Pier Paolo Pasolini, “Trabalho o dia inteiro como um monge”

Tradução: João Coles

Trabalho o dia inteiro como um monge
e à noite passeio como um gato vadio
à procura de amor... Proporei
à Cúria de ser declarado santo.
Respondo à mistificação
com a brandura. Observo com o olho
de uma imagem os afectos à linchagem.
Olho para mim mesmo massacrado com a serena
coragem de um cientista. Pareço
sentir ódio, e porém escrevo
versos plenos de oportuno amor.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Sinto piedade pelos jovens fascistas,
e aos velhos, que os considero formas
do mais horrendo mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que vê
tudo, voando, e leva dentro do coração
no voo em pleno céu a consciência
que não perdoa.

21 de Junho 1962,

In Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964


Lavoro tutto il giorno come un monaco
e la notte in giro, come un gattaccio
in cerca d’amore... Farò proposta
alla Curia d’esser fatto santo.
Rispondo infatti alla mistificazione
con la mitezza. Guardo con l’occhio
d’un’immagine gli addetti al linciaggio.
Osservo me stesso massacrato col sereno
coraggio d’uno scenziato. Sembro
provare odio, e invece scrivo
dei versi pieni di puntuale amore.
Studio la perfidia come un fenomeno
fatale, quasi non ne fossi oggetto.
Ho pietà per i giovani fascisti,
e ai vecchi, che considero forme
del più orribile male, oppongo
solo la violenza della ragione.
Passivo come un uccello che vede
tutto, volando, e si porta in cuore
nel volo in cielo la coscienza
che non perdona.


21 giugno 1962

Da Poesia in forma di rosa, Garzanti, 1964

Oxford em quarentena: algumas imagens

Quarta-feira passada foi um dia de chuva miudinha em Oxford. Uma amiga ficou retida na cidade porque se tornou muito complicado regressar ao seu país de origem, a Lituânia. Antes das medidas mais severas de lockdown, que entraram em vigor ontem, encontrámo-nos para caminhar um pouco. Algumas das fotografias abaixo foram tiradas na hora de ponta, em algumas das ruas mais movimentadas da cidade e em algumas das que atraem mais turistas. As duas últimas foram tiradas no dia seguinte, são pessoais e preferidas, uma é o gato de um dos meus vizinhos, que muito frequentemente está em cima do muro do prédio onde vivemos ou no jardim comum. Há vários dias que não o via e fiquei contente de reparar que a sua rotina prossegue, mais ou menos normalmente. A outra, é de uma oliveira que pertence uma das casas em St John’s Street, uma rua onde em dias normais passo muito, porque é onde está a biblioteca de clássicas, a Sackler Library. Penso que não terei quaisquer saudades destes passeios fantasmagóricos.

High Street

High Street

University Church of St Mary the Virgin

University Church of St Mary the Virgin

Magpie Lane

Magpie Lane

Oriel Square

Oriel Square

St Aldate’s

St Aldate’s

Christ Church Meadow

Christ Church Meadow

Christ Church College

Christ Church College

St John’s Street

St John’s Street

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Manuel Resende (1948-2020)

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Manuel Resende faleceu na semana passada, a 29 de Janeiro de 2020. Poeta, tradutor e um dos mais generosos homens de letras com quem tive a alegria de me cruzar. Servem estas breves linhas para o recordar e lamentar o seu desaparecimento. A primeira vez que me cruzei com Manuel Resende foi em princípios de 2011. Tinha eu então o projecto, um pouco estranho, mas que reuniu à sua volta algumas pessoas que estavam na altura a trabalhar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, gente na chamada categoria de jovens investigadores, de trazer à faculdade algumas pessoas para passarem um dia a falar de uma literatura de que raramente se fala em Portugal, mas que tantas coisas tem em comum com a nossa, o que não devia ser motivo para explicar por que é que a devemos ler (o motivo para ler qualquer tipo de literatura não deve ser tanto caso para que nos vejamos ao espelho, mas por curiosidade e porque, como dizia Susan Sontag em Sob o Signo de Saturno, ler e escrever são formas de felicidade, se não de alegria), mas de alguma forma serve para explicar que se tratava, e trata, de uma lacuna, uma coisa em falta. Nesse Inverno de 2011, eu achava que o que faltava à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa era falar de literatura grega moderna, e mais especificamente dos seus poetas. Ora, porque o Centro de Estudos Clássicos dessa universidade é um lugar aberto e generoso, deram-nos espaço e apoio institucional para organizar a coisa. Sendo isto Portugal, apoio institucional não quer dizer pagar seja a quem for pelo seu tempo e para falar desse assunto, mas antes que nos foi cedido algum espaço na Faculdade, bem como o nome da instituição para explicar o nosso contacto às pessoas que queríamos convidar. Talvez porque fôssemos jovens investigadores, ou porque a literatura grega moderna é coisa que interessa a pouca gente, quase toda a gente que contactámos, mesmo os tradutores de autores gregos, nos disseram que não. Tivemos uma imensa dificuldade em reunir um painel e a dada altura começámos a distribuir os autores de quem queríamos falar por alguns alunos e jovens investigadores. Mas, ainda assim, faltava-nos alguém que de facto entendesse verdadeiramente alguma coisa de literatura grega. Em desespero de causa e tendo recebido a nega de toda a gente que sobre esses autores poderia ter falado, resolvi ser megalómana e enviar um email à Assírio e Alvim, pedindo-lhes o contacto de alguém que não conhecia, Manuel Resende, o tradutor de Axion Esti, a obra-prima de Odysseas Elytis, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1973. A editora cedeu-me o email, mas eu, esperando que se repetisse o não com um longo atraso na resposta ao email, como sucedera com outros convidados, pedi a um colega para se ir preparando para falar de Elytis enquanto esperávamos a resposta de Manuel Resende. Lá enviei o email. A resposta veio cinco minutos depois. Não só Manuel Resende aceitou vir até à Faculdade falar de Odysseas Elytis, enviou-me imediatamente, na resposta, o texto que pretendia ler, bem como uma tradução, inédita em livro, de um poema de Elytis que eu nunca lera, Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia. Hoje escrevo este texto e, apesar de nunca ter sido particularmente próxima de Manuel Resende (mas dávamo-nos bem e de vez em quando correspondíamo-nos com dúvidas de grego antigo e moderno), sinto-me triste para lá do que se pode explicar com palavras e com os olhos cheios de lágrimas. Na altura, perante a resposta tão entusiasta e generosa de Manuel Resende, quando todos os outros nomes nos mandaram passear, fiquei, por uma parvoíce qualquer que me escapa, um pouco preocupada com as expectativas que este pequeno evento pudesse gerar num tradutor de renome. Dizia-me ele no email que tinha o texto pronto porque estava há uma década à espera de alguém na Faculdade de Letras que o convidasse a ir falar de Elytis. Manuel Resende veio, sentou-se connosco, leu do Áxion Esti, do Canto Heróico, do Monograma, podia ter lido da Maria Neféli, outra das obras-primas desse poeta maior do cânone europeu, lembrou-nos em toda aquela conversa que ler poesia e olhar para a vida dos poetas é uma maneira de mergulhar em profundidade não só na beleza do mundo mas num vasto repositório da nossa humanidade, que, parafraseando um poema de Jorge de Sena, pode ser difícil de reunir e manter. Manuel Resende, a ler Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia, fez pela audiência naquele anfiteatro o que alguém que não confunde o que seja falar de poesia com falar de retórica deve fazer por nós, deixou-nos profundamente comovidos, e alguns de nós lavados em lágrimas. Quero crer que, por estas horas, Manuel Resende está no céu dos literatos, com Elytis, Kavafis, Seferis, Ritsos, e tantos outros escritores que ele traduziu, pacientemente a clarificar as suas dúvidas de tradução, para garantir que aqueles de nós que o queiram, poderão ler esses poetas que seriam de outra forma inacessíveis. Só nós é que estamos mais pobres, mas, pelo menos eu, agradecida do fundo do coração.

Muitas das traduções de Manuel Resende do grego moderno seguem inéditas, como suspeito que tantas outras coisas que ele foi fazendo o estão, coisas feitas como a tradução e a apresentação dos textos de Elytis, com amor, uma impecável qualidade, e por generosidade e cuidado, e seria bom, se por uma vez, não caíssemos no marasmo da indiferença que vai tolhendo a nossa cultura, que é como quem diz empobrecendo o modo como estamos vivos, e fôssemos pondo esses textos cá para fora. 

Partilho aqui o link para as traduções e poemas de Manuel Resende que fomos publicando na Enfermaria ao longo do tempo.

Tatiana Faia

Oxford, 2 de Fevereiro de 2020

Pier Paolo Pasolini, "Sem ti regressava, qual bêbedo"

Fotos por Richard Avedon, 1966

Fotos por Richard Avedon, 1966

Tradução: João Coles

Sem ti regressava, qual bêbedo,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
Estive milhares de vezes só
desde que estou vivo, e em milhares de noites iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os montes ,
os campos, as nuvens.
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbedo,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)


Senza di te tornavo, come ebbro,
non più capace d’esser solo, a sera
quando le stanche nuvole dileguano
nel buio incerto.
Mille volte son stato così solo
dacché son vivo, e mille uguali sere
m’hanno oscurato agli occhi l’erba, i monti
le campagne, le nuvole.
Solo nel giorno, e poi dentro il silenzio
della fatale sera. Ed ora, ebbro,
torno senza di te, e al mio fianco
c’è solo l’ombra.
E mi sarai lontano mille volte,
e poi, per sempre. Io non so frenare
quest’angoscia che monta dentro al seno;
essere solo.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)

Idades do pensamento

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O título é pomposo, excede o que posso dizer sobre o que representa. É, pois, um mau título, leva ao engano criando falsas expectativas. Mas é um belo título, ou pelo menos assim o considero.

Nesta injunção antagónica emerge uma parcela importante da história da humanidade, resumida na pergunta: importa mais a beleza ou a verdade? Sabemos que as vagas religiosas, depois dos politeísmo festivo e antropomorfismo descarado da Grécia Clássica, hipertrofiaram outro pilar civilizacional: o do bem.

Temos, assim, o belo, a verdade e o bem (que Platão, esse grego desnaturado de uma rara lucidez, acrescentou sem dilemas ao mundo do luxo racional e sonho antropológico a que chamou Ideias). Eu, por pudor espiritual e experiência rasteira de vida, consigo facilmente evitar olhar para a realidade com os óculos do bem (embora me interesse a “common decency” de Orwell) e coloco cada vez menos os da verdade (uma palavra que exalta mais do que harmoniza, que serve melhor estratégias políticas e religiosas do que a ciência ou as boas dialécticas argumentativas).

Restam-me, então, os do belo, e é com eles que formato agora grande parte do meu pensar. Penso para encontrar o belo em cada coisa que leio, que ouço ou que vejo. Em cada coisa que vem do exterior ou do interior. De cima (das alturas inauguradas por Platão) ou de baixo (da espontaneidade, tantas vezes considerada espúria, do dia-a-dia). Até nas ilusões restropectivas ou nessa coragem líquida que é o álcool.

O objectivo, que só recentemente consegui exprimir (é incrível como podemos sentir intensamente uma perspectiva sem o suporte das palavras), embora esteja ainda longe de qualquer explicação mais elaborada, é, como em Georges Perec, procurar simultaneamente o eterno e o efémero (“Je cherche em même temps l’éternel et l’éphémère”, escreve). Até recentemente, acreditei que só os conceitos podiam alcançar a vastidão do tempo (o universal), ficando o temporário a cargo do discurso rotineiro feito de cem palavras que todos percebem. Mas não, terá de ser um dispositivo de linguagem, verbal ou outra, que, a partir do belo, crie uma nova cabeça de Janus, de um lado olhando para o efémero, do outro para o eterno.

Genial complexidade que, paradoxalmente, só se adquire passando por uma genial simplicidade. Nada que tenha que ver com a vontade heróica, é antes uma questão de idade do pensamento. Que não segue, desenganem-se os que romantizam o envelhecimento, a idade cronológica. Trata-se de uma condição adquirida depois de habitar à vez no obscuro e no claro, sempre um pouco por acaso (“Não é meia noite quem quer”, dizia René Char em mais um dos seus belos truques retóricos, socorrendo-se da imunidade artística concedida aos poetas).