Dormir no sofá

Sento-me no sofá e adormeço. Não sei quanto tempo, mas acordo com a tua chegada. Vejo que trazes o cabelo molhado e uma frustração nos ombros.

“Está a chover?”

Dizes-me que acabei de fazer a pergunta mais estúpida de sempre. Levanto-me e trago-te uma toalha. Secas o cabelo e despes-te. Encosto a boca ao teu mamilo, mas tu empurras-me. Sento-me novamente no sofá e adormeço.

Acordas-me para jantar. Fizeste ovos mexidos com cogumelos. Sentamo-nos e jantamos em silêncio. Coloco os cogumelos na borda do prato, não gosto e tu sabes disso. Estás estranha, não sei o que se passa contigo, alguma coisa se passa, alguma coisa se passa há muito tempo, mas tu não vais dizer, nunca me dizes nada.

“Come o resto, já estou cheio.”

Olhas-me com desprezo, volto ao sofá e adormeço. Acordo com a luz banca do dia que começa a nascer. Vou ao quarto e vejo-te deitada, a dormir completamente nua. Tens uma revista em cima da minha almofada e um fio de baba a escorrer da boca. Grito até te acordar. Assustada, perguntas-me o que tenho.

“Acho que precisamos de um gato.”

Não compreendes o que estou a dizer, dás um estalo com a língua no céu-da-boca.

“Vou à casa-de-banho.”

Deixas-me sozinho no quarto. Olho a cama vazia, os lençóis brancos e a puta da revista no meu lugar. Tudo isto me parece absurdo e incompreensível. Regressas com os olhos vermelhos e dizes:

“Quando foi que isto nos aconteceu?”

“Quando começaste a babar-te na cama.”

A minha gargalhada é imediata e exagerada. Continuas espantada com o meu comportamento, abanas a cabeça. Coço o pé até fazer sangue e tu nada fazes para me impedir.

“Não sentes uma angústia muito grande pelo nosso falhanço?”

“Vai dormir, Teresa. O teu mal é sono.”

Volto ao sofá e esfrego a ferida em álcool. Sabe bem.

Os centauros

Viol e Forey são dois reformados que passam a tarde a conversar com uma réplica de um cérebro humano nas mãos. Vão-no dissecando, à medida que conversam sobre cavalos. Têm ambos uma inusitada paixão por estes animais. Nunca montaram, nem pretendem montar (agora já é tarde para todos os triunfos e coragens), nunca tiveram qualquer relação de óbvia proximidade com este ou até com outros animais, mas há algo neles que os leva a pensar insistentemente na figura equina e a discutir, através de uma imensa rede de coincidências declaradas, a razão daquela consanguinidade mental.

O processo repete-se diariamente (ora na casa de Viol, ora na casa de Forey) e a conversa, ainda que parta sempre de ângulos tão digressivos como experimentais, não ilude o destino, nem alivia a incessante constatação do resultado: por volta das cinco da tarde, sempre com a réplica do cérebro na mão, os dois amigos atingem o hipocampo. O hipocampo é o quartel-general da memória, essa delicada zona cerebral que lembra, pelos seus contornos curvos e vagamente sensuais, um cavalo-marinho, um hippocampus. A partir daqui a coisa complica-se. Os dois amigos sofrem subitamente um surto de estranheza galopante, a conversa seca e instala-se um tédio confuso semelhante à bruma da Irlanda. Despedem-se então cordialmente e regressam à sua vida normal.

Sequestro

Um pouco por toda a sala o desejo é o mesmo. Fala-se porque é preciso iludir. Criam-se narrativas atrás de narrativas. Há sempre alguém que recorre às suas habilidades para entreter. E nós precisamos de paliativos sinceros, de gente que suba ao palco e nos conte histórias, porque as histórias são as benzodiazepinas de deus.

Os malditos sequestradores também se divertem. Usam e abusam do seu violento protagonismo. Sobem ao palco e fomentam a indisciplina. Há noites de sexo ao vivo e circo errático e inconsequente com as mais perfeitas esposas do reino. Somos todos obrigados a aplaudir.

Houve quem congeminasse, nos tempos mortos, em segredo, e até preparasse um plano de revolução mais ou menos exequível. Houve quem doasse um braço, um olho, uma vértebra, um pedaço importante do seu pudor e do seu perfil, só para evitar ver o seu filho sofrer.

A verdade é que o tempo passa e os resultados não são visíveis. Fala-se que o próximo passo é tentarmos a amizade com eles. Mas as baixas diárias não deixam sequer o melhor dos nossos actores intervir. Estamos todos intoxicados pela descrença

Correspondências

L. acordou a meio da noite com os tentáculos da finitude à volta do seu pescoço de alabastro. Um pequeno hotel da área metropolitana ficou sem luz a partir das 3:45 da manhã. O gene responsável pela doença de K. subiu ao poder à mesma hora dentro corpo de H.

L. acendeu a luz do quarto. E deu conta da velocidade da sua respiração. Foram feitas 7 chamadas em vão provenientes do Hotel para a companhia de electricidade nacional. O gerente também foi avisado. O gene responsável pela doença de K. decretou a sua primeira resolução: dissolver totalmente o fígado de H. A notícia tinha chegado ao ouvidos do fígado de H. e este começava a ficar alarmado.

L. observou a sonolência de tudo quanto estava no quarto. O mundo era o mesmo de sempre e mantinha-se plano e inevitável. O quarto de L. estava pousado no mesmo lugar. O gerente do hotel tomou um duche à pressa e cortou-se enquanto se barbeava. Depois meteu-se no carro e dirigiu-se a toda a velocidade para o hotel pela grande circular. A chuva caía com indiferença por todo o lado. O sistema imunológico de H reuniu-se de emergência. Em cima da mesa de trabalho havia uma guerra declarada. Os anticorpos vestiram os seus uniformes, carregaram as suas armas.

L. verificou que o tempo também estava pousado no mesmo lugar. Os objectos fingiam adorar a eterna inacção. A casa estava dissolvida no silêncio sujo da cidade. E o marido roncava ao seu lado, perdido na obesidade das suas prostrações habituais. O gerente entrou ofegante pela porta principal do hotel com uma lanterna na mão. Gritou com o funcionário de serviço e com um gesto violento arrancou-lhe o crachá. Dois turistas estrangeiros comiam uma sanduíche de carne assada apeados junto à recepção. Um pequeno gerador iluminava uma grande planta ornamental. Os anticorpos do corpo de H estavam desmotivados. Foram acordados a meio da noite, não tinham grandes reservas, o fígado estava velho e não cooperava, mas ainda assim partiram para a frente de batalha. Quando se aperceberam da dimensão da ameaça muitos deram a volta e foram descansar.

L. apagou a luz e voltou a adormecer. O hotel reencontrou a esperança 5 horas mais tarde. H. faleceu aos 48 anos.

Vai ferir noutra parte

Ainda sonho. Contou ao amigo. Ainda tenho sonhos por realizar. O amigo descascava uma laranja. Desejo encontrar uma mulher que me ame a valer. O amigo cuspiu os caroços da laranja e perguntou se nos Açores não existiam mulheres que lhe interessassem. Nenhuma me prendeu. O amigo apelidou-o de saudosista, disse tens saudades daquilo que não viveste, aproveita o presente. Quero ter um filho. Fez-se silêncio durante um bom bocado. Quem me dera apaixonar-me por uma mulher e engravidá-la. O amigo espreguiçou-se, calçou as botas enlameadas, saiu à rua e voltou com uma caixa metálica. Aqui estão as nossas poupanças, disse, leva-as contigo para a civilização, púbere companheiro, o dinheiro não me fez, nem me fará feliz, talvez te ajude a realizar o sonho, a comprar uma mulher. Atirou-lhe as notas à cara e sentou-se carrancudo. Fizeram as pazes com uma garrafa de bagaço e umas trocas de murros. Cada animal brinca como sabe e aqueles dois brincavam aos bêbedos pugilistas, cuspindo sangue, trocando abraços a saberem a sovaco. Ainda sonho com o amor de uma mulher, murmurava, enquanto enchia o oceano de urina, e idealizava essa mulher enquanto perseguia o amigo que lhe urinara nas calças. Os dois mergulharam no mar da meia-noite. Mijaste-me em cima, charuto de picar. Gargalhadas no escuro e o vento soprando forte. Amigos para sempre. Mulheres para quê se nos temos um ao outro, se ter um amigo a sério é melhor do que chorar pelos carinhos de uma mulher? Vamos caçar uma baleia. A esta hora. Que baleia? Uma baleia gorducha, no bar. Uma açoreana de bigode. Dormimos os dois com a gorda. Entraram cambaleantes no bar de alterne e pegaram na mulher mais anafada e feia que encontraram. Encheram-na de notas, despejaram-lhe as poupanças em cima, com bagaço e sémen à mistura, e riram, riram, que se danem o dinheiro e as mulheres, somos felizes assim. A gorda apaixonou-se pelos dois e chorou tanto ao vê-los partir que quase afundou a ilha. É a primeira vez que vejo duas bestas destas, dois garranos. Os amigos dormiram agarrados como irmãos que eram e no dia seguinte acordaram cheios de vontade de fazer tudo outra vez, e então voltaram à praia e correram e nadaram nus e pegaram na gorducha e entregaram-se de corpo e alma ao prazer. Engravidaram a gorda, que teve os filhos sem saber quem era o pai. A criança tinha dois pais e uma mãe e assim seria até à morte. A gorda emagreceu, ficou graciosa com os anos, ser amada por dois homens fazia-lhe bem. Ter duas pessoas é como estar no meio do mar, sendo arrastada para a frente e para trás, mantendo o domínio e simultaneamente sentindo a força, pensava, amestrei dois cavalos e perco-me nas ondas. Um dos amigos levantou-se numa madrugada enevoada e entrou sozinho no mar, repetia ainda sonho, afundava-se e dizia que ainda se lembrava do verão com a menina morena e morreu.