movimento surrealista empenhado em misturar linguística e húmus. Aliás, para João Gaspar Simões, por exemplo, na poesia de Mário de Cesariny ou de Alexandre O’Neill “há até mais lirismo do que surrealismo”. 

Talvez seja isso mesmo, somos mais líricos do que surreais, que tomado à letra significa “sobre-reais”, isto é, ainda mais realistas do que os pragmatistas que fazem contas à vida. O “Zumbe uma mosca, incerta e mínima...” de Vicente Guedes/Bernardo Soares é mais do nosso gosto do que “Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos / frente ao precipício / e cair verticalmente no vício” de Cesariny. Mesmo se o segundo tem ainda um fio de moral, distante, pois, do espírito dadaísta, percebe-se que “cair verticalmente no vício” traduz uma realidade mais real, surreal, do que o zumbido de uma simples mosca.

Explicações, vãs, como quase sempre.

De uma ou de outra forma, Portugal acabou, cheio de luz, na Quinta. Ela é mais do que um epifenómeno, já que representa o veio profundo que nos liga a qualquer coisa de misterioso. Mistério lírico mais do que surreal, cheio como está de senso comum e de dispositivos, linguísticos e não linguísticos, relacionados com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, esbatidas pela força das marteladas teológicas e um vago revivalismo de um New Age distópico recuperado do 1984 de George Orwell.

Confirmem-se as expressões: uma “Voz” que dita novas tábuas da lei, um “pastor” que “escolhe” e “decide”, tentativas de agressão, consequentes com o aquecimento dos ânimos (imaginem que ao seu aquecimento sobrevinha a ponderação e a urbanidade...), para depois a magnânima Teresa, empreendedora sagaz devido à simplicidade unidimensional com que entende e vive no mundo, e novamente a “Voz” (vou revelar um segredo: a “Voz” sou eu) fazerem, em directo, uma “dupla chamada à razão”, espécie de Call to Reason sem mediações, aos impulsivos assassinos que habitam a Vila Balzac, sem livros nem Ega. Depois de tudo, como sempre em teologia barata, lá conseguiram levar o monstro desregulado para o “confessionário”.

No final, parece que alguém foi "nomeado", pelo que se vai sussurrando, espera-o algo de terrível, mas o pior está reservado para nós.

A Leitura para Schopenhauer

Artur Schopenhauer em Parerga und Paralipomema desconstrói muitos dos "bons comportamentos" ocidentais, um em particular chamou há muito a minha atenção: a leitura.

 “A leitura é um simples sucedâneo do pensamento pessoal... Ler é pensar com a cabeça de um outro em vez da sua... O meio mais seguro para não ter qualquer ideia pessoal é pegar num livro logo que se tem um minuto livre. Esta é a razão pela qual a erudição torna a maior parte dos homens ainda mais ininteligentes e estúpidos do que são naturalmente...”

Esta observação resistiu com relativa facilidade à erosão temporal, não sendo uma ideia totalmente vulgarizada, tens muitos seguidores, fica bem um certo olhar snob acerca das virtudes da leitura, sobretudo depois de chocarmos com capas barrocas adornadas por títulos "apelativos" em muitos metros quadrados de prateleiras das livrarias portuguesas.

Pensam que foi por isto que ilustrei este apontamento com Marilyn Monroe? Enganam-se, neste caso quis somente embelezar o que acabo de escrever. 

Elogio da moderação e do feminino

Votos simples de bem-aventurado 2016, a parcimónia evita a chatice da ambiguidade.

I

Digamo-lo desde já: a moderação é uma forma de elegância. Intelectual e física, quem é moderado pensa, fala e age de maneira distinta do fanático, histriónico e grosseiro. Refiro-me, bem entendido, ao fanatismo religioso, mas também ao espírito do tempo baseado no consumismo, apesar da prosperidade actual (nunca os humanos tiveram tanto “poder de compra”, expressão que nos fará corar de vergonha dentro de algumas décadas), o sistema consumista tornou os humanos seres impacientes sem redenção. Procurar a felicidade através do consumo é como encher de água um tanque furado. Recuperando a ética aristotélica, vejo na moderação uma tranquilidade e um contentamento que resulta da saciedade provocada pela satisfação genuína com aquilo que se tem e se é (um ser-se em permanente transfiguração). A moderação aponta para o justo valor das coisas, a sobriedade voluntária cura a ansiedade que o desejo de acumulação, coisas supérfluas em geral, alimenta, libertando o humano para o bom prazer, a afirmação inovadora, a descoberta da beleza, a solidariedade dentro e fora da sua espécie. Um novo tipo de hedonismo que se afasta da moderação estóica, como quando Séneca diz: “Prefiro moderar as minhas alegrias do que reprimir os meus sofrimentos.” (Da Vida Feliz).

II

O lúcido texto de Tatiana Faia sobre a lei do piropo revela o libidinismo sexista que preenche muita mente pacóvia e, sobretudo, uma tradição machista que se manterá mesmo depois de se esvanecerem, por medo, os “piropos” de rua. É injusto que o feminino continue a ser esmagadoramente e constantemente subordinado, quando devia ser celebrado, elevado, pelo menos, à condição de igualdade com o masculino. Basta ver como na adversidade e na precariedade o feminino é superior ao masculino, nas sociedades mais e menos complexas. Ele está vocacionado para proteger em vez de destruir, perseverar em vez de resignar, amar em vez de odiar. Além disso, é mais belo.

Não um “belo como esplendor da verdade” (Platão) ou símbolo do bem moral (Kant, ligeiro desvio da também sua universalização da beleza desprovida de conceitos ou finalidades), menos ainda traçado a escopo a partir do pin-up model ou assente na ideia de “bizarro” de Baudelaire (“O belo é sempre bizarro”), ainda que, refere o poeta francês, um bizarro ingénuo, involuntário e inconsciente. Talvez tenhamos de regressar à beleza clássica, canónica, capaz agora de superar a banalidade para onde foi despejada por séculos de má repetição (imitar sem acrescentar). Um cânone que incorpore a irregularidade ou a discordância, como defendia Francis Bacon (“There is no excellent beauty that hath not some strangeness in the proportion”), onde, aliás, o autor de Les fleurs du mal se inspirou.

Mas talvez o significado de beleza mais adequado ao que disse sobre o feminino esteja em Stendhal: “La beauté n’est que la promesse de bonheur” (a beleza não é mais do que a promessa de felicidade).[1] Um “impulso para” firmado no comprometimento de que pela beleza emerge um mundo novo de felicidade sem apocalipse. Assim se compreende que Nietzsche tenha citado Stendhal contra Kant e Schopenhauer (Para a Genealogia da Moral), tenha confirmado que na beleza existe a possibilidade de uma felicidade ateia, materialista, ancorada neste mundo, na Terra. Uma felicidade que se busca num work in progress em vez de numa elevação miraculosa em direcção ao para lá deste mundo.

Que o feminino, o eterno feminino (Goethe), seja a beleza, e por ela a promessa de uma felicidade sóbria, inscrita sem astúcias na vida das coisas e dos seres. Bela como queria Racine: “[…] Belle, sans ornement, dans le simple appareil / D’une beauté qu’on vient d’arracher au sommeil […]” (Bela, sem ornamentos, no simples aparelho / De uma beleza que acabamos de arrancar ao sono; Britannicus, II).

 

[1] Proust, para retirar ainda mais a substancialidade à beleza, atacou esta palavra “promessa”, diz em “La Prisonnière” (À la recherche du temps perdu), depois de citar Stendhal, que o prazer pode ser um começo da beleza (“On dit que la beauté est une promesse de bonheur. Inversement la possibilité du plaisir peut être un commencement de beauté”)