Capitão macaco e professor gorila

O capitão macaco jurou que arrastaria pelos artelhos quem se lhe atrevesse a dirigir um sussurro que fosse, não estava para queixumes, apetecia-lhe emborcar copo e mais copo e mais copo e mais copo até esgotar o vinho e bater com a testa desmaiada na mesa, e depois ser levado por duas bailarinas que inspirassem desejos carnais, duas mulheres que pudesse sufocar para aplacar a dor. Silêncio, bradou de copo erguido e brindou aos mortos. Os homens que o rodeavam não se atreviam a contestar as suas ordens, bebericavam calados, carpiam para dentro, não exteriorizando qualquer emoção que quebrasse os traços marmóreos exigidos a sanguinários batidos. Ninguém acatava de ânimo leve as ordens do capitão macaco mas o medo era mais forte do que qualquer vontade de rebelião. O tratamento a bordoadas com barra de ferro recebido pelo (outrora belo mas no presente desfigurado) mestre orangotango servia de exemplo a qualquer sacana que decidisse contrariar as vontades do capitão.  O professor gorila, apelidado de boçal por possuir uma capacidade de raciocínio diminuta e um crânio do tamanho de uma laranja grande, nunca largava a sua navalha da sorte. Com ela degolara um não acabar de homens. Uma das suas ambições era passar o metal pelo pescoço do capitão macaco e acabar com a tirania, mas esperava pelo dia certo e o dia certo nunca chegava, porque o dia certo seria aquele em que o macaco parecesse doente ou enfraquecido e isso nunca acontecia. Mesmo a cair de bêbedo, o macaco dava ares de conseguir dar cabo dos seus capangas com duas ou três braçadas. O capitão disse caluda e ao silêncio sucedeu-se um silêncio ainda maior. Tinham morrido cinco dos seus homens no dia anterior e o macaco não suportava o aperto no peito. Cinco almas rijas tragadas pela vaidade. Para aprender que conquistar uma mulher à força nem sempre era tarefa fácil. Ouviram, lorpas? Não voltaremos a entrar desarmados em casa de mulher nenhuma. Puta que se arme em esperta leva logo com um tiro na têmpora, é atirar para matar, e se formos obrigados a satisfazer-nos depois de matá-las, que seja, mais nenhuma vaca mata um homem meu. O capitão macaco desmaiou de tanto beber, o que deu alento ao professor gorila, que de pezinhos de lã e cheio de coragem se foi aproximando, aproximando. O professor gorila tinha uma navalha e orgulhava-se de ser o único dos homens do capitão macaco que matava sem recorrer a armas de fogo. O mestre orangotango tapou os olhos com as mãos. Os outros saíram a correr. O professor gorila encostou a navalha ao pescoço do capitão macaco e este, mal sentiu o frio metal no pescoço, ainda tentou estraçalhar o seu assassino. O professor gorila roubou a coroa ao capitão macaco. O seu reinado durou uma hora. 

AJC

Era das mãos calejadas do enrugado gigante que nasciam as açucaradas cores de laranja, os ácidos amarelos e os mais diversificados tons de saudável verde. Os seus fortes braços, como os longos e mais velhos ramos de uma árvore centenária, transportavam com a ajuda do largo tronco os cestos com recheios de cor para vender. Dizia ele ao rapazinho que as fazia crescer das árvores, e a cada domingo aparecia com as vivas cores no mercado de Foros de Amora. A quem as vendia desejava um bom dia; a mim pedia que as saboreasse. Como criança que era não pude entender o verdadeiro sentido deste enigmático ritual colorido, colhia apenas, abrigado sob a sua copa, o que 
generosamente me estendia.

O vermelho

James Dean e Sal Mineo, Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, 1955

James Dean e Sal Mineo, Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, 1955

 

Telefonaram-me. A bateria do telefone acabou assim que atendi. Não chegámos a trocar uma palavra, é bem possível que nunca venha a saber quem era. Vim a correr até cá fora mas percebi logo que já não ia a tempo. Fiquei parada de telefone na mão no meio da trupe dos alunos com os seus chapéus de chuva escuros recortados contra as paredes de pedra amarela, parados no pátio, estonteados debaixo da água com os primeiros candeeiros a acender-se. Como acordar a meio do sono e perceber que há um estranho à espera no quarto. Procuro no bolso do casaco. Já que estou cá fora posso fumar. A intendente vai vir e gritar comigo. Ela já conhece a minha cara. Digamos que houve um incidente envolvendo uma banana há uns meses, ela nunca mais se esqueceu. Eu a morder a banana e ela, pálida, de cabelos brancos, dentes amarelos, com um casaquinho de malha cor-de-rosa, aos gritos: “Are you out of your mind, are you out of your mind? We will have rats, RATS, everywhere!” Os olhos raiados de vermelho, uma ratazana acenando-me com uma patinha e um sorriso colgate, entre o discretamente convidativo e o possivelmente lascivo. Eu não sabia nada de ratos e pareceu-me demasiado azar ter uma multidão de gente a olhar para mim de banana em punho, eu que geralmente sou uma criatura de maçãs. Nada de falocentrismo. Deus nos livrasse disso. O obelisco no jardim virando-me as costas com ar insuspeito depois de meses de cumplicidade. Os atletas dos registos de vasos gregos uma iluminação fogaz e breve. Geométricos demais. Aqui nem corpo nem comida. É proibido falar, comer, beber e fumar. Nada disto tem que ver com corpos a respirar, muito menos com beleza. É só mais um numa ronda de trabalhos mal pagos. Começo a esquecer-me de como é ser completamente livre, uma questão muito mais séria, mas geralmente mais subvalorizada, do que a de ser feliz. O melhor é sair do pátio, vir cá para fora mesmo. Estudantes vão e vêm, prendendo e desprendendo bicicletas. Um fluxo constante de movimentos. O dia no seu equilíbrio. Os colegas desprezam-me porque sabem que o meu trabalho é o mais precário e o mais mal pago. Eis a estrutura do trabalho. Se um indivíduo tem um contrato permanente, convém manter boas relações com ele, uma vez que ele pode vir a subir na hierarquia. Se o contrato é a termo, o contratado vira instrumento. Numa reunião, o director disse-me, “Helena, o seu trabalho é incrivelmente mal pago, ainda bem que você tem uma bolsa do seu país”. Antes de responder apropriadamente, lembrei-me imediatamente de que precisava do emprego, sorri embaraçadamente e não disse mais nada. Sofrimento é educação. Humilhação também. A minha espinha dorsal sofreu um espasmo seguido de duas contracções. Curvei o pescoço a moldá-lo psicologicamente a uma guilhotina invisível. Lírica, sou uma rapariga lírica, mas nem tanto. Eu gosto do trabalho e aceitei-o porque além do dinheiro estava à espera de ganhar experiência, é o outro credo tradicional do jovem empregado, não podemos pagar-lhe um salário por inteiro, mas você ganhará experiência. Tenho aprendido muito, mas não do modo que tinha pensado. A seguir a mim virá outro, exactamente na mesma situação, tão bem qualificado como eu (todos nós possivelmente mais qualificados do que estes indivíduos na altura em que tinham a mesma idade do que nós) e igualmente descartável. Aos olhos destas pessoas, aceitei o emprego pelo mais desprezível dos motivos possíveis, precisar do dinheiro. Há dias um colega disse-me, “estou a educar os meus alunos para o desemprego”. “Para serem como nós”, disse-lhe eu. Mas não temos como parar isto. Tudo o que querias fazer a morrer nestes corredores, ao longo destes escritórios, a ganhares peso, com o tempo a repetir-se de contrato semestral em contrato semestral. Aprender a não comprometer a integridade, treinar a insensibilidade à humilhação. A única resposta é seguir à cabeçada. Digamos que é possível imaginar que toda a ordem se sustenta porque o movimento é contínuo, mudamos continuamente de uns lugares para outros. Luzes acendem-se e apagam-se nos diferentes quartos e estúdios e salas desta cidade. Gente passa de uma sala a outra, e há quem suba de um andar ao seguinte. O meu cigarro é um ponto na chuva. Félix abandona o edifício. Quando pedala, Félix transforma-se num rapaz. Passa a ter doze anos e um sorriso de orelha a orelha. Como uma gravura de miúdo do Kentucky numa caixa de cereais de pequeno almoço. Louro, dentuças e de grandes joelhos. Num dia normal, as emoções no seu fluxo e refluxo acrescentam outras tantas metamorfoses. O rosto de Félix fecha-se com uma precisão de estátua. Passando os limites do pátio ele já só é apenas sério. Sentado no seu cubículo a escrever, Félix vai ganhando, à medida que as horas avançam, o rosto de um autómato. No fim do dia ele vira cabeça de cartaz em poster de Fritz Lang, Metropolis, 1927. Tive oportunidade de ler o que ele escreve. Lógico, claro, competente, citando extensa bibliografia, uma patacoada chata como chegar ao futuro e terem deixado de fazer amor ou de gostar de comida calórica. Como um autómato de facto. Eu, por exemplo, agora as palmas das minhas mãos estão a suar. Mas eu não tenho dificuldade em concentrar-me, a verdade é que nunca tive dificuldade em concentrar-me. Quando me deram a oportunidade de trocar uma cidade por outra, não pensei duas vezes. Tornaria a fazer exactamente o mesmo. Na verdade tornarei. Não falemos disso agora. Como vim sozinha, é mais frequente passar por crises de ansiedade durante o dia. Nessas ocasiões, sei que preciso de parar o que estou a fazer imediatamente. É preciso não deixar transparecer. Um tremor apodera-se das mãos e dos pés. Náusea. Suor. Torpor. Um cavalo desenfreado galopa sofregamente a minha imaginação. Eu imediatamente substituo uma imagem por outra. Um surfista a surfar a onda. Com um ritmo vindo de dentro, forçando o segundo ritmo, que é exterior, a desacelerar, finalmente lançando-se em sincronia com a duração do pico da onda, erguendo-se na prancha. Surfar a onda até ao fim. Como uma segunda natureza. Homens e mulheres desconfiam igualmente de uma mulher nervosa. Se eu deixar transparecer é mais complicado controlar-me. Se eu não deixar transparecer, nada está a acontecer. Mas é preciso levar isto a sério, o mundo seria completamente inabitável se um estranho pudesse ler os meus pensamentos. Nenhuma solidariedade seria possível. Nenhum segredo seria possível. Nenhuma imaginação seria possível. Não poderia carregar os meus segredos se alguém me pudesse abrir a cabeça e examinar um pensamento como uma sardinha tirada de dentro de uma lata. Em pânico, na verdade, tento não pensar em sardinhas, bananas, maçãs, não pensar em nada. Quando na entrevista me perguntaram como descreveria as minhas capacidades de gestão, engoli em seco, abri um sorriso e respondi sem hesitar: excelentes. No sentido em que há dias em que levantar-me e sair à rua é toda uma experiência de gestão. Tra la spiga e la man qual muro è messo? Depende, mas nunca ninguém devia admitir isto. Porém, observe-se. Mesmo olhar gente na cara, apertar mãos. Tentar não vomitar ao escutar certas acentuações. Certas curvas de frases. Talvez no centro só o meu medo de viver, de ter de ficar no meio de pessoas. Tentar manter uma reserva de gentileza, mesmo para incidentes envolvendo bananas. Para não falhar todos os dias basta pensar que existo apenas à superfície. E sobretudo, não alimentar pensamentos nihilistas. Para mencionar um braço, não há qualquer necessidade de entreter frases que envolvam o termo “osso”. Uma vez aprendida esta lógica, a realidade torna-se fácil de gerir. Às vezes a pulsação sobe-me até à garganta, até ao pescoço. O que fazer nestas situações? Parar, não beber café, correr ao fim do dia. Conversar com Félix, que me pode ensinar a escrever como um autómato, que me conta que começou a plantar o seu jardim. É preciso falar com os que ocasionalmente põem os seus fatos pretos. Lembrei-me imediatamente de António. António sabe misturar-se. Por zeus!, como uma enguia no lodo do rio. António mistura-se e suspeito que a sua personalidade se dissolve, que se rarefaz. Eu e António somos duas versões diferentes do mesmo tipo de problema. Ambos precisamos de sobreviver, mas António é um groupie. Ao comentário do seu director sobre o seu baixo salário, António responde, “é verdade senhor director, mas tenho aprendido tanto, estou tão grato pela oportunidade”. António é como eu, um jovem a caminhar para os trinta anos, suspeito que nem uma ideia própria na cabeça, como abrir o facebook e fazer scroll down desmioladamente. Talvez não isso, com um núcleo tão protegido que dá a falsa ilusão de não haver lá nada. Assim, parece que ele está só de passagem. Pode ser isso. De onde me veio este azedume contra António? Quando estávamos a terminar a faculdade éramos bons amigos. Ele está sempre no loop, mesmo ao forçar uma piada a despropósito sobre o superior mais próximo. Mesmo quando tudo o que o brilhantismo da sua piada ilumina é o olhar bovino do superior. Bajulação. Que rapaz tão agradável. Tão cheio de planos e projectos. Porquê melancolia quando se pode ser ligeiro? Olhar para dentro e ter sempre o fundo em vista. É isso o porquê. E no entanto, há tanto que posso aprender com ele. Que devia aprender com ele. E ele é sempre prestável. A friend in need is a friend indeed. Fico a dever-te uma. Palmada nas costas. Mas é preciso não ser cruel com António. Importa entendê-lo, acredito que ele é de alguma maneira inocente. Ele não está tão cansado, ele olha para o braço e vê a mão que se estende para ele e acha que foi escolhido. Tudo vira argumento de Star Wars, tudo ordenado numa lógica de master Yoda e Luke Skywalker. Eu olho para o braço e só consigo ver o osso. Citando o outro Marx, tenho desconfiado de todos os clubes que me aceitaram como membro. Não quero amizades que se alimentem por favor, a pior crise é essa, se penso nisso, quero ser uma ilha, uma sala de betão armado. Uma estação de comboio perdida no meio do nada, com as comunicações interrompidas quando chove. Eu quero só abrir a porta quando me apetecer. Misturar-me é dissolver-me, repito em pânico diante do espelho da casa de banho, examinando as gengivas a sangrar. É nestes instantes que as palmas das minhas mãos começam a suar. Estão a ver? Mas é aqui que começo a ganhar controlo. Lembro-me de que precisava de uma ternura que me desse uma vontade de voltar. Absoluta. Não dissolução, comunicação. Em vez destes laços substitutos, mantidos para efeitos de carreira, com muita paciência, como reformados a jogar à sueca, relações, como dizer, medíocres. Estava à procura de outra expressão para evitar chegar ao osso. Como uma coisa que é seca e armazenada para durar mais tempo. Liofilizado, é o termo de que estou à procura. A maior parte das minhas relações correntemente são liofilizadas, mas sem a alegria outonal e o colorido da fruta seca. Laços mantidos em abstracto, por um sentido de identificação com uma certa classe profissional. Manter os laços significa continuar na classe. Há que permanecer, progredir verticalmente, rastejando se for preciso. Não posso reconciliar isto com o meu amor. É que tenho amado gente que nunca me pediu nada, e que nunca mais tornarei a ver. De quem perdi morada, número de telefone, email. Tenho precisado do amor de gente que sei que se o tivesse aceitado a única solução possível seria o seu desprezo e no entanto elas deram-me antes cuidado e isto redimiu-me. E aumentou a minha responsabilidade de viver no meio de gente. A minha educação sentimental tornou-se a minha ética absoluta. Uma coisa ao mesmo tempo perigosa e errada. Mas digamos que uma vez recebendo isto, não se deve conceder menos. É uma lei antiga e guerras foram travadas depois do seu trespasse, um bando de Gregos à espadeirada onde Judas perdeu as botas, questões bem complicadas. E tenho muitas vezes dependido da boa vontade de estranhos, de modo vagamente ingrato, sem me tentar parecer com eles. Tenho amado gente a quem não dei nada em troca. Isto é o pior de tudo. Sempre que erro, lembro-me do quanto precisei do amor deles e que ao errar a minha dívida recomeça, viaja até à minha a morte. É quando me vejo inteiramente e percebo o quão urgente é viver de certo modo em vez de outro. Importava que deixasse isto escrito, porque me começo a esquecer. E eles amaram-me mas não podem insistir em enviar-me o seu amor sem que isso me doa, iluminam-se como fantasmas nesta praça, enquadrados pelo tempo de ontem, saem abruptamente, saltam-me ao caminho como Fúrias, infância, juventude, idade adulta, eu tenho de lhes pegar pela mão, dizer-lhes, calma moças, isto não é Buenos Aires, tango, facas, Evaristo Carriego, nem sequer é sobre a nossa mãe, mas secretamente tenho a certeza absoluta de que não precisamos de ser razoáveis para continuarmos a ser normais. Eu às vezes venho sentar-me entre eles como o convidado que chegou atrasado e ninguém estava à espera que ainda aparecesse a estas horas. E, em vez de me lembrarem do inoportunismo, estão todos tão alegres. Nunca irei merecer a generosidade deles e ela a embaraçar-me porque estou logo quatro degraus abaixo. Eles a porem um prato na mesa e eu a planear a fuga. Um deles há-de despir-me o casaco molhado, fazer-me sentir em casa. Dorme aí no sofá, já é tarde e bebeste mais do que devias. Esse tipo de coisa. Uma ternura como se fosse um disparo, uma bomba a explodir no meio do Pacífico, eu dentro de uma cabine telefónica a contar as últimas moedas. I just called to say I love you, I just called to show how much I care. Stevie Wonder a tornar tudo mais ligeiro. É muito difícil para mim dizer coisas dessas. Fico sempre com a impressão de que é artificial, ao género de respirar por um tubo debaixo de água. A linguagem tem muitos usos e pode, e às vezes deve, transmitir a ideia errada. Impressiona-me sempre que me digam que amar é deixar estar. Pessoalmente, antes a martelada num dedo, se doer ao menos que não seja de cartão. É preciso aprender a aceitar a exposição e torná-la mais visível, mais real. É preciso protegê-la como ao tio avô um pouco louco que só nos visita no Natal. A humanidade que tento juntar deve ser isso. E eu podia receber essa ternura absoluta como se fosse aceitar a morte. Lá vou eu outra vez. Não há qualquer necessidade de puxar pelo melodrama. Género de putas e paneleiros, disse-me uma vez o João Luís, noutra cidade e noutra altura, e com razão, ao que eu acrescentei logo de seguida, como um amparo, para não o deixar sozinho na queda, e de donas de casa também. Uma humanidade em versão barroca, à beira do precipício, do ataque cardíaco, para não nos esquecermos quando chegar o mês das enguias em il nostro paese. O que carrego comigo vira vermelho nas árvores, um grande peso a tornar-se nítido, objectivo, claro, a traduzir-se como num telégrafo, alguém a ouvir do outro lado, como a única coisa que se pudesse distinguir no meio de uma manhã de nevoeiro, numa dessas em que atirando uma pedra, a única coisa que fosse possível ver fosse a louca duração do seu desaparecimento, mas tudo continua a existir e é possível caminhar pelo desaparecimento adentro, continuando com pouco, onde e quando tudo é cada vez menos visível. Assim, incendiar a rua toda como um clarão, a minha cara afogueada, toda a gente agora vai reparar com unanimidade de onde veio o vermelho, que fui eu que peguei fogo às árvores, que alastrou aos telhados, que comecei o incêndio e só parei quando deixei toda a rua em chamas, o bairro inteiro, que o fogo me assenta na cara como uma luva. Cassandra, porque o mensageiro que traz a notícia da destruição torna-se a sua causa mais imediata. Na confusão do momento o mensageiro é sempre a primeira causa. Não é possível argumentar contra a minha culpa.

– Sempre desconfiei que havia para aqui uma natureza vagamente incendiária, dirão os vizinhos do 7ºB.

Toda a estranheza agora tornada explícita, visível, objectiva. Os barulhos suspeitos, as luzes acesas fora de horas. Será concluído que isto era esperado, coisas destas normalmente adivinham-se à distância. Todas as fronteiras estão abertas, sabe-se lá quem vem aí a seguir. E então alguém dirá: Bastava olhar-lhe para a cara, percebia-se logo. Cada experiência reconduzida à banalidade de mais um acontecimento.

Conto Ferroviário

Na plataforma a iluminação era bastante ténue. A estas horas, com praticamente ninguém a sair na estação de Campolide (a maior parte das pessoas dirige-se para fora de Lisboa), o local tornava-se algo sombrio. Transmitia pouca segurança. Podia estar sempre alguém ao virar da esquina. Apesar disso, quando estava, era apenas mais uma pessoa à espera que o comboio passasse.
Habituado a passar aqui nestas condições, já nada sentia. Era para mim absolutamente normal estar ali àquelas horas e nunca nada de alarmante se tinha passado, pelo menos à minha frente. Sabendo isso, o medo desaparecia, ou pelo menos parte dele. Caminhei até ao final da plataforma como quem ia na direcção do Rossio e, não vendo ninguém, saltei para a linha. Não havia perigo em andar na linha a estas horas. Ainda faltava algum tempo até ao próximo comboio chegar. Podia dormir uma sesta de alguns minutos na linha que ainda tinha tempo de acordar e me levantar sem o comboio ter passado.
Tinha agora à minha esquerda o armazém de comboios da Estação de Campolide, onde estavam paradas as carruagens, nunca novas, algumas renovadas e em funcionamento, outras antigas e abandonadas. Caminhando paralelamente à linha, procurava o local certo para saltar a rede que separava essa zona da comum linha ferroviária. Andei alguns metros, sempre a olhar para trás, com medo de que me vissem. Quando cheguei a uma zona sem iluminação e, ao olhar para trás, não vi ninguém, decidi escalar a rede e saltar para o outro lado.
Muitos comboios não estavam dentro dos armazéns, provavelmente havia mais do lado de fora, até. Encostado à vedação estava um de dois andares, pintura de base branca e com duas riscas de lado, uma verde, maior, e outra vermelha, mais pequena, paralela e sob a verde. Um dos primeiros comboios de dois andares a circular nos suburbanos de Lisboa, estreado em 1999, agora abandonado. Problemas técnicos era a causa mais provável. Actualmente circulam uns iguais, mas de cor vermelha. Graffitis, das mais variadas cores, cobriam o branco. Mesmo com duas filas de janelas de cada lado, mal se viam por estarem cobertas de pinturas.
Andando até ao final das carruagens, passei para o lado paralelo ao que estava junto à rede, com um comboio a separar-me da plataforma. Andei até à segunda carruagem deste mesmo comboio e parei na primeira das portas. Na união das duas portas havia uma pequena fresta que, com a ajuda de um pau relativamente pequeno que encontrei no chão, me permitiu separar um pouco as portas para entrar dentro do comboio. A porta, preparada para estar à altura da plataforma, ficava algo alta em relação ao chão. Noventa centímetros, talvez um metro mesmo. Com a ajuda dos braços, consegui içar-me lá para dentro. Tendo um metro e oitenta, a altura da porta não era grande problema.
Dentro da carruagem a escuridão impedia que se visse grande coisa. Por muito que a luz tentasse entrar pelas janelas, os graffitis impediam que a pouca luminosidade que existia no exterior passasse. Com a ajuda de uma lanterna que trazia comigo, era capaz de ver lá dentro. Tinha era de ter cuidado em não apontar a luz para as janelas, caso contrário podiam notar a minha presença. Conseguia agora ver as escadas que, do espaço de entrada na carruagem, permitiam ir para os dois andares do comboio. Subindo as escadas e avançando até ao final do corredor ladeado por bancos, desci as escadas para alcançar o átrio do outro lado da carruagem.
Um colchão no chão, encostado à parede. Nessa parede, um corredor com uma porta fechada para a carruagem seguinte. Nesse corredor umas malas. Nessas malas, sei lá, um milhão de coisas. Era provavelmente quase só roupa.
Era aqui que dormia.

Cola

Já não corro atrás do tempo perdido em cafés Cola. Segura a memória para não perderes o único rasto que ainda nos liga. Amanhã deixa de ser verão, as ruas esquecem-se de nós, o tempo aleija na persistência de nunca parar. Onde vais? Ainda não terminei de falar. Aperta a consciência e lembra-te do que dissemos naquela loja, que haveríamos de comprar aquele filme, viver aquela vida e tentar ser aquela felicidade. Lembras-te? Eu também não. Mas gostava que tivesse sido assim.