O vizinho está a construir uma estufa que há-de tapar a vista da minha janela. A vista dá para uma macieira raquítica, plantada no jardim dele, infestada de piolhos, que só pode ser descrita como um dente podre no sorriso do bairro. Já discutimos sobre isto na reunião dos condóminos, já lhe deixei bilhetinhos na caixa de correio e já o ameacei com uma denúncia ao council. Ele sorri-me educadamente e diz que ainda me há-de enviar um cesto de morangos. Enfiar é o verbo que me passa pela cabeça, para ser honesta. Ele é alto, fala inglês com carregado sotaque alemão e o meu vulto na janela incomoda-o na ordem da mosca no parapeito. Comecei por tentar tolerar a situação. A princípio pensei, é uma pequena alteração. Mas a alteração não é pequena. A estufa vai tapar toda a vista do jardim. É alteração na ordem da afirmação do poder, como os tipos que abrem demasiado as pernas nos assentos do metropolitano, não deixando espaço aos restantes. À medida que o tempo foi passando, posso cada vez menos ver a estrutura crescer, a sucessiva montagem das vigas, mais tarde tapadas pelos blocos de vidro que formam as paredes, como a carne a ligar-se aos ossos, sem alimentar a impressão que isto está a ser feito a partir do interior do meu corpo, como se a estrutura fossem os meus ossos e os meus músculos um a um estivessem a ser rasgados para serem substituídos por este ambiente controlado e artificial. Peço apenas um incêndio sem complicações ou um furacão localizado, como o que atingiu a macieira no inverno anterior. Se o universo me tolera, podia fazer-me este pequeno favor. O meu vizinho alemão iria recebê-lo estoicamente, como um gancho pelo nariz no ringue de boxe e eu poderia continuar a enganar-me humildemente com a possibilidade de haver espaço que chegue para mim no planeta. Saio de casa, está frio suficiente para acreditar que estou a dar uma volta dentro do frigorífico e dirijo-me ao pub da esquina, versão de estufa para humanos. O pub a esta hora está infestado pelos portugueses do bairro, que, vésperas de natal, se juntam em bandos para recitar, com a fúria tresloucada de um bando de aedos à solta em Delos, a longa lista de tudo o que vão comer e beber na eminente visita à ditosa pátria amada. Introdução ao choque cultural: entrar num pub e ouvir alguém pronunciar a expressão “sande de leitão”. Alguns deles têm sempre a mesma música na cabeça, se bem que boa parte nunca o admitiria e só não existe um exército de fotografias de mulheres e crianças dentro das carteiras, porque está tudo nos smartphones. Destes uma porção não fala inglês ou fala muito mal, são baixos e fortes como carneiros, mas se tiverem de entrar numa farmácia para pedir um medicamento para a dor de dentes, não há vontade que lhes valha e são reduzidos à mímica desajeitada de um urso. Completamente desprotegidos, muitas vezes acabam a pedir ajuda a Rafael, que fala um inglês elegante e cuja pesada mão cai sobre o meu ombro, “Miúda, valha-me São Luís dos Portugueses em Chamas, tu aqui a esta hora?” Eu pergunto-lhe se ele tem a certeza que o São Luís dele em vez de estar em chamas não está antes em chagas, é que fazia mais sentido, não, ele diz que em chagas nem pensar, para que raio havia eu de querer um santo em chagas, para mais nesta altura do ano, eu vou a retorquir, sofrimento piedoso, martírio lento, e ele nem pensar, a arder, cá um santo todo escarafunchoso, ele está à procura do isqueiro e lembro-me de que já tivemos esta conversa antes, foi como tentar entreter o Minotauro. São Luís da Pena é o bairro onde ele cresceu em Lisboa. Quando ele quer falar de casa, Rafael enrola, e eu tento não perder a paciência. Rafael não sabe como falar de casa. Não sou particularmente perspicaz e é só depois de beber um ou dois copos que entrevejo pelo postigo oblíquo do santo em chamas, da auréola até aos pés, fogo no cabelo, no peito, a cabeça a rodopiar no amparo da mão que começa a pegar fogo, o rosto a aquecer como uma queimadura, o vermelho há-de ter de me olhar nos olhos, e do santo a arder virá um eco da ferida distante da infância, a alegria de ser de noite, estar frio, de ainda não estar longe que chegue. Eu sei que ele é como eu, Rafael, ou pior, os pesadelos dele acontecem todos no passado. Daqui vai para casa, para a mulher, há-de pôr os sapatos à entrada, arrumá-los ao lado dos ténis de correr, das botas de neve. Pendurar o casaco no prego certo, tirar a gravata. A imaginação depois há-de correr até à humilhação da porrada acossado contra o portão de casa, quando era ainda um miúdo e entenderam que havia nele outra coisa que o separava do bicho, uma vontade larga como uma nota estridente numa corda de luz, uma fome acesa e traidora, a primeira noite de guarda, sem dormir, quando entendeu que o iam tentar partir ao meio, ainda que ninguém viesse para lhe arrancar os braços ou separar as pernas do tronco, mas aos primeiros golpes do pai ou da mãe ele sentiu-se desmembrado, ele sabia que nunca mais ia voltar a casa. Os olhos do cão ao fundo, o tempo que aquilo durou, os olhos do cão cheios de uma pena assustada e humana. Uma bátega de água e um longo uivo por mim, principezinho sem a minha raposa, foi o que ele me disse quando lhe perguntei por self-pity. Que me caísse nos ouvidos como um grande relógio a partir-se. Filhos da puta. Não havia água que chegasse para lavar as pedras junto ao portão, a minha cabeça contra uma das dobradiças e eu a pensar quanto tempo até o ferro me furar a testa. Nem sequer filhos da puta, muito abaixo disso. Quanta vezes podemos pensar na primeira traição como um favor, como uma iniciação? Eles dividiram-me ao meio naquela tarde e seguiram a cortar mais um pouco de cada vez. Mas se me afastar o suficiente ninguém me quebrou, eu pareço completamente inteiro. Não há em todo o meu corpo a marca de uma única ferida. Não é bem verdade. Quando Rafael aqui chegou, furou com uma agulha a orelha direita, há uma marca acima do lóbulo, para que não se esqueça de onde isto começou. São Luís dos Portugueses em Chamas. Tentamos sair para fora e há uma tempestade de neve a cair sobre as mesas no jardim. Começou com pequenos flocos, sem vontade, e depois o vento puxou com mais força, subiu do rio. Penso em dizer alguma coisa sobre os remadores no canal, no rodopio uma das lanternas num dos barcos estilhaça-se. Saio para ver a confusão e dirijo-me à cabine telefónica mais próxima. Eu sou um tipo muito particular de emigrante. O que não tem consigo qualquer número de telefone de casa. Os vidros da cabine cobrem-se de branco, como os vidros da estufa se há-de cobrir de branco. E um corpo pode ser de gelo e ao mesmo tempo prático que chegue. Pessoas de gelo podem ter coisas em comum, embora não seja possível averiguar se as suas vértebras se derretem sem se partir. Rafael cambaleia pelo cercado junto ao rio. Um santo ferido, seria agora aconselhável regá-lo com querosene e atirar-lhe um isqueiro aceso. A minha proposta não é indignante. Um santo é um santo porque já sofreu tudo o que tinha a sofrer. Eu não consigo bem entender isto. Como perceber onde pode o sofrimento parar, esgotar-se. Também ele é uma paixão, uma grande inquietude com os seus rituais, depois de uma certa dose de sofrimento, se restar nele alguma dignidade, ele nunca mais vai voltar ao normal. Eu revejo-me e a Rafael a caminhar por um cercado numa tarde de sol em Lisboa, as mãos dele são incrivelmente pequenas, e quando nos abraçamos, antes de nos despedirmos, eu percebo o quão frágil ele é. O sofrimento é só um começo, ele volta e renova-se de cada vez, liga-se por ressonância à humilhação anterior e forma uma longa cadeia. Eu entretenho mágoas que têm seis meses, mágoas que têm seis anos, pequenos embaraços que me causam sofrimento e que na verdade foram ninharias que eu podia ter perdoado. Na verdade, eu dirijo um departamento de corrupção. Não é que tenha de ser honesta sobre isto, os meus sofrimentos contaminam as minhas memórias felizes. Rafael continua a diminuir junto ao gradeamento do rio, a sombra dele, isto é. Eu podia explicar-lhe o quanto ele é inteiro. O meu problema é que não o saberia dizer sem ser desajeitadamente, sem que se assemelhasse a bajulação. O nosso amor é pobre, exíguo, ridículo. Continuam a atirar-nos com imagens de um grande romance de highschool americano, o capitão da equipa e a cheerleader, e na verdade a única coisa real somos nós dois sozinhos num quarto que se pode repercutir na cabeça como um incêndio. O meu amor por ti, miúdo, é um aneurisma, pode acabar a qualquer momento. É o sal da terra e há-de matar-nos aos dois de sede, podes aceitar isso? E ele de mãos entre os joelhos, olhos baixos, gabardine, a chuva a entrar-lhe pelos ténis de pano e a mulher e um gato à espera em casa. Uma vez na nave central, na igreja de São Luís dos Portugueses em Chamas, vimos um pano pegar fogo à estátua de um santo. Ficámos os dois imóveis, a ver o fogo alastrar, quando corremos para a saída, eu segurei-o pelos ombros no umbral, ele desequilibrou-se rente aos degraus e eu encurralei-o contra o ângulo da parede e segurei-o. Ao fim de apenas alguns minutos ele parou de se debater. Ele afastou-me o cabelo da testa, passou-me um dedo pela cicatriz acima do olho esquerdo. Cegos e sufocados pelo fumo, enquanto ratos e baratas fugiam por todos os cantos e num berro a palavra de um arcanjo lhe rebentava nos lábios. Como uma canção rápida e triste, porque todos os santos são indestrutíveis quando cumprem os seus rituais de passagem. Mas o primeiro passo em falso garantirá que eles nunca serão perdoados, ou nunca serão perdoados como esperavam. E ainda assim continuo a imaginar que a cabeça dele se podia segurar ao alto, como os cavalos que correm a cortar estes campos contra o rio e contra o gelo. Queríamos apenas uma coisa fácil nessa altura. Não a complicação da luz a tombar do alto, essa escureza de dona pura com as pernas em arco, mas um abrigo aonde voltar ao fim do dia. Os santos também deviam poder lamber as feridas em paz.
Um grupo de três adolescentes passa com gorros enterrados até aos olhos, um deles esbarra contra Rafael, que está demasiado bêbado para se desviar. Uma estufa parece crescer metodicamente no inverno, nenhum animal da estação a interrompe. Há uma impunidade para os meus crimes, eu ter queixas, andar de cabeça descoberta, esperar que Rafael se estatele ao comprido no gelo, uma das asas que ele esconde enlameada. Quando aprendíamos os dois a caminhar em linha recta, ele falava-me de brandos costumes: um bando de coisas varridas para debaixo da cama, um modo de desleixo. No mundo da técnica esta é a última grande arte que os santos cultivam.
É quando me lembro melhor que antes de haver estufas, já choveu em São Luís dos Portugueses em Chamas. Da qual os locais continuam a dizer chuva a cântaros. Quando os santos que ardem até ao fim são capazes de melhor virar as palmas das mãos para cima, e deixar cair.
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Este conto forma um díptico com outro, anteriormente publicado pela Enfermaria 6.