À espera dos Bárbaros – Sobre Pasolini, Sena e Kavafis no Centenário do Nascimento de Jorge de Sena

10615122.jpg

1.

Uma das peças de teatro mais violentas que conheço, Affabulazione, foi escrita por Pasolini em 1966. O mito acerca da origem do texto reza que Pasolini estava internado com uma úlcera e que escreveu o texto em poucos dias. O texto é tão amargo e violento quanto o que seria de esperar primeiro, bem, de um Pasolini inclinado à reflexão social, e depois de um autor que o escreveu violentamente doente. A publicação só aconteceria em 1968, na revista Nuovi Argomenti, e a primeira encenação só viria a acontecer em 1975, alguns meses depois do assassinato do autor, levada a cena por um jovem grupo de teatro amador em Turim. A peça inverte o mito de Édipo para se tornar uma espécie de re-encenação alucinada do mito de Cronos. Um pai, um rico industrial de Milão, desenvolve uma paixão mórbida pelo filho, incontrolável e irracional. A família, dominada pela figura opressiva do pai, torna-se uma metáfora para tudo o que existe de errado na Itália pós-fascista, desde a fraca consciência histórica, até à opressão de sistemas de poder patriarcais, passando pelo corte radical entre a geração nascida entre as guerras e os seus descendentes (o filho nada tem que ver com o pai, nem lhe importam as coisas que a ele o moviam, a saber, a trindade infernal do capitalismo – a acumulação de dinheiro, poder, uma imagem vazia de sucesso). À medida que a peça avança, a acção converte-se numa denúncia violenta da canibalização da geração dos filhos pela geração dos pais, através de uma paródia negra, nas páginas finais, da hipocrisia da guerra do Vietname. Texto eminentemente político, e de uma beleza maldita e surpreendente, trata-se da recriação de um mito clássico, e do exercício da função mais profundamente clássica do teatro, reflectir sobre a vida política e ética de um estado, a partir de um olhar crítico lançado sobre a estrutura ao mesmo tempo mais privada e mais pública de uma sociedade: a família. Essa mesma estrutura que, na Itália de Mussolini, tinha sido instrumentalizada e corrompida ad nauseam

Em vida de Pasolini, e até recentemente, Affabulazione, peça tão investida em irritar o público levando a cena tabus de ordem sexual que convocam o nosso horror, e ao mesmo tempo peça tão profundamente moral, foi um texto raramente levado a cena. Parece, no entanto, por um motivo ou outro, estar a ter um ressurgimento. 

col-lite-6941.jpg

2. 

Cinco anos antes de Pasolini jazer numa cama de hospital a recuperar de uma úlcera, entretendo o tempo de convalescença com reescritas escandalosas de Sófocles, em 1961, Jorge de Sena, já no Brasil, começava a escrever os contos que viriam a ser coligidos no seu terceiro livro de contos, Os Grão-Capitães, um dos mais importantes livros escrito sobre Portugal no século XX. O período de escrita parece ter sido rápido. De acordo com o prefácio do autor à edição de 1971, entre Março de 1961 e Junho de 1962 todos os contos pareciam estar escritos e revistos. Entre 1963 e 1964, em cartas a José Augusto França e Vergílio Ferreira, respectivamente, Jorge de Sena fala do livro talvez um pouco como o aluno que sabe que terminou de escrever o exame final dez minutos depois de este ter começado e que agora terá de permanecer indefinidamente à espera para poder abandonar a sala onde tudo se passou. Não parecem exactamente cartas de uma melancolia infernal, mas em retrospectiva poucas coisas devem ser mais intoleráveis para um escritor. Numa carta a José Augusto França, datada de 1963, Sena diz que continua a pôr e a tirar vírgulas desse livro que a ser publicado resultaria na sua “excomunhão total;” na carta a Vergílio Ferreira, datada do ano seguinte, conclui o autor que a “violência escatológica” do livro, na sua agressividade, tornava o livro “absolutamente impublicável” em Portugal. Um ensaio da especialista em Jorge de Sena, Margarida Braga Neves, intitulado “Os contos impublicáveis de Jorge de Sena,” discute com o tipo de pormenor que não é do âmbito desta nota minimalista, a questão da ficção breve (e menos breve) de Jorge de Sena enquanto objecto impossível de publicar durante a ditadura de Salazar. 

3.

Um pouco como o que sucedera com a peça de Pasolini, levada a cena pela primeira vez apenas em 1975, já nos meses finais da guerra do Vietname, os contos coligidos em Os Grão-Capitães só iriam ver a luz do dia em 1976, dois anos depois da queda da ditadura. Na carta escrita a Vergílio Ferreira, citada no ensaio que mencionei acima, no entanto, Jorge de Sena, para tirar as suas conclusões sobre a impossibilidade de publicação do volume, enumera os elementos e agentes sociais a que os contos se referem: “...exército, marinha, clero, guerra de Espanha, guerra de Angola, família, prostitutas e pederastas, literatos...;” e conclui na nota que parece aproximar este volume da peça de Pasolini: “...tudo é descrito, referido e dito, nos termos da obsessão sexual que corresponde à castração da vida portuguesa nos últimos anos...” 

Os contos mais conhecidos de Os Grão Capitães são, respetivamente, “Homenagem ao Papagaio Verde” e “Grã-Canária.” Um é a evocação de uma infância solitária, em grande parte definida pela personalidade largamente ausente e opressiva de um pai oficial de marinha, uma infância cujo isolamento é interrompido apenas pela presença de um amigo inesperado que se apresenta na figura de um papagaio verde; no outro trata-se da narrativa da viagem de um grupo de jovens oficiais, que termina ela própria em opressão e vingança. Há, em todos os contos, um ângulo quase neo-realista e um lado profundamente estético. O volume contém um conto menos famoso, “Os Irmãos,” que é, à superfície, sobre prostituição masculina, um engate num café com uma geometria tão intricada como a de um quadro cubista, que sucede talvez em dois eixos temporais, mas cujo pano de fundo é a decadência de um regime obscurantista e corrupto, o salazarista, cuja corrupção opera por uma mistura de opressão mantida sobre corpos e mentes, quase invisível, como no poema de Sophia, Elsinore (“No entanto o mal não se via/ era apenas um leve sabor a podre que fazia parte/ Da natureza das coisas” – este poema pode ser encontrado no livro Ilhas, datado de 1989). A corrupção da juventude e da beleza por uma combinação perversa de homofobia (a sexualidade como segredo sujo, para ser exercido elicitamente e como vil moeda de troca), pobreza e abuso de uma geração mais jovem por outra mais velha, que na verdade, não o explicitando Sena no conto mais do que pelo que fica implícito na narração milimétrica de todos os movimentos de um rapaz numa cena de engate onde figuram, entre três elementos, um proxeneta e o que se infere ser um prostituto, são elementos que são vitais para entender porque é que a ditadura em Portugal conseguiu durar muito mais do que em qualquer outro país do sul da Europa. Mas talvez fosse importante notar aqui o que Sena não diz – a palavra prostituto nunca é mencionada em relação com o rapaz no centro do esquema narrativo do conto, do mesmo modo que a única vez que a palavra amor é utilizada para referir um encontro entre duas pessoas do mesmo sexo é para ser vilmente escarnecida. 

4.

Thomas Couture, Les Romains de la Décadence, 1847 (Musée d’Orsay)

Thomas Couture, Les Romains de la Décadence, 1847 (Musée d’Orsay)

Em 1953, muito cedo na história das traduções de Kavafis na Europa, o atentíssimo jovem Sena publicou em jornais uma série de poemas do autor alexandrino, numa altura em que, tanto quanto sei, os únicos editores europeus de Kavafis tinham sido E. M. Forster e Leonard Woolf (as traduções de John Mavrogordato, que seriam a base destas traduções de Sena foram primeiro publicadas na The Hogarth Press em 1951). Na lista desses poemas que mais tarde viriam a ser coligidos no volume 90 e Mais 4 Poemas (primeira edição de 1970), a primeira tradução portuguesa, em livro, de Kavafis, figurava o poema À Espera dos Bárbaros.

Esse poema, À Espera dos Bárbaros, que foi escrito originalmente em 1898, uma década antes de Kavafis encontrar a maturidade do seu estilo, por volta de 1911, tem um precedente visual e um eco próximo num quadro datado de 1847, de Thomas Couture, que está hoje no Musée d’Orsay, Romains de la Décadence. No centro, os romanos da decadência entretêm-se com uma orgia, mas nas margens do quadro, à esquerda um rapaz desvia um olhar entre o reprovador e o melancólico, e à direita, duas figuras, cujas barbas e togas coloridas sugerem que eles são bárbaros, lançam olhares de reprovação e não se juntam ao centro. A época deste quadro é a mesma em que Baudelaire começaria a escrever sobre os Salons, sobre Ingres e Degas até chegar ao ensaio O Pintor da Vida Moderna, sobre um ilustrador vagamente obscuro, Constantin Guys, cujos interesses de ilustração não eram tanto os bárbaros como carruagens e mulheres às janelas das cidades de todos os dias. 

À Espera dos Bárbaros é, no entanto, um dos poemas fundamentais de Kavafis, e um dos mais citados e a sua publicação em 1953 por Sena é um acto de resistência e desafio. Como no quadro de Couture, é sobre o que se adivinha ser a necessidade dos bárbaros, que tardam em chegar a uma cidade em declínio, o declínio de uma civilização, corrupção, e uma perspectiva ética às margens do centro, essa mesma marginalidade que Kavafis revisitaria obsessivamente nas personagens que povoam os seus poemas, que surge de outro modo na figura do rapaz do conto de Sena, embora ele pareça à partida privado da dignidade que encontramos em muitas das personagens de encontros homossexuais clandestinos em Kavafis. Alguns destes elementos ressurgem na peça de Pasolini, no abismo entre a geração do pai, a geração da Itália do pós-primeira guerra, cuja ordem social era ainda reminiscente (e em muitos casos) saudosa do fascismo, e a do filho, a geração da década de ’60, essa cuja canibalização por parte da geração dos pais teria na guerra do Vietname o seu símbolo global mais terrível e evidente, e nos acontecimentos do Maio de ’68 em Paris um grito de revolta.

Os acontecimentos e estruturas sociais que Pasolini critica em Affabulazione – uma hipocrisia social oriunda de uma opressão constante que desumaniza as pessoas –, têm um eco no tipo de comentário social que o teatro desse conto vagamente obscuro de Os Grão-Capitães encena. Talvez nenhum tema tenha definido tanto o percurso intelectual de Sena como este e talvez nenhum permita entender tão bem porque é que ele é um escritor à escala dessas figuras centrais da literatura europeia do século XX, nomes como Kavafis ou Pasolini. Sena apontaria talvez na necessidade desta comparação um sintoma do nosso provincianismo cultural, mas o que queria fazer com esta nota era apontar apenas que, um pouco como no poema de Kavafis e na peça de Pasolini, os contos impublicáveis de Sena eram, à data em que eram impublicáveis, um modo de almejar pelos bárbaros, uma das muitas formas pelas quais a literatura pode dramatizar a necessidade de chegada de um mundo sem o qual nem se chega verdadeiramente existir (o irmão gémeo, do lado da “lusofonia” deste volume de contos, será Nós Matámos o Cão Tinhoso, do autor moçambicano Luís Bernardo Honwana, cuja escrita é contemporânea dos contos de Sena). Talvez nada seja para ser celebrado e recordado tanto neste centenário de Sena, quanto isto. 

Oxford, 10, 17 e 24 de Novembro de 2019

Subsídios para a criação de uma polícia poética

para o Ricardo Marques

 

é altura de admitir
que os esforços
de um ou dois críticos
apesar de heróicos
não são suficientes
e que hoje
mais do que nunca
é necessário
que o estado
tome medidas firmes
sobre o oeste selvagem
que se tornou
a poesia em Portugal

uma entidade isenta
que certifique
a verdadeira poesia
legisle
sobre a temática
regule a forma
promova
a criação de léxicos
de termos poéticos
e anti-poéticos
nomeie comissões
de eventos
defina critérios de avaliação
sem esquecer
os anos de serviço
seja firme
na defesa do interesse público
contra os lobbies
do verso branco
e decida por fim
a penosa questão da rima

e sobretudo
que proteja
os cidadãos cumpridores
da poesia iníqua
o artifício
desprovido de sentido
aplique coimas
aos que escrevem poemas
sobre escrever poemas

"Cascando" de Samuel Beckett

Untitled_l.jpg

Tradução de Tatiana Faia

1


por que não apenas os desesperados
de ocasião de
derramamento de palavras 

melhor antes abortar do que ser estéril

as horas depois de te ires embora são tão de chumbo
começam sempre a arrastar-se demasiado cedo
as garras rasgam cegamente o leito da carência
trazendo ao de cima os ossos os velhos amores
cavidades preenchidas outrora com olhos como os teus
tudo sempre é melhor demasiado cedo que nunca  
a negra carência salpica-lhes os rostos
diz nove dias nunca fizeram flutuar o amado
nem nove meses 
nem nove vidas

  

2

diz de novo
se não me ensinares não aprendo
diz de novo há uma última
mesmo última das vezes
última das vezes para suplicar
última das vezes para amar
para saber não saber para fingir
uma última mesmo última das vezes para dizer
se não me amas não serei amado
se não te amo não amarei

palavras rançosas batidas no coração de novo
amor amor amor baque de um velho pistão
pisando o inalterável 

coalho de palavras
aterrorizado de novo
para não amar
para amar e não tu
para ser amado e não por ti
para saber não saber para fingir
para fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a menos que te amem

Anne Sexton, "O peito"

Tradução: João Coles

O peito

É esta a chave.
É esta a chave para tudo.
Preciosamente.

Sou pior do que o encarregado das crianças
na apanha do pó e do pão.
E cá estou eu a angariar perfume.

Deixa que me deite no teu tapete,
no teu colchão de palha – o que estiver à mão –
porque a criança dentro de mim está a morrer, a morrer.

Não que eu seja gado para ser comido.
Não que eu seja uma espécie qualquer de rua.
Mas as tuas mãos encontram-me qual arquitecto.

Uma jarra cheia de leite! Era tua anos atrás
quando vivia no vale dos meus ossos,
ossos torpes no pântano. Pequenos brinquedos.

Talvez um xilofone com pele
em cima esticada desajeitadamente.
Apenas mais tarde se tornou em algo real.

Mais tarde medi-me com as estrelas de cinema.
Não tinha medidas. Havia alguma coisa
entre os meus ombros. Mas nunca o suficiente.

Sim, havia um campo,
mas nenhum jovem cantando a verdade.
Nada que cantasse a verdade.

Desconhecendo os homens quedo-me ao lado de minhas irmãs
e ao erguer-me das cinzas bradei
o meu sexo será trespassado!

Agora sou tua mãe, tua filha,
o teu brinquedo novinho em folha – um caracol, um ninho
Estou viva quando os teus dedos estão.

Visto seda – um véu para desvelar –
pois é em seda que quero que penses.
Mas não gosto do tecido. É demasiado austero.

Diz o que quiseres mas trepa-me como um alpinista
pois eis o olho, eis a jóia,
eis a excitação que o mamilo aprende.

Sou desequilibrada – mas não estou louca de neve.
Estou louca da mesma maneira que as jovens são loucas
com uma oferenda, uma oferenda...

Ardo como o dinheiro arde.


The breast

This is the key to it.
This is the key to everything.
Preciously.

I am worse than the gamekeeper's children
picking for dust and bread.
Here I am drumming up perfume.

Let me go down on your carpet,
your straw mattress - whatever's at hand
because the child in me is dying, dying.

It is not that I am cattle to be eaten.
It is not that I am some sort of street.
But your hands found me like an architect.

Jugful of milk! It was yours years ago
when I lived in the valley of my bones,
bones dumb in the swamp. Little playthings.

A xylophone maybe with skin
stretched over it awkwardly.
Only later did it become something real.

Later I measured my size against movie stars.
I didn't measure up. Something between
my shoulders was there. But never enough.

Sure, there was a meadow,
but no young men singing the truth.
Nothing to tell truth by.

Ignorant of men I lay next to my sisters
and rising out of the ashes I cried
my sex will be transfixed!

Now I am your mother, your daughter,
your brand new thing - a snail, a nest.
I am alive when your fingers are.

I wear silk - the cover to uncover -
because silk is what I want you to think of.
But I dislike the cloth. It is too stern.

So tell me anything but track me like a climber
for here is the eye, here is the jewel,
here is the excitement the nipple learns.

I am unbalanced - but I am not mad with snow.
I am mad the way young girls are mad,
with an offering, an offering…

I burn the way money burns.