O meu destino é morrer mas primeiro quero estar vivo

Decidido a não mais tomar calmantes, pontapeou a porta que dava para o terraço e, abençoado por um crepúsculo clamando por gestos românticos, atirou para longe um frasco cheio de néctar tranquilizante que voou graciosamente contra a parede de uma vizinha velha cuja existência não servia para muito mais do que para berrar com o fantasma do marido morto à navalhada na guerra do Ultramar. Depois de um dia sem dores, entrou num inferno de cefaleias, de pânico e de alucinações. Enfiava-se na banheira buscando alívio para as têmporas a explodirem, suava e espirrava fizesse frio ou calor, como se tivesse gripe. Procurava agir com normalidade, o seu quotidiano consistia apenas nisso, em fingir que conseguia raciocinar e escutar e responder e sorrir. Estou bem, estou bem, mas estes dedos de mulher, tenho mãos de mulher e umas unhas tão disformes, remoía, colando a mão ao espelho, que nojo, dedos esgalgados, meto nojo, pensava que a sua mão não lhe pertencia, que a sua mão tinha sido roubada a uma lavadeira. Uma vizinha mascarada de piolho visto ao microscópio apareceu-lhe munida de um saco a transbordar de fezes de cão e de um rol de ameaças possível de resumir na seguinte frase: se o seu cão me volta a cagar no telhado, rasgo-lhe as tripas. Ao contrário de outras situações, em que não se inibia de ripostar com intimidações, tais como experimente matar-me o cão a ver se não não lhe entrapo a focinheira à chapada, acenava que sim, prometia não voltar a permitir que o cão se atirasse do terraço para telhado da mulher, engolia a saliva com dificuldade por causa do inchaço nos gorgomilos. Sim, sim, bichanava, procederei da maneira que a senhora considerar mais adequada. Pálido e enfezado, baixava a cabeça e sim, senhora, claro, amanhã de manhã mando montar um caixote de aço e lá dentro enfiarei este reles e poltrão cão. Responda, mugia a vizinha piolha, entre abanões e cuspidelas na cara, mexa-se, um dia destes vem a chuva e os cagalhões do seu cão entram-me pelo tecto. Estirado na cama, o cão dormia indiferente à histérica plantada na cozinha. O animal só se erguia para comer e defecar, dormia vinte e duas horas e ai de quem lhe tocasse, ai do dono que se atrevesse a aproximar-se desprovido de um biscoitinho para amaciar o dente, arcava com tenebrosas consequências. As marcas de dentada eram mais do que muitas, chegar-se ao bicho só se sofresse de idiotia, antes dormir sentado na sanita. Caixa de aço, claro. Daqui a pouco passa a noite e voltas a cobrir as telhas da vizinha de castanho, morres de gordo e enterro-te e evaporam-se as dentadas. Recostava-se no sofá, contava as horas que faltavam para o fim da escuridão eterna, daquela insónia resistente ao cansaço e a tudo, tudinho, excepto aos comprimidos alaranjados, e divagavava sobre as razões que o tinham levado a abdicar do clonazepam:

vontade de sentir até os sentimentos mais negativos, querer estar vivo, foi isso que procurei nos comprimidos, estar vivo e afinal não me encontro entre os vivos, com os comprimidos comporto-me como uma pessoa dita normal, não me excedo, não me enraiveço, tolero o que for, não estou vivo, respiro, que problema, tomar comprimidos é como fazer uma pausa da existência, por fora estou eu, vêem o idiota do costume, e por dentro nada respira, poderia morrer-me um filho que não chorava, coisa boa para alguns, horrendo para quem procurou nas drogas a solução para a ausência de existência, todas as semanas ter medo da reacção do médico, recear comportar-se como um ser vivo, fazer o possível para assemelhar-se a um menino reguila que, consciente da sua rebeldia, das consequências da sua rebeldia, o fracasso, passa a menino de igreja, boa tarde, senhor prior, é a nossa senhora de fátima a rezar por nós, perdão para mim, os remédios não me tornaram no menino rebelde que desejei ser, agudizaram ainda mais a consciência de que deveria ser o bom samaritano, não vivo, caminho telecomandado.

Morria,  desviava-se dos seus sonhos. Sempre à espera, cada vez mais à espera, como uma máquina. Por isso largara o rivotril e largaria o resto até que se sentisse tão vivo como as criaturas da sua espécie que mais invejava. Aguentava as humilhações, a privação, a vizinha e o cão. Sairia mais forte, mais capacitado de que apenas as suas mãos, as mesmas mãos de lavadeira, o conduziriam para o seu destino.

Conduto: Na cidade, o sustento das palavras

Já tive uns mocassins, acreditei enfim que deus me esperava. Um dia, calcei-os, um homem pegou-me de barbas na mão, e disse - vamos à cidade, vai-te fazer bem. Deixei-me ir, na esperança de que aquela barba fosse garantia de encontrar o que me estaria destinado. Ouvi, zeloso, recomendações de cautela - na cidade há génios, propriedades horizontais, palavras que, antes de o serem propriamente, são um símbolo representado como certeza, autoras de muitos presidentes, são tão-somente uma intenção antes de serem um destino.

Na cidade fiquei, conhecendo os estereótipos do very typical, e sobre o que nela é dito das palavras como sustento, faço-me breve, como o mais que é na cidade, referindo apenas, em jeito de aprendizado, que lá as palavras tendem a não existir para o seu autor, são uma espécie de tosse que se usa para a decoração indubitável do ambiente.

Os transeuntes sentem-se proprietários do seu vocabulário, e com este exibem, sem pudor, a sua nudez, como uma baba que pende gratuita dos lábios quando abertos. Insensíveis assim a tão generoso conduto, na cidade, as pessoas deixam de ouvir, de compreender a importância da sorte guardada em expressões, dir-se-ia improváveis, como “vou ali dar fé”.

Por vezes, vou beber um café, que é, a maior parte das ocasiões, uma tosta-mista. Não me corrijo, tal não me é apresentado como necessário, e é talvez esta, poderia sugerir-se, a riqueza recôndita que sobra do que é dito das palavras. Elas já sabem o seu segredo, mas teimam em não nos dar notícias da evolução da sua vida íntima, do que têm feito em congressos, em badanas.

Na cidade, não se usam verdades com maiúscula, é puído o algodão, a palavra dita pelos quase-quase-felizes. Na linha verde, as palavras garantem uma forma de comunicar perplexidades além de toda a causação corporal, satisfazendo os manelinhos, no seu gosto particular de beber galões por perto (uma condição, talvez, de metabolismo basal), e as boas-filhas que mordiscam, sempre nova, boa fruta, pêssegos, clementinas, e gostam das explicações das maiorias, de ir lá fora, de hotéis e de muito.

Na cidade lê-se, e na leitura, as palavras são um conduto posto em prática, uma sequência estabelecida de letras ingredientes, janelas de espreitar, de abrir tanto quanto os atilhos permitem. O corpo faz depois o que é costume fazer-se, numa caligrafia que anoitece a graça dos comuns em mais um regresso das vindimas.

Regista-se, porém, que a cidade comporta de facto génios no seu íntimo canavial, e como os documentários de palavra célere ensinam, era lá que deveríamos todos estar, praticando o absolutamente irrisório, fruindo a tertúlia cosmopolita e a elegância funcional do arvoredo de betão, não fosse a sintaxe servil que nos fixa as condições produtivas (é preciso mais, é preciso mais) em região de candura rural, rigorosamente ajustada à definição de um ambiente operário que articule as mãos sem jeito.

Na infância primária, as palavras são-nos ditas sabendo-se de onde vêm - tão longe tão longe, os rapazes as raparigas de maus humores em reuniões de condomínio - e quando um homem nos leva à cidade, sabemos o que disso dizer com critério. As palavras, no sarro do uso insistente, carecem de variação, de exercício, porquanto são um significado, matéria de ler, de ser, conduto valioso na descoberta do mundo, que diz aos homens que mingam ao balcão que deveriam ser sempre uma fome, o ainda-por-conhecer, o mais que o seu horizonte é dispensado de adivinhar.

Dos amigos, na cidade, há muito me fiz freguês. De cotovelo no balcão rio segundo partes deles, menino sem cuidado numa mesa corrida. Com eles acredito que é possível viver no montijo, que o homem de barbas que um dia me apresentou a cidade, deverá ter sido uma paixão entre-tantas, que interrogou um par de mocassins com olhos de tempo perdido.

No aprumo do seu regresso (aguardo-o em cada esquina), entre uma sopa e uma mancheia de grelos, outras palavras serão ditas, que elucidarão, espero, o espanto de me saber refugiado sob a minha própria pele.

São Luís dos Portugueses em Chagas

The evening was over. 
A goddess had walked out of the movie theater and a small porter
was left standing by the tracks. I am so filthy – this is why I am always
screaming about purity. No one sings as purely as those
who inhabit the deepest hell – you think you’re hearing the songs of angels
but it is that other song. 

Lydia Davis, “Kafka Cooks Dinner”

 

W. Suschitzky, "The Matchbox", Londres, 1936

W. Suschitzky, "The Matchbox", Londres, 1936

 

O vizinho está a construir uma estufa que há-de tapar a vista da minha janela. A vista dá para uma macieira raquítica, plantada no jardim dele, infestada de piolhos, que só pode ser descrita como um dente podre no sorriso do bairro. Já discutimos sobre isto na reunião dos condóminos, já lhe deixei bilhetinhos na caixa de correio e já o ameacei com uma denúncia ao council. Ele sorri-me educadamente e diz que ainda me há-de enviar um cesto de morangos. Enfiar é o verbo que me passa pela cabeça, para ser honesta. Ele é alto, fala inglês com carregado sotaque alemão e o meu vulto na janela incomoda-o na ordem da mosca no parapeito. Comecei por tentar tolerar a situação. A princípio pensei, é uma pequena alteração. Mas a alteração não é pequena. A estufa vai tapar toda a vista do jardim. É alteração na ordem da afirmação do poder, como os tipos que abrem demasiado as pernas nos assentos do metropolitano, não deixando espaço aos restantes. À medida que o tempo foi passando, posso cada vez menos ver a estrutura crescer, a sucessiva montagem das vigas, mais tarde tapadas pelos blocos de vidro que formam as paredes, como a carne a ligar-se aos ossos, sem alimentar a impressão que isto está a ser feito a partir do interior do meu corpo, como se a estrutura fossem os meus ossos e os meus músculos um a um estivessem a ser rasgados para serem substituídos por este ambiente controlado e artificial. Peço apenas um incêndio sem complicações ou um furacão localizado, como o que atingiu a macieira no inverno anterior. Se o universo me tolera, podia fazer-me este pequeno favor. O meu vizinho alemão iria recebê-lo estoicamente, como um gancho pelo nariz no ringue de boxe e eu poderia continuar a enganar-me humildemente com a possibilidade de haver espaço que chegue para mim no planeta. Saio de casa, está frio suficiente para acreditar que estou a dar uma volta dentro do frigorífico e dirijo-me ao pub da esquina, versão de estufa para humanos. O pub a esta hora está infestado pelos portugueses do bairro, que, vésperas de natal, se juntam em bandos para recitar, com a fúria tresloucada de um bando de aedos à solta em Delos, a longa lista de tudo o que vão comer e beber na eminente visita à ditosa pátria amada. Introdução ao choque cultural: entrar num pub e ouvir alguém pronunciar a expressão “sande de leitão”. Alguns deles têm sempre a mesma música na cabeça, se bem que boa parte nunca o admitiria e só não existe um exército de fotografias de mulheres e crianças dentro das carteiras, porque está tudo nos smartphones. Destes uma porção não fala inglês ou fala muito mal, são baixos e fortes como carneiros, mas se tiverem de entrar numa farmácia para pedir um medicamento para a dor de dentes, não há vontade que lhes valha e são reduzidos à mímica desajeitada de um urso. Completamente desprotegidos, muitas vezes acabam a pedir ajuda a Rafael, que fala um inglês elegante e cuja pesada mão cai sobre o meu ombro, “Miúda, valha-me São Luís dos Portugueses em Chamas, tu aqui a esta hora?” Eu pergunto-lhe se ele tem a certeza que o São Luís dele em vez de estar em chamas não está antes em chagas, é que fazia mais sentido, não, ele diz que em chagas nem pensar, para que raio havia eu de querer um santo em chagas, para mais nesta altura do ano, eu vou a retorquir, sofrimento piedoso, martírio lento, e ele nem pensar, a arder, cá um santo todo escarafunchoso, ele está à procura do isqueiro e lembro-me de que já tivemos esta conversa antes, foi como tentar entreter o Minotauro. São Luís da Pena é o bairro onde ele cresceu em Lisboa. Quando ele quer falar de casa, Rafael enrola, e eu tento não perder a paciência. Rafael não sabe como falar de casa. Não sou particularmente perspicaz e é só depois de beber um ou dois copos que entrevejo pelo postigo oblíquo do santo em chamas, da auréola até aos pés, fogo no cabelo, no peito, a cabeça a rodopiar no amparo da mão que começa a pegar fogo, o rosto a aquecer como uma queimadura, o vermelho há-de ter de me olhar nos olhos, e do santo a arder virá um eco da ferida distante da infância, a alegria de ser de noite, estar frio, de ainda não estar longe que chegue. Eu sei que ele é como eu, Rafael, ou pior, os pesadelos dele acontecem todos no passado. Daqui vai para casa, para a mulher, há-de pôr os sapatos à entrada, arrumá-los ao lado dos ténis de correr, das botas de neve. Pendurar o casaco no prego certo, tirar a gravata. A imaginação depois há-de correr até à humilhação da porrada acossado contra o portão de casa, quando era ainda um miúdo e entenderam que havia nele outra coisa que o separava do bicho, uma vontade larga como uma nota estridente numa corda de luz, uma fome acesa e traidora, a primeira noite de guarda, sem dormir, quando entendeu que o iam tentar partir ao meio, ainda que ninguém viesse para lhe arrancar os braços ou separar as pernas do tronco, mas aos primeiros golpes do pai ou da mãe ele sentiu-se desmembrado, ele sabia que nunca mais ia voltar a casa. Os olhos do cão ao fundo, o tempo que aquilo durou, os olhos do cão cheios de uma pena assustada e humana. Uma bátega de água e um longo uivo por mim, principezinho sem a minha raposa, foi o que ele me disse quando lhe perguntei por self-pity. Que me caísse nos ouvidos como um grande relógio a partir-se. Filhos da puta. Não havia água que chegasse para lavar as pedras junto ao portão, a minha cabeça contra uma das dobradiças e eu a pensar quanto tempo até o ferro me furar a testa. Nem sequer filhos da puta, muito abaixo disso. Quanta vezes podemos pensar na primeira traição como um favor, como uma iniciação? Eles dividiram-me ao meio naquela tarde e seguiram a cortar mais um pouco de cada vez. Mas se me afastar o suficiente ninguém me quebrou, eu pareço completamente inteiro. Não há em todo o meu corpo a marca de uma única ferida. Não é bem verdade. Quando Rafael aqui chegou, furou com uma agulha a orelha direita, há uma marca acima do lóbulo, para que não se esqueça de onde isto começou. São Luís dos Portugueses em Chamas. Tentamos sair para fora e há uma tempestade de neve a cair sobre as mesas no jardim. Começou com pequenos flocos, sem vontade, e depois o vento puxou com mais força, subiu do rio. Penso em dizer alguma coisa sobre os remadores no canal, no rodopio uma das lanternas num dos barcos estilhaça-se. Saio para ver a confusão e dirijo-me à cabine telefónica mais próxima. Eu sou um tipo muito particular de emigrante. O que não tem consigo qualquer número de telefone de casa. Os vidros da cabine cobrem-se de branco, como os vidros da estufa se há-de cobrir de branco. E um corpo pode ser de gelo e ao mesmo tempo prático que chegue. Pessoas de gelo podem ter coisas em comum, embora não seja possível averiguar se as suas vértebras se derretem sem se partir. Rafael cambaleia pelo cercado junto ao rio. Um santo ferido, seria agora aconselhável regá-lo com querosene e atirar-lhe um isqueiro aceso. A minha proposta não é indignante. Um santo é um santo porque já sofreu tudo o que tinha a sofrer. Eu não consigo bem entender isto. Como perceber onde pode o sofrimento parar, esgotar-se. Também ele é uma paixão, uma grande inquietude com os seus rituais, depois de uma certa dose de sofrimento, se restar nele alguma dignidade, ele nunca mais vai voltar ao normal. Eu revejo-me e a Rafael a caminhar por um cercado numa tarde de sol em Lisboa, as mãos dele são incrivelmente pequenas, e quando nos abraçamos, antes de nos despedirmos, eu percebo o quão frágil ele é. O sofrimento é só um começo, ele volta e renova-se de cada vez, liga-se por ressonância à humilhação anterior e forma uma longa cadeia. Eu entretenho mágoas que têm seis meses, mágoas que têm seis anos, pequenos embaraços que me causam sofrimento e que na verdade foram ninharias que eu podia ter perdoado. Na verdade, eu dirijo um departamento de corrupção. Não é que tenha de ser honesta sobre isto, os meus sofrimentos contaminam as minhas memórias felizes. Rafael continua a diminuir junto ao gradeamento do rio, a sombra dele, isto é. Eu podia explicar-lhe o quanto ele é inteiro. O meu problema é que não o saberia dizer sem ser desajeitadamente, sem que se assemelhasse a bajulação. O nosso amor é pobre, exíguo, ridículo. Continuam a atirar-nos com imagens de um grande romance de highschool americano, o capitão da equipa e a cheerleader, e na verdade a única coisa real somos nós dois sozinhos num quarto que se pode repercutir na cabeça como um incêndio. O meu amor por ti, miúdo, é um aneurisma, pode acabar a qualquer momento. É o sal da terra e há-de matar-nos aos dois de sede, podes aceitar isso? E ele de mãos entre os joelhos, olhos baixos, gabardine, a chuva a entrar-lhe pelos ténis de pano e a mulher e um gato à espera em casa. Uma vez na nave central, na igreja de São Luís dos Portugueses em Chamas, vimos um pano pegar fogo  à estátua de um santo. Ficámos os dois imóveis, a ver o fogo alastrar, quando corremos para a saída, eu segurei-o pelos ombros no umbral, ele desequilibrou-se rente aos degraus e eu encurralei-o contra o ângulo da parede e segurei-o. Ao fim de apenas alguns minutos ele parou de se debater. Ele afastou-me o cabelo da testa, passou-me um dedo pela cicatriz acima do olho esquerdo. Cegos e sufocados pelo fumo, enquanto ratos e baratas fugiam por todos os cantos e num berro a palavra de um arcanjo lhe rebentava nos lábios. Como uma canção rápida e triste, porque todos os santos são indestrutíveis quando cumprem os seus rituais de passagem. Mas o primeiro passo em falso garantirá que eles nunca serão perdoados, ou nunca serão perdoados como esperavam. E ainda assim continuo a imaginar que a cabeça dele se podia segurar ao alto, como os cavalos que correm a cortar estes campos contra o rio e contra o gelo. Queríamos apenas uma coisa fácil nessa altura. Não a complicação da luz a tombar do alto, essa escureza de dona pura com as pernas em arco, mas um abrigo aonde voltar ao fim do dia. Os santos também deviam poder lamber as feridas em paz. 
Um grupo de três adolescentes passa com gorros enterrados até aos olhos, um deles esbarra contra Rafael, que está demasiado bêbado para se desviar. Uma estufa parece crescer metodicamente no inverno, nenhum animal da estação a interrompe. Há uma impunidade para os meus crimes, eu ter queixas, andar de cabeça descoberta, esperar que Rafael se estatele ao comprido no gelo, uma das asas que ele esconde enlameada. Quando aprendíamos os dois a caminhar em linha recta, ele falava-me de brandos costumes: um bando de coisas varridas para debaixo da cama, um modo de desleixo. No mundo da técnica esta é a última grande arte que os santos cultivam.
É quando me lembro melhor que antes de haver estufas, já choveu em São Luís dos Portugueses em Chamas. Da qual os locais continuam a dizer chuva a cântaros. Quando os santos que ardem até ao fim são capazes de melhor virar as palmas das mãos para cima, e deixar cair. 

*

Este conto forma um díptico com outro, anteriormente publicado pela Enfermaria 6.

Lobo Antunes, Neptuno

Lês esse gajo?, perguntou-me António Lobo Antunes de nariz torcido, não escreve nicles, é um zero à esquerda, mais valia embrulhar o palavrório e enfiá-lo num sítio que sabemos. É assim que andas à noite?, inquiriu, sem sair da sombra. De robe, pantufas e cuecas e romance pobrezinho que me auxilia a gastar o tempo necessário para que os cães se cansem no jardim. Se soubesse que encontraria o génio encostado a uma parede a fumar, teria trazido outra farpela. Uma camisa azul bebé engomadinha. As feras ladravam e corriam uma atrás da outra e eu lia num dos poucos recantos alumiados do jardim, embora a cacimba, essa mistura de frio com humidade, me dificultasse a tarefa. Empanzinas-te de lixo, tolo, aproveita que o cão malhado defecou para apanhares as fezes com folhas dessa resma a que nem sob tortura me atreveria a chamar livro. Anda daí, murmurou e virou-me as costas, deixando-se engolir pelo escuro. Não carregues trampa. O livro que trouxera de casa não entrou no Renault 4 L vermelho debotado que nos conduziu ao rio. A verdadeira literatura é esta brisa gelada, a ponta do cigarro ardendo na escuridão, os cacilheiros vagando com suavidade pelas águas barrentas que nos reclamam o corpo. O que te aflige?, perguntou-me o génio com uma doçura tal que dava a sensação de falar sem mover os lábios. Não chegar aos pés de Lobo Antunes, respondi. Entrámos nus no rio. Lobo Antunes de cigarro na boca. Tenta ser tu mesmo, murmurou, um novo tu consciente de que Napoleão teve de acreditar em Napoleão para que Napoleão existisse. Quis saber o que deveria fazer em relação às pessoas que me incomodavam, aos melhores escritores do ano, segundo a revista x e y, aos premiados, aos que conheciam o meio. Desejava dar um destino à inveja e ao ressentimento. A água dava-nos pelo peito. Lobo Antunes sorria. Transforma os sentimentos naquilo que queres ser. E os outros?, insisti. Entre esses talentos existe alguém chamado William Shakespeare?, questionou. Não, disse. Continuámos a afundar-nos e os maus sentimentos e as rugas e os cabelos brancos e a miopia e a surdez e as cicatrizes desapareceram, enquanto nadávamos não sabíamos o significado da inveja, do ódio, do ressentimento ou da vaidade, o rio sujo dera lugar a um cristalino mar azul habitado por baleias, orcas, golfinhos e tubarões, e Lobo Antunes era Neptuno e guiava-me para a luz. Acordei sem Lobo Antunes a meu lado. Noite cerrada e uma folha em branco pousada numa mesa. O suplemento literário da semana anterior a meus pés. Beatas de cigarros. Copos vazios. As buchas para a depressão, coitada da depressão, que não aguenta sem os caramelos mágicos. Lobo Antunes em mim, dentro e fora de mim. Sentei-me a escrever. Risquei as primeiras frases. Recomecei a escrever sem riscar, a escrever com humildade, sem vergonha de não ser Neptuno, não parei até me passar o desejo de ser outro e o desejo de me atirar ao rio em busca de um génio existente em sítio nenhum.

 

 

 

 

 

 

 

 

O inverno mais sem sol

Odeio-o, qualquer dia enfarda um balázio, assim pensei ao cumprimentar com um aceno o médico que semana sim, semana sim exige a minha presença no seu consultório a transbordar de alienados.  O meu caso difere de outros. Não sou um louco, dois ou três comprimidos para a ansiedade e outro para adormecer despachariam esta agitação. Se não me tivesse comprometido a comparecer nestas reuniões de grupo, os meus dias seriam mais tranquilos. Evitaria irritações que só a fuça do terapeuta me traz. Irritou-me ter sido tratado como uma criança por ter faltado a um punhado de sessões sem aviso prévio e irrita-me a maior parte das disparates que lhe sai da boca, até os seus silêncios me irritam. Esta criatura perguntou-me que fantasias alimento em relação a uma outra paciente chamada Maria Antonieta. Fiquei fulo. Não alimento fantasias. Fantasias, doutor, ora essa, deseja que dedique umas frases ao assunto da fantasia? O especialista retorquiu que sim, que o grupo ansiava pelos meus ensinamentos. Corei e engasguei-me, não esperava que estivessem dispostos a ouvir-me, que bastaria despejar fúria e calar-me. O mundo é uma fantasia, comecei, sem grandes certezas sobre aquilo que deveria dizer, mas disposto a não dar ao doutor o prazer de me ver falhar. Nenhum dos presentes na sala é capaz de explicar o que é o mundo, não o conhece na totalidade. Prossegui: cada um de nós possui uma visão limitada, não sabe o que é o mundo, quem são os seus pais ou os seus filhos. Não se conhece algo ou alguém por inteiro, fantasiamos sobre aquilo que nos rodeia. O doutor perguntou-me outra vez qual a minha fantasia sobre a Maria Antonieta. Poder-lhe-ia ter dito que a minha fantasia consistia em acreditar que a Maria Antonieta apreciava ser chicoteada e chicotear. Mal conheço a mulher. Não gosta de mim, é envergonhada, tem um perfume horrível e  é feia. Sei isto a seu respeito. Sei também que não se separa de um marido que a espanca. O doutor tem alguma razão: estou cheio de fantasias. Mas questiono-me se não será tudo uma fantasia, se as crenças e convicções, se a própria ciência não se resume a uma fantasia. O mundo como uma fantasia, o mundo como algo que não existe, eu como uma fantasia. Se afirmar que o mundo não existe, que não existimos, quero com isto dizer que não há possibilidade de algo ou alguém existir quando a nossa percepção é parcial e limitada. Vemos fragmentos que não constituem uma unidade. Terminei de divagar e o terapeuta esboçou um sorriso folgazão e depois largou uma valente gargalhada e perguntou-me o que sentia naquele momento. Nada, rosnei. O nada não existe na terapia, o nada por mim cuspido traz consigo nojo e desprezo. Ocorreu-me afirmar que, como lera em Freud, o paciente transfere, passados alguns meses de tratamento, sentimentos agradáveis ou hostis dos pais ou da infância para o terapeuta, e que no meu caso transferira a hostilidade para o homem que me tratava. Guardei para mim a conversa da transferência, esperando que daquela bocarra saíssem soluções para os meus problemas.