e. e. cummings, poema 88
/tradução: João Coles
88.
um político é um burro sobre o qual
já se sentaram todos à excepção de um homem.
in 50 Poems (1940)
88.
a politician is an arse upon
which everyone has sat except a man
in 50 Poems (1940)
somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
tradução: João Coles
88.
um político é um burro sobre o qual
já se sentaram todos à excepção de um homem.
in 50 Poems (1940)
88.
a politician is an arse upon
which everyone has sat except a man
in 50 Poems (1940)
Não se pensa espontaneamente, é-se obrigado a pensar (Gilles Deleuze). A velha definição do humano como ser racional, uma essência que não poderia ser intermitente (é essa a condição das essências), há muito que serve apenas o hábito e o mito (apelando à autoridade, convoque-se, tendo ou não em conta as linhas de desenvolvimento, Darwin, Freud e Nietzsche).
Neste caso, o que me obrigou a pensar foi um artigo de Juan Arnau Navarro para o El País, “Cosmopolitas sin salir de casa”, 11 de julho de 2020, e a visão do Largo da Graça, Lisboa, sem turistas (sobretudo porque redobrou o meu interesse no artigo). O primeiro abanão foi mais conceptual, o segundo mais emocional (mistura necessária ao pensar, segundo António Damásio). A ideia-problema central é a de saber se ainda podemos ser cosmopolitas? Com os aeroportos a meio gás, a imposição de quarentenas, os medos individual e coletivo, parece que teremos de nos enrolar num sedentarismo arcaico, petrificando lenta mas seguramente dentro dos costumes mais conservadores.
Juan Navarro, um viajante aventureiro, escreve que um cosmopolita insiste em contradizer a sua identidade nacional. Este comportamento remonta aos cínicos gregos, Diógenes dizia ser “cidadão do cosmos”, totalidade complexa e diversa. Os cínicos, e também os estoicos, tinham uma vocação errante, “a pátria nas sandálias”. Muito depois, os iluministas, sobretudo Kant, retomaram a ideia de um pós-nacionalismo. Contudo, em vez de um cosmos propuseram um universo, com as suas verdades metaculturais (ou metafísicas). O universalismo é menos cosmopolitismo e mais globalização. Kant, que quase não viajou, procurou encontrar aquilo que era comum a todos os seres racionais, comprimir a diversidade em fórmulas imutáveis. Fê-lo, claro, a partir da sua visão do mundo, da sua cultura pietista e conceptual, da sua crença na infalibilidade das matemáticas e da lógica, na forma como imaginou a arquitetura do entendimento. Se isto continha modelos de colonização cultural? É bem provável, e mesmo que não fizesse parte da sua intenção, acabou por autorizar muitas ações de dominação e uma tendência eurocêntrica.
O verdadeiro cosmopolita não pode escandalizar-se, Diógenes era a personificação do escândalo, e por isso jamais se poderia escandalizar. Há que desabituar-se de si, pôr-se no lugar do outro, rir-se de si, e dos outros. Viver na permanente vertigem do diverso, perspectivar (presente e passado), relativizar o que se julga certo e seguro. Sem se escandalizar, mas espantando-se, disponível para atender às extravagâncias do ser humano.
Portanto, não basta ser anti-kantiano (a maioria das vezes por desconhecimento) para ser cosmopolita. O turista de cartão postal, que escolhe aterrar, cansado, num resort com “tudo incluído” vai à procura do que já conhece. Como refere Juan Navarro, pode-se ser cosmopolita sem sair da biblioteca (Borges) e provinciano viajando permanentemente. Para este autor, o “espírito do cosmopolita encontra-se regido pela hospitalidade e o risco, aceita a vertigem antropológica”. O cosmopolita recria-se pela diversidade. É por isso que “apesar do profuso tráfego aéreo e de transmissão de dados de hoje, a Antiguidade foi uma época mais cosmopolita do que a nossa.” Apesar da nossa hipermobilidade, os Antigos intuíram melhor a natureza errante da condição humana. Sabiam que éramos múltiplos e precários, e nem os deuses fabricavam a verdade.
Como criar algo que já existe e fazê-lo novo? Como obedecer a uma série de directrizes ditadas pela exigência da indústria, excursos em eventos esmagadores, reuniões de estranhos que preferiam estar sozinhos nos seus próprios quadradinhos a ter de ser figurantes no banquete onde toda a gente é servida McDonalds, e ainda assim contar a história íntima de um rapaz a tentar encontrar o seu lugar no mundo? E apesar de tudo a escrita de Brian Michael Bendis, leve e saltitona, consegue fazê-lo parecer fácil. Este é um mundo em que os super-heróis ainda conseguem salvar o dia, mas onde os super vilões não vestem licra. Os seus erros são os da ganância, tão inocentes nos tempos que correm, porque afinal esses pecadilhos de fato e gravata, cometidos longe do foco da banda desenhada, são perfeitamente desculpáveis, e até protegidos pela lei. E o que pode um pobre rapaz de Queens com um carapuz na cabeça e um fato ridículo, remendado no traseiro, mesmo um capaz de trepar paredes, contra as leis da sociedade? Mas há um lar, uma família, as aulas de matemática, o amor de juventude, todos os pequenos rituais que nos fazem humanos entre humanos. E de alguma forma, também nós fomos convidados e somos bem-vindos nesta casa.
Uma lista de todos os números de Ultimate Spider-Man pode ser encontrada aqui.
Poemas de Marcelo Ariel & Guilherme Gontijo Flores
Desenhos de Patrícia Lino
Canto 8
Até as pedras largadas
talvez mudas
escaldadas sob o sol
junto das costas caladas
numa grandeza solene
trinam memórias do passado
ligadas à sina do meu povo.
Até o pó sob os teus pés
responde mais amor
aos nossos passos do que aos teus
são as cinzas dos nossos ancestrais
e os nossos pés descalços sabem
seu toque simpático
porque o chão é rico
da vida desta raça.
Os valentes morenos
e as mães carinhosas
e as jovens alegres
e as crianças pequenas
que aqui viveram e sorriram
de nomes hoje esquecidos
ainda amam estes ermos:
seus refúgios profundos
no entardecer crescem de sombras
com a presença de espíritos.
Fala o chefe Seattle
numa língua transcrita
e traduzida
e ainda que traída
dali floram fermento e fogo
calcinando mentes
feito neve na língua
abrasa até os dentes
feito flecha estacada
crânio adentro
ainda aduba o mundo.
Esta é a fala de neve e brasa
de flecha e adubo
porque isso somos
até o fim do mundo.
E quando o último vermelho
morrer sobre a terra
e sua memória entre os brancos
virar um mito
estas costas vão fervilhar
com mortos invisíveis desta tribo.
E quando os filhos dos teus filhos
se acharem sozinhos no campo
no armazém na loja
numa estrada ou no silêncio da mata
não estarão sozinhos:
nada na terra tem lugar
dedicado à solidão.
À noite
quando as ruas das tuas cidades e aldeias
quedarem caladas
e acharem que estão desertas
vão se apinhar com a volta de hóspedes
que antes enchiam
e ainda amam
esta terra linda.
O branco nunca estará sozinho
que seja justo
e lide bem com o meu povo:
os mortos não restam sem poder.
Canto 9
Após os oitenta tiros
retornará
o grão da voz
de Evaldo dos Santos Rosa
através do sabiá
cantando na beira do Rio.
Tradução do canto
do pássaro:
‘ Que o encantamento gere
encantamento.
Não celebro,
lamento que breves sejam
as sessões do amoroso
pensamento.
A pressa em não-saber
trará a cegueira
das vozes
silenciadas antes
que sejam,
através da alma
esboçada
como a beleza
do copo de leite
em sua brancura
de metáfora
da morte
de uma estrela
distante.
E então tudo será reencontrado.
Serão unidos os cantos lentos dos céus
e para sempre refeitos
os silêncios do mundo em ruínas
e o silêncio do canil Krishnamurti.
Pelos quartos abandonados
uma revoada de pássaros irá dormir
e veremos o sol morrendo
mudo como um olho fechado
e feroz feito pedra afundando.’
~
Tradução: João Coles
o homem ao piano
toca uma música
que não compôs
canta palavras
que não são suas
num piano
que não lhe pertence.
enquanto
as pessoas à mesa
comem, bebem e falam
o homem ao piano
termina
sem aplausos
e logo
começa a tocar
uma nova música
que não compôs
começa a cantar
palavras
que não são as suas
num piano
que não lhe pertence
enquanto
as pessoas à mesa
continuam a
comer, a beber e a falar
quando
termina
sem aplausos
anuncia
ao microfone que
vai fazer
uma pausa de dez minutos
vai
à casa-de-banho
dos homens
entra
numa cabine
tranca a porta
senta-se
puxa dum charro
e anima-se
está contente
por não estar
ao piano
e
as pessoas sentadas à mesa
comendo, bebendo e falando
também estão contentes
por ele
lá não estar
é assim
que as coisas funcionam
quase em todo o lado
com tudo e todos
enquanto ferozmente
nas montanhas
o
cisne negro pega fogo
in Dangling in the Tournefortia, 1981
the man at the piano
the man at the piano
plays a song
he didn't write
sings words
that aren't his
upon a piano
he doesn't own
while
people at tables
eat, drink and talk
the man at the piano
finishes
to no applause
then
begins to play
a new song
he didn't write
begins to sing
words
that aren't his
upon a piano
that isn't his
as the
people at the tables
continue to
eat, drink and talk
when
he finishes
to no applause
he announces,
over the mike, that he is
going to take
a ten minute break
he goes
back to the men's
room
enters
a toilet booth
bolts the door
sits down
pulls out a joint
lights up
he's glad
he's not
at the piano
and the
people at the tables
eating, drinking and talking
are glad
he isn't there
either
this is
the way it goes
almost everywhere
with everybody and everything
as fiercely
in the highlands
the
black swan burns
in Dangling in the Tournefortia, 1981
Livros, filmes, ideias.