Não vês que estou doente

             O Grande Mestre  (2013), Wong Kar-Wai

             O Grande Mestre  (2013), Wong Kar-Wai

Não vês que estou doente. Repetiu. Não vês que estou doente. Não como, não durmo, ando pálido. Estes papos.  Círculos negros em torno dos olhos. Este aperto no peito. O estômago embrulhado. Adoeceu com a separação. Pensava na morte.  Debitava as mesmas palavras, vezes sem conta as mesmas palavras, não vês que estou doente, como uma máquina, não vês que, afirmava como um gravador, não vês que estou. Doente, eu. Perdeu o emprego, uma posição confortável num escritório desbaratada por sucessivos atrasos e faltas injustificadas. Troquei a mediocridade pelo nada. Acabado o subsídio de desemprego, aproximou-se da família, que era curta e sovina. O pai virou-lhe as costas. Não te eduquei para a miséria. Não demorou até se ter visto na rua a arrumar carros e a pedir esmola. Como os drogados, o meu filho como um drogado. Assim imaginava o pai, amargurado. Recebeu acolhimento numa pensão gerida pela tia de uma tia. Escrevia cartas deitado numa cama minúscula, encolhia-se a tremer de frio e de angústia e de pobreza e de vazio e de escuridão. O teu desaparecimento é uma rocha. Vivia num quarto infestado de baratas e de ratinhos pretos. Escondia os pés nos cobertores para não ser mordido por nenhum bicho esfomeado. Escrevia num pequeno caderno castanho encontrado num caixote do lixo. Gatafunhava sobre banalidades. Como um drogado, um inválido. O pai ao ouvido. Dirigia-se a uma mulher existente em lado algum a não ser no seu coração e na sua memória, falava a uma mulher que o desprezara. Não desprezo. Desprezo associava-se a algo negativo. A separação não tivera que ver com desdém ou repulsa ou aviltamento. A separação não tivera que ver com nada que compreendesse. Os meus sentimentos, não os entendo, não te entendo, o que me fizeste.  Separação era também uma palavra com conotação negativa. De positivo havia zero, dois corpos afastados, o coração a palpitar de saudade, nada de positivo. Recordações dolorosas. Boas recordações e por isso muito dolorosas. E a última imagem. A mulher de costas, afastando-se, cada vez mais longe, entrando no táxi e acenando pela última vez, um adeus seco, sem sorrisos ou lágrimas, o táxi ao fundo, o táxi quase noutra cidade e um homem atónito, não sabendo para que lado se virar. Para dentro de um rio, para uma faca afiada, para uma caixa de comprimidos, para o esterco. Escreveu até encher o caderno. Morou na pensão até ser expulso. Morreu esquelético e coberto por cobertores e, no relvado onde uma velhota que passava o encontrou roxo, nasceu uma poça de lama que nunca secou.

Os maias

Luzes vermelhas piscavam numa varanda do prédio em frente quando Carlos saiu. Dois andares acima, um Pai Natal pendurado numa escada tentava alcançar uma marquise que tinha todas as janelas fechadas. Desde o início do mês que ali estava, naquela posição, sem subir ou descer um degrau. Há uma semana, quando saíam para beber o café depois do almoço, os pais de Carlos tinham comentado aquele Pai Natal, lamentando viverem no rés-do-chão onde não podiam ter enfeites à janela. Carlos riu-se e gozou com a situação.

Olhou o boneco pendurado e não conseguiu lembrar-se quem dissera o quê. O pai e a mãe às vezes confundiam-se na sua cabeça, formavam uma unidade, composta por pai e mãe, em que não importava já quem fazia o quê, quem dizia o quê. Baixou os olhos para o passeio e caminhou apressado.

Faltava pouco para as dezoito horas e já era praticamente de noite. Na véspera de Natal, já o sabia, esta era a última oportunidade para beber um café. Desceu a rua em passo acelerado, virou à esquerda na esquina e entrou no primeiro café. Não era aquele aonde ia sempre e por isso mesmo o escolheu. Não se lembrava de alguma vez lá ter entrado, apesar de ter vivido quase todos os vinte e nove anos da sua vida naquele bairro, naquela rua, naquela casa.

Também no café havia enfeites dispersos pelo espaço. Três ou quatro clientes falavam sobre doces, presentes, crianças, o que ainda faltava fazer, quantas pessoas iam ter para o jantar, o que ia ser o jantar, e despediam-se sempre com muitos votos de felicidades, de bom Natal, de bom ano novo, se a gente já não se vir até lá. Carlos pediu um café, sentou-se numa mesa perto da porta e saiu assim que o terminou, sem dar tempo a que alguém lhe desejasse o que quer que fosse. Subiu a rua de olhos postos no alcatrão que pisava, enquanto lhe chegavam aos ouvidos conversas dos vizinhos que ainda não tinham recolhido ao lar para a consoada. Toda a gente fazia os mesmos votos.

A luz do prédio estava apagada, sinal de que não havia ninguém a descer as escadas. Não a acendeu. À porta do seu rés-do-chão esquerdo tacteou com a ponta da chave em busca da fechadura. Depois de entrar deu duas voltas completas para trancar a porta e encostou-se a esta respirando fundo. A casa estava imersa em escuridão.

***

 Carlos entrou na sala escura tacteando, dando passos curtos, mal levantando os pés do chão. Com o braço direito esticado alcançou o velho e enorme móvel. Caminhou até à outra extremidade deste, sempre com a mão direita como que acariciando a madeira, até alcançar a porta do mini-bar. Rodou a chave, que estava sempre na fechadura, e ouviu o estalido a indicar que estava aberta. Da cozinha a mãe gritou.

Carlos! O que é que estás a fazer? Não sabes que os chocolates são só para amanhã, quando chegarem as visitas?”

Estava só a ver uma coisa,” gritou de volta, rodando a chave até o estalido se repetir. Era a pior desculpa do mundo, mas a mãe perdoaria. Afinal, ele espreitava muitas vezes os chocolates, como espreitava muitas vezes as prendas, mas nunca abria as caixas nem rasgava os embrulhos antes da autorização.

Saiu da sala para o corredor. A casa estava às escuras. Não havia luz no seu quarto, nem no quarto dos seus pais, nem na cozinha. Carlos estacou. Reentrou na sala, sem acender a luz, e caminhou, agora mais seguro, até ao mini-bar. Rodou a chave, ouviu o estalido e ficou à espera. Nada aconteceu. Voltou a rodar, no sentido inverso, e a abrir novamente. E nada aconteceu.

Deixou cair suavemente a porta do mini-bar, que abria de cima para baixo, formando uma prateleira à altura do peito quando aberta. Do lado esquerdo havia garrafas do pai, whisky, moscatel, Porto, bagaceira, algumas a meio, a de moscatel quase no fim e várias ainda por abrir. Do lado direito estavam as caixas de chocolates, de vários tamanhos, várias marcas, várias cores, todas ainda fechadas em plástico.

Carlos tocou nas caixas de chocolates. Sentiu um arrepio quando as pontas dos dedos deslizaram sobre o plástico. Tirou a caixa do topo. Abriu-a e espalhou os chocolates sobre o tampo de vidro da mesa de centro. Fez o mesmo com as outras sete ou oito caixas de chocolates, espalhando-os sobre a mesa e largando os plásticos e as caixas vazias para o chão. Depois tirou uma garrafa de whisky, que estava a meio, e um copo e pousou-os também na mesa, empurrando alguns chocolates para o chão. Fechou o mini-bar, ouviu o estalido, fez um compasso de espera, mas nada aconteceu.

Quando voltou as costas ao móvel, encarou a mesa de centro, coberta de chocolates de todas as marcas. Não os conseguia distinguir bem na penumbra. Depois viu o vulto da pequena árvore de Natal de plástico a um canto, sobre uma mesinha alta. No chão havia muitos presentes de vários tamanhos, embrulhados em papel colorido. Carlos pegou num, tentando ver através do papel apesar de estar às escuras. Depois pegou noutro e abanou-o no ar. Ouviu qualquer coisa mexer-se dentro da caixa. Quando ia colar o nariz ao papel, com o coração pulando de excitação, para tentar vislumbrar uma palavra, uma imagem, uma marca que denunciasse o presente, ouviu um grito vindo da cozinha.

Carlos! Vai já para o teu quarto! Já te disse mil vezes que as prendas só se abrem à meia-noite!”

Largou o embrulho e saiu a correr da sala, batendo com a canela no aparador do corredor. “Foda-se!” gritou. Tentou perceber como é que batera no aparador e deu-se conta de que estava às escuras. Não havia luz na sala, nem no corredor, nem em nenhuma outra divisão da casa.

Em passo hesitante, regressou à sala. Tinha qualquer coisa na sola de um sapato que se colava ao chão, qualquer coisa pegajosa, que o enojava mais a cada passo. Tacteou até à árvore de Natal, quase tropeçando no sofá. Procurou o fio que pendia da árvore e quando o agarrou ligou a ficha à tomada. Luzes vermelhas acenderam-se num crescendo de intensidade. Atingindo a potência máxima apagavam-se, para logo de seguida começarem a piscar velozmente, para depois exibirem outro efeito luminoso, e outro, e assim em repetição rumo ao infinito. No chão, por baixo da árvore, não havia presentes.

***

 Sentado no sofá, Carlos bebia whisky e comia chocolates. Junto aos seus pés havia uma mancha de um bombom esborrachado, o mesmo que deixara restos na sola do sapato que se colava ao chão. Metia os chocolates inteiros na boca, mastigava-os com violência, três ou quatro vezes, e engolia. Ignorava ou esquecera os ensinamentos do pai. “Não trinques o chocolate. Deixa-o derreter-se na boca, que assim o sabor dura mais.” E acompanhava cada novo bombom de um gole generoso no copo de whisky.

Não demorou muito até que terminasse aquela garrafa. Levantou-se para ir ao mini-bar pisando os restos de chocolate esborrachado, mas não deu por isso ou não se importou. Quando rodou a chave e ouviu o clique não ficou à espera de reacção nenhuma. Pegou numa garrafa de moscatel e sentou-se, sem se dar ao trabalho de voltar a fechar a porta do mini-bar.

A profecia maia, em que a mãe de Carlos acreditava com reservas, sem no entanto conseguir deixar de temer, previa o fim do mundo para o dia vinte e um de Dezembro de dois mil e doze. Carlos bebia moscatel e comia chocolates. Era véspera de Natal do ano da profecia. Lá fora, o mundo parecia continuar, igual ao dia anterior, igual ao próximo, mas ali, na sala escura iluminada apenas pelo piscar vermelho das luzes da árvore, o mundo acabara antes da profecia. Os maias erraram por dois dias. O fim do mundo antecipou-se.

Por cima da cabeça de Carlos havia uma fotografia antiga, com meio metro de altura e uma moldura de madeira trabalhada, com um casal nos seus trintas e poucos anos. Carlos ainda não se atrevera a olhar para lá. Eram os seus pais, juntos, lado a lado, como no acidente que lhes tirou a vida. Iam a caminho do cemitério, a fina ironia da coisa, a filha da puta da ironia de merda, pensara Carlos, quando pelo primeira vez conseguiu pensar depois do choque.

Fechou-se em casa depois do funeral. Desligou o telefone fixo, o telemóvel, a campainha, fechou todas as janelas e persianas, trancou a porta de casa. Só saiu na véspera de Natal. Qualquer coisa dentro dele pediu-lhe um café. E ele acedeu, porque era véspera de Natal, porque haveria pouca gente na rua ao fim da tarde, porque estariam quase todos em casa a preparar o jantar festivo.

O café, entretanto, ou fora absorvido ou diluíra-se no meio do álcool e dos chocolates. E ele continuava a comer e a beber, embora o moscatel lhe soubesse pior, porque era demasiado doce para acompanhar chocolates. Acendeu um cigarro para desenjoar e tremeu de pânico quando ouviu um grito vindo da cozinha.

Cheira-me a tabaco! Carlos? Anda cá imediatamente!”

Sabia que não podia fumar em casa, nem à janela. Não podia, aliás, sequer fumar ao pé da mãe. Ela sabia, mas não tolerava. Odiava. E falava, falava, falava. Que a roupa cheirava a tabaco, que o quarto cheirava a tabaco, que alguém abrira a janela da sala durante a noite e que só podia ter sido ele para fumar. E agora, idiota, acendia um cigarro em plena sala, dentro de casa, com a janela fechada. Não se ia safar desta.

Largou o cigarro no chão, quase intacto pois dera apenas uma passa, e pisou-o, deixando o pé sobre o cigarro para o ocultar. Esperou, mas ninguém apareceu. Nenhum outro grito chegou da cozinha. A casa permanecia às escuras. Só na sala uma luz vermelha piscava, iluminando parcamente uma mesa de centro coberta de bombons de chocolate que transbordavam para o chão, uma garrafa de moscatel, um copo, um chão imundo de chocolate pisado e uma beata e plásticos e caixas de chocolates e restos de whisky ou moscatel ou ambos.

Carlos foi ao mini-bar buscar uma garrafa de whisky ainda fechada, abriu-a e começou a derramar o líquido sobre o cortinado, o sofá individual, o chão. Depois sentou-se no sofá maior, bebeu pelo gargalo o resto que deixara na garrafa, e acendeu um cigarro. Fumou lentamente, observando no whisky derramado o reflexo das luzes vermelhas que piscavam na árvore de Natal.

Um chocolate, uma perna, a angústia

A bibliotecária gorda não desgruda do computador, atende o cliente revirando aqueles olhos cor de azeitona cuja beleza duas lentes garrafais para a miopia e o astigmatismo não ofuscam. Faça o favor de dizer, exclama, bruta, quase exigindo ao mundo que sofra com ela. Cinco quilos em cada mão, noventa quilos espalhados pelo corpo, cogita o cliente, se este monte de banha me cunha um sopapo põe-me de baixa médica, a comer sopa de cenoura e a abrir e fechar a boca a ver se endireito o maxilar. Queria reservar dois, diz o cliente. Já reservou três, responde a gorda. Gostaria de reservar também estes dois, responde o cliente. Só quando devolver dois dos outros três, responde a mulher. A gorda mira o cliente com desprezo e afirma, com os dedos a baterem freneticamente no teclado, que o seu tempo é escasso, que as chefias, entidades fantasmagóricas e cada vez mais exigentes, reclamam produtividade. Produza mais e trabalhe as mesmas horas, escarra a gorda, angustiada e aplicando murros no teclado. O telefone toca: um dos chefes pergunta como vai a produtividade e a gorda reprime a violência com uma dentada na mão. O telefone toca outra vez e outro chefe aconselha-a a dar mais de si, a não se contentar com o bom. A gorda liberta uma lágrima e pergunta ao cliente se tem um chocolate ou um pacote de açúcar, que o sofrimento a consome e dentro da sua mala não resta nem uma bolacha, nem uma migalha. Julguei que este trabalho consistia em permanecer sentada a limar as unhas, a ver vídeos de animais na internet, a pensar na preparação do jantar, confessa a funcionária, e soluça e pede um chocolate, diz que pode ser de leite, simples, sem avelãs ou passas, um mero chocolate. Não tenho, diz o cliente, e mais uma vez é o computador que paga, levando uma cabeçada que faz saltar algumas teclas. Entrei aqui magra, choraminga, cruzava as pernas e os homens esbugalhavam os olhos, ficavam de queixo caído, agora, snif, levanto-me da cadeira e rebolo até ao supermercado. A gorda estanca a onda de pieguice com um arroto. Azia, desculpa-se. O cliente regressa ao seu lugar, o escuro da biblioteca amolece-o, não tarda em adormecer e acorda com o seu próprio ronco e depois tenta focar-se na leitura mas os roncos intrometem-se outra vez e volta a acordar com o som de uma explosão de granada. Não que alguma vez tenha ouvido uma granada a explodir, pensa, mas se é como nos filmes o som é idêntico. A gorda desmaiou de fraqueza ao abrir um vídeo de um gatinho acabado de nascer. O cliente encontra-a esparramada no chão, babada e a contorcer-se como se estivesse a levar choques ou a ser exorcizada. A culpa é tua, não me trouxeste o chocolate, berra a mulher com uma voz vinda do fundo de uma caverna, uma voz medonha que arrepia e impele o cliente a correr. Salta por cima daquele monte de gordura, não tem outro modo de fugir, a sujeita caiu mesmo ao pé da porta. Ao saltar sente uma mão enorme a agarrar-lhe a perna e uma dentada, duas dentadas. E depois a perna meio comida e o corpo ligado a duas muletas.

DIAS BONITOS

Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Dei o primeiro gole e veio uma náusea branda, quase imperceptível. Quis conversar sobre as meninas que pretendia ver à noite, mas continuei calado: começava a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. O sábado era sem sol, quieto, e, do alto dos telhados, vinha um rumor de pássaros que, batendo asas, alçavam vôo ou pousavam. Estávamos junto ao balcão do cinema da Rua Sebastião, o público para a sessão das quatro horas não chegava e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, não havia mais ninguém.

Enquanto bebíamos, por volta das cinco horas, o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou figuras no chão do hall. Ao cheiro de poeira e mármore somou-se o aroma de terra e, mais distante, o de pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar da Rua São José. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos devagar.

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Diário de um investigador científico em vias de se tornar outra coisa

Onde deixei o lápis, pergunto-me, onde estão o lápis e o caderno e os óculos, o raio dos óculos, onde meti os óculos e os comprimidos? e a gilete, quem me manda ser tão calão? esta barba não cresce, barba de miúdo quase a chegar a velho, não tem jeito, barba ou pêlos púbicos, barba salpicada como pentelhos, maça-me, onde deixei os comprimidos? esta dor de cabeça, este cansaço, este sono, este bocejo prolongado, um quarto de hora a bocejar e a enxaqueca a martelar, e ninguém bonito na sala, ninguém digno de se ver, papelada, mais papelada e uma língua estrangeira e funcionários públicos que falam estrangeiro mas que se comportam como qualquer funcionário público, revirando os olhos, que maçada trabalhar. Comprimidos para quê, se já tomei quatro? o mais certo é tê-los tomado todos, não encontro nenhum nos bolsos, nem na mala, nem na casa de banho, nem dentro de mim encontro esses comprimidos, que se os encontrasse sentiria o efeito, aquela calma ou sossego, não, tranquilidade nenhuma, se fechasse os olhos adormeceria, mesmo com a dor de cabeça, adormeceria por não me apetecer fazer nada, nicles, não me apetece sequer respirar, incomoda-me respirar, é tarefa aborrecida andar para aí a viver como se fosse coisa agradável estar vivo. Uma mulher agachapa-se à minha frente e vejo-lhe o rabo, um rabo peludo mais feio do que uma testa cravejada de verrugas, mais feio do que o viver, é por isso que não se deve usar roupa muito mais larga do que o corpo, baixamo-nos e as calças destapam quinze centímetro de rabo. Uma mulher a escarafunchar num monte de papelada oitocentista e a arrotar, tão educada, a arrotar para os lados de modo a não estragar a documentação, preciosa documentação, não se pode esquecer o passado, é o que dizem, lembrar o passado é uma lição, não existe acto mais revolucionário do que recordar o passado, que seja. O rabo borbulhento da senhora tolda qualquer raciocínio e só trouxe bananas para o almoço, bananas e uma garrafa de água, o que é assaz lamentável, uma vez que se quiser ingerir alimento mais substancial serei forçado a descer uma rua de quinhentos metros, o que, dada a minha fraqueza actual, não é recomendável, seria preciso ser louco para descer e voltar a subir, mais louco ainda do que se passasse oito horas seguidas (não passei?) a olhar para a documentação com uma banana no estômago e com as visões do hediondo rabiosque da senhora professora — professora, óbvio, dotada de caneta de prata e caderno de marca francesa e cara de quem não fornica há mais de uma ou duas décadas, dependendo do ano em que deu à luz pela última vez. Não é permitido escrever com caneta em arquivos sérios, pelo menos quando não se é professor ou não se publicou a mesma tese de doutoramento em diferentes versões, e ao puxar da minha sou agarrado por dois macacos, ou então é da fraqueza, dois homens que se assemelham a macacos que me confiscam o objecto e me torcem, partem o braço com que escrevo, o esquerdo, ou então é de não comer, delírios de um faminto, já se sabe que homem de bucho vazio é homem sem préstimo.