Monte Carlo

Hoje sinto um desacerto
De há uns anos
Que ainda não desapareceu

Como o outro
Parei o carro na serra
Para nas luzes ao longe
Ver-me a mim
E dizer aquele sou eu
Mas não correu bem assim

Eu não perdi a memória
Não perdi de vista a casa
Não saí de nada à pressa
Fechei a água e o gás
Não me esqueci do caminho
Não há nada que me apresse
Nem há nada que me impeça
Há só esta sensação
De que por qualquer razão
Vou ter de voltar atrás.

"A minha vontade de poder"

A minha vontade de poder
é instituída por uma lei
de uma inconstância medonha.
Procedimento sumário:
avanço nesta requintada carnificina
até extrair de mim a medula
de uma inspiração.
Palpável, concreta:
destrutível.
Aqui corta cerce a grande fábula:
torno-me legível como um anátema.

De João Moita, Uma Pedra Sobre a Boca, Guerra e Paz, 2019

BESTIÁRIO COM DUAS BORBOLETAS

“It does look pretty

messy, but it suits me”

Rose Wylie

I

O Raul Milhafre, aquele velho estupor, tinha mesmo razão!

A Poesia Portuguesa não quer saber de Scharf, de tubarões

ou borboletas feitas com dois pontos amarelos. O desenho é,

neste conservador país, apenas o grafiti e duas mamas bem

desenhadas. Fazia chorar qualquer um, qualquer olho que

fizesse. Um olho, uma maça, um palhaço ou outra porcaria

qualquer. Ah, Sim, a poesia, essa coisa que anula qualquer

historiazinha. Alteremos. A flor da abelha por fazer trazia o

som amarrotado da espuma do mar, era talvez a mais

ternurenta das cobras do paraíso! A crítica diz que isto não

é um poema, que aquilo não é um desenho, que não são

animais esses pequenos pontos amarelos numa folha que

parece ter sido arrancada a um balde de lixo, tal árvore.

II

O fogo parece ter começado à direita. Por isso, todos os

bichos correm, sem parar, para o outro lado do papel.

Creio que terá sido este poema a causa de tal desastre, um

pequeno e mísero poema queimado em fúria por mais um

vívido e enfurecido Senhor de Barbas, talvez um bardo ou

candidato a Barbo lá prás terras de Sua Majestade Isabel II.

III

Apolinaire esqueceu-se de cantar as borboletas. Ficou-se

pelos animais que encontrou no Zoo de Paris. Borboletas

Isso é de maricas, terá pensado. E olha, poderá ter razão!

Eu quero cantar, ó musa, duas pequenas borboletas amarelas.

Quero lá saber o que dirão! Faça Sol, faça Chuva, a malta

fala mal de tudo; do que sabe e do que não sabe, por isso,

canto, ó musa, os pontos insignificantes, amarelos, da mulher

do outro lado do canal da Mancha: Rose Wylie, Rose e chega.

IV

Borboleta A ou Borboleta B? Qual das duas é a mais bonita? Digam

lá da vossa justiça. Aqui o espelho é vosso. Deixem-me aqui em

paz, nesta paz de caracol. Ah pois, já se venderam os caracóis!

V

Posso? Faça favor. Queria perguntar em que dia ensina des

enho. E já agora porque cortou a palavra? Pequenino, vai para

casa, deixa isso da pintura e desenho para os ricos. A arte não

serve para nada. O Ben já dizia: a arte é inútil, vão para casa!

Aprende a copiar guardanapos de papel, passadeiras, sombras

de cestos; combina-nos, depois, com cópias de Andre, Judd,

Lewitt e imagina-te Original. Só assim chegarás às listas de

novos artistas (utilíssimas como um 45 num pé de 39).

VI

Antes da enumeração dos elefantes, Noé começou a apontar

os insetos. Quando chegou aos 500 e pouco, matou metade.

Mas devia ter matado todos, assim a extinção já se tinha realizado.

VII

Um rinoceronte, um camelo, uma galinha, uma aranha, um

porco, um macaco, um escaravelho e um pato. Todos do mesmo

tamanho, ao tamanho do verme e das borboletas amarelas.

Parece poesia este desenho: reduz tudo ao mesmo grau de

importância: um porco, um desenho, um crítico, um bardo.

Rose tinha razão: tudo começou na fuga, no caos. Dizer que

um desenho de Guercino é melhor que este, é alimentar

a ilusão de que tudo tem importância. De que tudo irá durar.

***

- Porque somos as primeiras na fuga?

- Preocupa-me, antes, ser “Eu” a amarela nisto tudo!

- Não, não somos as únicas, olha o pinto lá atrás!

ROse Wylie - Late night drawing animals from memory, 2016.jpg

Rose Wylie - “Late night drawing animals from memory”, 2016.

ὁ μῦθος δελοῖ ὄτι

1

os factos são empilhados
diante de nós
não sejamos púdicos
os factos são cadáveres
o do rapaz das asas
os dos infantes
trespassados
pelas baionetas
o do padre nu
decapitado
diante da congregação
do seu pescoço
não cresceram lírios
o da sua filha
usada pelos soldados
antes de abatida
os de todos
os que celebravam
o casamento
e assistiram à noiva
a ser violada
pelo regimento
em formação cerrada

o folheto assegura-nos
de que acção
reproduz o mais fielmente possível
eventos reais
que tiveram lugar
na vila de Distomo
junto a Delfos
a 10 de Junho de 1944

 

 2

no final
o dramaturgo
sobe ao palco
por entre aplausos
fala
do dever do artista
para os salvar do esquecimento
para que não seja em vão
para que haja um sentido
para o seu sofrimento
e alguém lhe traz
um ramo de rosas

 

3

já não me recordo dos seus nomes
pergunto aos cadáveres
os cadáveres
não falam comigo
os cadáveres
não falam com ninguém
recusam
qualquer explicação

mas à maneira de Esopo
temos este mórbido vício
de espremer de cada dor
uma moralzinha maneirinha
de fácil arrumação
como bíblias
nas mesinhas-de-cabeceira
de um motel de má-fama
e instintivamente dizemos
a história mostra que
porque não queremos
vir dali de mãos a abanar
não
isso não pode ser
no acumular está o ganho
e quase sempre acrescentamos
algo de estúpido e obsceno
como
para que não volte a acontecer

 

 4

na sessão com o autor
alguém falou
do processo pendente
de assunção de dívidas
convertendo crimes passados
em moeda corrente
foi então que a Marialena
sentada atrás de mim
escondeu a cara entre as mãos

qual o preço de uma vida humana?

quando vence uma dívida?

qual a taxa dos juros de mora?

tudo questões
com que os mortos
não têm de se preocupar