Israel, memória anti-vitimização

Para compreendermos melhor a necessidade de uma guerra que parece desnecessária, é bom lembrar que o «necessário» em geopolítica é sempre um exagero: as alternativas abundam para uns e são impensáveis para outros. Victor Gonçalves foi o tradutor desta entrevista que nos convida à reflexão — se estivermos dispostos a sair da nossa caixa ideológica, fortificada pelo senso comum onde coexistimos.

Denis Charbit, entrevista realizada por Charles Perragin publicada a 3 de junho de 2025, na Philosophie magazine

Como é que a guerra de legítima defesa contra o Hamas e para recuperar os reféns se tornou uma guerra de destruição dos palestinianos? Para compreender o sentido desta terrível reviravolta, o politólogo Denis Charbit, autor de Israël, l’impossible État normal (Calmann-Lévy, 2024), remonta às origens existenciais de Israel e à memória anti-vitimização herdada do Holocausto.

Denis Charbit

«Atravessamos uma catástrofe ética que marcará os israelitas por muito tempo com um signo de Caim» Denis Charbit

O que quer o primeiro-ministro israelita Benjam Netanyahu e como chegámos a este ponto?
Denis Charbit: As operações militares conduzidas por Israel desde a sua criação foram, na sua maioria, represálias a agressões ou ataques terroristas de grande envergadura, em conformidade com o princípio da legítima defesa. Dentro do país, essa preocupação com a legitimidade é indispensável para obter o apoio da opinião pública, na medida em que é necessária a mobilização de reservistas. É também por isso que este tipo de intervenções sempre foi concebido para ser de curta duração, a fim de não provocar movimentos de protesto. À escala da comunidade internacional, o Estado de Israel procura demonstrar que não foi o primeiro a disparar: defende-se, mesmo que de forma excessiva e desproporcionada, para proteger o seu território soberano e a sua segurança. A guerra declarada no dia seguinte ao 7 de outubro segue a mesma lógica. E, desta vez, a magnitude do massacre justificava, aos olhos dos israelitas, a magnitude das represálias e do objetivo: erradicar o Hamas.

«Ao contrário de todas as guerras anteriores que Israel conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo. A catástrofe de 7 de outubro ofereceu uma oportunidade de ouro a esta fação política para impor o seu projeto.» Denis Charbit

Implicitamente, os israelitas admitiram desta vez que a tarefa poderia ser longa?
Sim, e ao contrário de todas as outras guerras que o país conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo e participa nas decisões. Numa primeira fase, de outubro de 2023 a junho de 2024, dois membros da oposição, ambos chefes do Estado-Maior na década de 2010, entraram no gabinete de guerra com a condição de que fosse excluído qualquer representante da extrema-direita. Quando perceberam que as negociações sobre os reféns tinham fracassado por culpa do governo israelita, abandonaram o gabinete de guerra e foram imediatamente substituídos por dois ministros da extrema-direita, Bezalel Smotritch e Itamar Ben-Gvir. A extrema direita tinha agora campo livre. Já não se tratava apenas de acelerar o movimento de colonização na Cisjordânia, ganhar terreno, deixar as milícias intimidarem os palestinianos pela força, mas submeter a guerra travada na Faixa de Gaza a um projeto de destruição total. Assim, a legítima defesa serviu de fachada para uma ambição anexionista e destrutiva que, aliás, nunca esconderam, mas cujo momento oportuno para concretizar esperavam. Já não estamos na época de Ariel Sharon, durante a primeira guerra do Líbano, quando a hubris israelita – para consolidar a sua segurança – consistia em ser o fazedor de reis no Líbano, colocando à frente do país dos Cedros um aliado, Bachir Gemayel (assassinado um mês depois pela Síria). Para Ben-Gvir e Smotritch, a hora é divina: a história não se repete. A catástrofe de 7 de outubro, vista como um ataque existencial, ofereceu uma oportunidade de ouro a essa fação política, que tem a vantagem sinistra sobre os seus adversários de esquerda e do centro de saber exatamente o que quer e não se preocupa com nenhuma norma, nenhuma contingência: que valem as relações internacionais, os acordos regionais, as oposições locais, que vale a moral judaica e universal quando se está imbuído da certeza de que o que se quer, Deus quer?

A eleição de Donald Trump facilitou essa entrada em ação?
Foi decisiva, na medida em que acelerou o colapso do sistema internacional. Além disso, as capacidades militares israelitas decuplicaram nos últimos anos, nomeadamente na vertente defensiva com o Domo de Ferro. Por todas estas razões, o governo já não tinha restrições, nem internas nem externas, para responder ao Hamas, cuja rendição não foi alcançada. Será que ela é sequer alcançável? Podemos perguntar-nos quando se tem um ator cujo principal horizonte é a fé absoluta. Resultado: a legítima defesa inicial, explorada por forças políticas que querem o caos, gerou devastação, a ruína de edifícios e de infraestruturas sociais, económicas, médicas e escolares. Os limites foram ultrapassados muito para lá das operações militares anteriores, muito mais curtas e nunca tão destrutivas, realizadas nas últimas duas décadas, nomeadamente em 2006, 2009 e 2014.

«A legítima defesa inicial, com Israel sempre a ter o cuidado de travar guerras curtas e nunca disparar primeiro, foi desta vez explorada por forças políticas que desejam o caos e a devastação.» Denis Charbit

Ultrapassadas do ponto de vista do direito internacional?
Atenho-me à frase do personagem de Henri Cormery, ao descobrir os soldados franceses massacrados e castrados em O Primeiro Homem, de Albert Camus: «Um homem, impede-se [Un homme, ça s’empêche»] A guerra é aquele momento na história coletiva em que se considera poder e dever libertar-se dos códigos e das regras. No entanto, é preciso recordá-los, restaurá-los e «impedir-se», independentemente da existência de restrições formuladas pelo direito internacional. O que é a moral, senão a reiteração permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade tanto para a moral judaica como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal. O que nos impedimos? Aqueles que acreditam que os judeus são o povo eleito devem compreender que esta noção não é um cheque em branco. Pelo contrário, acrescenta à lista de deveres o peso de um fardo adicional, o imperativo de uma ética exemplar. Da mesma forma, aqueles que se gabam de que Israel é a única democracia do Médio Oriente deveriam compreender que o rótulo democrático não é uma dispensa que autoriza qualquer forma de violência. Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, em tal grau, a confusão entre combatentes e civis, mesmo que seja para eliminar os primeiros. Digo isto com gravidade e o coração pesado: estamos a atravessar uma catástrofe ética que marcará os israelitas com um signo de Caim que nos perseguirá por muito tempo...

«Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, a tal ponto, a confusão entre combatentes e civis.» Denis Charbit

Em que medida essa ausência de limites na resposta militar de Israel está relacionada com o facto de este país não poder ser, segundo a sua tese, um «Estado normal»?
A palavra «normal» é ambígua. Interpretei-a como indicativa das normas a que se submete qualquer regime democrático, mesmo quando está em guerra, como é o caso de Israel de forma quase permanente. O 7 de outubro foi sentido como uma morte coletiva que fez ressurgir o sentimento de estar a mais. Ora, a razão de ser do Estado de Israel foi e continua a ser a capacidade de ser um refúgio capaz de proporcionar segurança a um povo que enfrenta hostilidade permanente, e até mesmo a vontade de ser exterminado. Isso não significa impedir todos os atentados e agressões, mas ter a certeza de que a violência sofrida provocará uma reação imediata e a mobilização das instituições. O trauma não é apenas o facto de a violência ter sido desencadeada, mas de ter podido ocorrer sem entraves, durante horas, sem contra-ataque para impedir um massacre que eliminou mais de 1100 pessoas em 24 horas. No fundo, está a memória do Holocausto e esse mantra, «nunca mais», que se tornou para o povo israelita um «nunca mais para nós», como salientou a historiadora americana Diana Pinto. Esta frase remete para a necessidade de solidariedade face à violência que não faz distinções, uma vez que visa os israelitas, em particular os judeus, sejam eles de extrema-esquerda ou de extrema-direita, ateus ou crentes. Mas o «nunca mais» também tem outro significado além da solidariedade cívica e nacional. É uma forma de dizer: «Nunca mais fracos. Nunca mais vítimas». Este surto – chamado sionismo e que assumiu a forma do Estado de Israel – é uma reação legítima após tantas perseguições, um extermínio e, desde 1945, múltiplos e regulares apelos à destruição do Estado de Israel. A recusa em ser vítimas implica implicitamente que, se for preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. No entanto, quando este despertar legítimo transforma-se numa guerra de destruição, alimentando uma hubris israelita que visa arrasar tudo, eliminar tudo, deslocar a população e reocupar a Faixa de Gaza para sempre, a memória do Holocausto, na sua dimensão anti-vitimizante, atinge um paroxismo que a faz balançar para um extremo que exige o restabelecimento imediato deste pensamento dos limites: «Uma nação, um Estado, impedem-se mutuamente.» Não vejo, não ouço este reflexo moral. As declarações oficiais vão apenas numa direção: tudo é permitido.

«A recusa em ser vítimas sugere implicitamente que, se é preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. Mas afirmar que Israel é a única democracia do Médio Oriente não é um cheque em branco para qualquer forma de violência.» Denis Charbit

Se a razão de ser de um Estado assenta essencialmente na sua capacidade de proteger uma população contra um exterior hostil, não é natural que tenha uma propensão para a violência excessiva?
Nem toda a preocupação com a segurança leva necessariamente à sua radicalização. É claro que a postura do sionismo nacionalista, numa região onde a existência do Estado de Israel não é óbvia e é regularmente questionada, abre um potencial para a violência extrema. Mas é perfeitamente possível evitar essa escalada sem se tornar um país pacifista ou neutro. Proclamar o desmantelamento das nossas capacidades militares aguçaria o apetite de todos aqueles que fantasiam com o nosso desaparecimento: Irão, Hamas, Hezbollah e Houtis. A questão em aberto é: qual será o efeito desta última ação? Esperemos que, mais cedo ou mais tarde, voltemos a colocar-nos sob o imperativo de um princípio de realidade [no sentido freudiano: o mal também vem do interior]. A confissão será dolorosa, parcial e acompanhada pela derrota eleitoral da coligação no poder, se ela ocorrer. Perceberemos então que o governo nos levou muito além da legítima defesa e que, por sua culpa e pelo efeito do nosso trauma, nos tornámos carrascos.

«O que é a moral senão a repetição permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade para a moral judaica, como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal» Denis Charbit

Por que razão a oposição israelita não consegue fazer da condução da guerra uma questão política?
Porque a oposição concentra-se exclusivamente no imperativo categórico da libertação dos reféns. Exige que isso seja uma prioridade, uma vez que o governo se opõe e porque, no fundo, denunciar abertamente as violações do direito é arriscar alienar a opinião pública, que veria nisso uma admissão que favorece o Hamas e os adversários de Israel. Num conflito, não se cede nada ao inimigo. No entanto, o líder do Partido Trabalhista, Yaïr Golan, declarou recentemente que um Estado normal não deve travar combates contra civis, matar crianças «como passatempo» e ter como objetivo a expulsão de uma população. Mesmo que a expressão «passatempo» seja enganosa, ele ousou quebrar esse silêncio após 600 dias de guerra, durante os quais a oposição só se manifestou contra o governo sobre a questão dos reféns.

«É preciso desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças.» Denis Charbit

Por que motivo o governo recusa a troca de reféns?
Recusa porque isso implicaria uma negociação que, para o Hamas, só pode ser bem-sucedida se significar o fim da guerra. Netanyahu também se recusa a negociar, menos para se manter no poder do que para adiar o momento em que, uma vez libertados os reféns, será obrigado a decidir o destino de Gaza após a batalha. Há duas opções: ou uma coligação egípcio-saudita assume o poder, com a Autoridade Palestiniana no centro do dispositivo e, nesse caso, será necessário regressar ao processo de paz do qual Netanyahu se livrou em 2014; ou a manutenção no terreno do Tsahal (o exército israelita). Ora, essa permanência não é apenas uma questão de segurança. Implica também a assunção de todas as funções administrativas, o que os israelitas não tolerarão devido à mobilização de reservistas que essa permanência implica. Seja como for, constato que a opinião pública começa a questionar-se.

Qual foi o elemento espoletador dessa interrogação?
Uma parte da sociedade israelita começa a compreender que é preciso parar de considerar os líderes de extrema-direita como fanáticos. Estamos a chegar a um ponto em que nada é inconcebível, nem mesmo o plano Gaza-Riviera de Donald Trump. Há vinte anos, se um político tivesse considerado oportuno arrasar Gaza, ninguém o teria levado a sério, julgando que o exército não o deixaria fazer. O crescente isolamento diplomático também abalou parte da opinião pública israelita. Perante as ameaças de sanções expressas pela França, Grã-Bretanha e Canadá, há quem anuncie o regresso do Ocidente ao seu antissemitismo latente; os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo que nos afasta das potências que não nos desejam mal.

«Os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo israelita que nos afasta das potências que não nos desejam mal.» Denis Charbit

Quais são os motivos de esperança para os israelitas que continuam a opor-se aos planos do primeiro-ministro Netanyahu?
Para vencer, uma ideia deve ser encarnada por um líder. Desde Yitzhak Rabin, há já trinta anos, não vimos surgir nenhuma figura política que consiga unir. Houve Ehud Barak, mas ele foi derrotado após o fracasso das negociações com Yasser Arafat. Yaïr Golan é talvez o líder de que a oposição precisa. Ele foi vaiado e apelidado de traidor durante um colóquio em Sderot, mas não se acobardou. Não saiu do palco. Respondeu aos seus detratores com veemência, dizendo-lhes que só conheciam o ódio e que era por causa de pessoas como eles que Rabin tinha sido assassinado em 1995. Esta referência é forte. Trinta anos após a morte daquele que assinou os acordos de Oslo, percebemos que Israel não negocia nada há mais de dez anos. Os palestinianos têm uma parte da responsabilidade e nós também. É preciso agora desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças. Caso contrário, esta região deixará de ser habitável para os seres humanos. Em Gaza, devido aos massacres e à destruição, e em Israel, devido ao clima apocalíptico gerado pelo governo – que, à sombra da guerra, prossegue a liquidação progressiva do Estado de direito. 100 000 israelitas já abandonaram o seu país...

Florzinhas de Estufa

São tudo saudades, portugal, ou memória curta,

Esse ódio carunchoso a tudo o que é outro,

Mais frágil quando na verdade igual, porque há estrangeiros

E estrangeiros, a uns beija-se o cu de bom grado,

Com olho no que brilha, tentam espremer-se ao máximo

Os barracos e as ruínas, o very typical, o provincianismo

Urbano como autenticidade, sempre orgulhosos

Do grandioso passado de descobridores do descoberto,

Sem nos dignarmos a esconder os nomes das ruas

Da vergonha, esclavagistas que detestamos quem

Nos alimenta a preguiça e a boa vida,

Adoradores de chico-espertismo e chauvinismo,

Racistas por ódio ao próprio sangue, machistas por sensibilidade

E tradição, não há maior florzinha de estufa que um fascista,

Tudo o incomoda, o pior é a paz dos outros, a felicidade então,

Deixa-o cego de raiva, só o eu está certo, cego, virado para dentro,

Se pudesse enrababa-se a ele mesmo e tinha pequenos

Clones fascistas, o outro é tudo o que está mal na sua vidinha,

Para quem só vê o próprio umbigo, esquece-se de olhar o espelho

E ver que o problema, na verdade, está nele, fechado

Na saudadezinha com cheiro a mofo, criando a realidade

Mentira a mentira, esfolando um pobre bode de cada vez,

Até que, sem se dar conta, no fim, só sobra ele e a faca na mão

Do adorado líder, o tal que dizia as verdades ou o que se queria ouvir,

Até ser a hora de se tornar, inevitavelmente, também ele no outro,

E afinal, a falange que julgava ser, apenas mais carne para canhão.

 

11.06.2025

 

Turku

 

Recurso e Pobreza, lançamento

«Je cherche en même temps l’éternel et l’éphémère»
(Georges Perec)

 Hoje, celebramos essa coisa estranha, incompatível com qualquer teoria evolucionista ou criacionista, a que chamamos poesia, cujos jogos de linguagem resultam dos desvios, amplamente tolerados, mas não excessivamente aleatórios, às normas linguísticas, que, aliás, ajudaram a constituir. É assim que se autoriza o poeta a decidir onde termina uma linha, onde põe maiúsculas ou como usa a pontuação. Pode até grafar onomatopeias e fazê-las produzir sentido. Por outro lado, como um poema raramente vem com um contexto pronto a usar, o leitor ainda possui uma grande margem de ação. O sentido final, mas nunca fixo, de um poema é, portanto, uma aventura hermenêutica, uma pontaria afinada sem alvo, para a qual é necessário invocar os grãos de loucura do próprio Hermes. É por isso que Terry Eagleton nos avisa de que «A poesia é a mais complexa forma de discurso imaginável.» (Como Ler um Poema). E, na recôndita metafísica da Floresta Negra, Martin Heidegger descobre que ela é a própria morada (Heimat) do Ser, a única via de acesso às coisas mesmas que aparecem no ente.

 O que faz, então, aqui um pobre diabo que dedica mais tempo a ensinar, escrever e ler filosofia — embora não seja um escravo acrítico do racionalismo instrumental —, a jogar ténis do que a imergir na constelação da linguagem com o máximo poder demiúrgico; espaço-tempo onde o caos se ordena e a ordem se caotiza, onde a vitória na desordem é mais importante do que uma folha de Excel? Só pode ter sido uma decisão pharmakon: da Tatiana em convidar-me; de mim em aceitar. Aqui estou eu… sugerindo um pedido de piedade, como faziam os extraordinários Gregos para amansar o auditório. Tatiana, antes tivesses escolhido um crítico universal, desses que medram com facilidade na nossa terra, e sabem incendiar o público, porque há anos que cospem fogo, que boxeiam no vazio; que, como nos alertou Nietzsche, são feiticeiros que em vez de criarem algo a partir de nada, criam o nada a partir de algo, deixando, por onde passam, um rasto radioativo. Mas se me escolheste — no que isso teve com certeza de fortuito — foi também porque tu própria admites que os teus poemas não ofendem: «às vezes os meus poemas cometem esta grande falha / pela qual queria pedir antecipada desculpa / não ofendem ninguém» («catástrofes a sério»).

 Conheço Tatiana Faia há anos, li todos os seus livros, muito dos seus textos, ouvi bastantes dos seus discursos e, sobretudo, conversei várias vezes com ela sobre tantas coisas humanas, demasiado humanas; sei, portanto, porque gosto dela. Não será principalmente pela sua pureza (que, aliás, sou incapaz de calcular, ao contrário de tantos neotorquemadas que por aí pululam) mas sim pela sua complexidade. Que se reforça com Recurso e Pobreza, o livro da Tatiana que mais me marcou, e que, em todos os dias dos últimos dois meses, me queimou um pouco mais. Não porque fosse o último e tivesse evoluído darwinisticamente, mas porque nele o seu olhar, atento ao interior e ao exterior, se interessou mais do que costume pelas estrias, por vezes minúsculas, que ligam e desligam as membranas da vida. Um olhar acompanhado por recursos estilísticos que lhe oferece as lentes apropriadas a cada circunstância; não para abarcar tudo, mas para pairar sobre o que mais importa.

 Vou agora, com as devidas reservas, expor algumas linhas da minha leitura de Recurso e Pobreza. Utilizarei apenas uma vez a enumeração, porque depois de assistir ao lançamento de um livro (também ele de poesia), no qual a lançadora — investigadora científica e moral muito promissora — esquartejou a obra com uma tática impiedosa de quatro vezes quatro enumerações (truque que agora deve ensinar nas mais altas esferas da academia vocacionada para a congelação), prometi vigiar com rigor as minhas tendências taxonómicas. Contudo, não posso fugir à evidência de uma geopoesia: quase todos os poemas deste livro têm a marca do tempo e do lugar, do Genius temporis e do Genius loci. Tatiana Faia assinalou o mês e ano, o lugar ou os lugares: tempo presente e tempo ausente, o da durée, desdobrado no interior do sujeito poético e do poema; lugares presentes e ausentes, visíveis e invisíveis, um vasto mundo virtual que, por exemplo, nos permite comprovar que uma rua é uma rua, ou melhor, que uma certa rua está em devir-rua. É por isso que talvez possamos entender a sua poesia como um prolongamento do olhar (que, no entanto, quando observa se sabe observado); sentir, num pequeno vislumbre, que a Tatiana deseja, creio, ser lida com uma hermenêutica menor que se aninhe na sua visão. E se o seu olhar abre e fecha observações, o que realmente importa é a duração e o meio, não onde começa ou acaba, mas a viagem entre esses dois pontos, que são sempre imaginários. («caminhamos pelas montanhas / como se pudesse regressar do abismo / tu à frente, eu atrás / tu com uma corda às costas / calças curtas, uma camisola de malha / às vezes perdes-te à minha frente no trilho / pelo nevoeiro, o azul / da tua camisola confunde-se / com o cinzento da montanha / e eu chamo o teu nome / um som em perfeita queda / como a água ou a noite descendo / aguçada sobre os penhascos». «antonia»).

Um olhar que nos ensina a ver, ou melhor, já que depois de Sócrates deixou de existir boa pedagogia, nos convida a acompanhá-la, numa cumplicidade que acrescenta mundo ou que testa as suas próprias intuições. Um com-observar que não garante, contudo, um final feliz: às vezes podemos prosseguir o caminho a coxear. Não se trata, pois, de edificar, de extrair o excecional do vulgar, mas de uma sagração do existente. Talvez só assim se inventem novas possibilidades de vida: transmutar os sistemas de adversidade em sistemas de oportunidade, visto que o viver deve ser mais autoafirmação do que conservação. Mesmo se, nos tempos que correm, quase nenhuma odisseia possua a sua Ítaca, não parecendo haver nenhuma utopia disponível.

Tatiana Faia deseja saber o que é o humano, espantando-se tanto com a sua perfídia quanto com a sua bondade. Parece que tudo o que é humano lhe é estranho, estímulo constante para a passagem da curiosidade ao discurso, poético ou outro. O seu poema «a lição» é o exemplo acabado disso. Mas há muitos outros fragmentos para uma antropologia poética, por exemplo: «o ódio nas terras pequenas / não se rarefaz como nas cidades / chega até à mais ínfima partícula do sangue / mata por calor, irracionalidade / e uma pobreza partilhada / com uma impaciência / que reconhece de olhos fechados / que as múltiplas intrigas / se podem esvair num ápice / perante a mais perfeita crueldade da terra» («história quase apócrifa dos mortos em armeni». No final, estamos certos de que Tatiana está à altura das coisas, dos homens e dos semi-deuses.

Essa necessidade de apaziguar o espanto através da compreensão, da semi-compreensão, obriga a observar o mundo sensível. Será, então, uma poesia fenomenológica. Com ela, traçamos linhas sobre o caos e arrumamos um pouco o nosso espaço mental. Entendemos melhor o crime e castigo das «mãos sujas», o desespero de um curador com génio organizador a mais para a arte disponível, a pressão mortífera da paixão, a falsa beleza dos abismos ou o valor de «mil pesetas». Mas, muitas vezes, trata-se de uma fenomenologia lírica, o que só acrescenta força à observação. Noutras situações, o olhar da Tatiana detém-se em experiência que ainda não aconteceram. Potência pura e capacidade de reinvenção: a poesia da Tatiana ajuda-nos a mudar de pele — talvez mais do que o amor, o trabalho, a guerra ou a amizade — porque nos fornece amostras de outros mundos.

Apesar disso, as palavras parecem estar acima do tempo: «mas seria uma desculpa fácil dizer / que as palavras por que vivemos / não nos podem erguer acima / do tempo / breve de uma vida humana» («as mãos dos poetas»). Acima do tempo, mas não fora do corpo: «para que sopro a sopro, palavra a palavra / lentamente te recordes / de que a terra nos usa todos os dias» («ver pior ao perto»).

 Deixem-me realçar a arte do contrapé, que Tatiana Faia pratica com a desenvoltura de quem prefere os impasses, as hesitações à linha reta. Desde o aparecimento da cultura da ilusão e da criação do espetador estético, conhecemos o valor das peripécias, tanto que a maioria delas já foi codificada. Mas a Tatiana introduz a perplexidade ao nível micro, não na estrutura do poema, mas dentro ou entre os versos, no lugar onde habitualmente encontramos continuidade. Isso permite-lhe transubstanciar as palavras (a favor e contra os formalistas russos: tudo pode ser outra coisa, os sentidos articulam-se, imbricam-se, mas também se contradizem e digladiam). Por exemplo: «apaixona-te / mas com o ritmo certo / lentamente / é muito importante / que não seja com demasiada intensidade / e demasiado depressa» («poema sobre como queimar a ferida e passar a viver melhor nas cidades». «que não te menti quando te disse / que te quis mais até do que me diverte estar vivo» («anunciação, filippo lippi, ca. 1453»).  «estou a abrir todas as janelas / para deixar entrar a noite / e há muito que nada / do que me acompanha / é uma educação» («onde»).

A sua poesia contém também uma preocupação com o logos partilhado, com o diálogo. Nos Gregos aprendemos que o pensamento é relacional, que ninguém pensa realmente sem ser incitado a isso — forçado pelos fenómenos, mas sobretudo pelo logos de outrem. Em vários poemas, o sujeito poético dirige-se a alguém, mais ou menos real, a outrem a posteriori ou a priori. («é verdade, gabriel, sou vulgar / porque sou voraz como o mundo» «anunciação, filippo lippi, ca. 1453»). Deste princípio surge um estilo que a distancia daquela poesia que se arroga o direito de acrescentar à realidade suplementos de metafísica, para a encaixar, à força se for preciso, nas grelhas do bem e do mal, da verdade e da mentira ou da pureza e da impureza. A poesia da Tatiana mantém-se no mundo mediano, onde raramente medram os presunçosos e os imbecis: um espaço que não pretende ser centro, constituído por periferias, nas margens da poesia-sol.

Não havendo poeta que se preze que não experimente algum exercício de metapoesia, procurámos, quase em vão, neste livro esse dispositivo tão apreciado (seria interessante psicanalisar este autorreconhecimento). E quando o encontrámos (em «as constelações» e «catástrofes a sério»), fomos surpreendidos por uma espessa camada de ironia. Em vez de nos revelar os segredos do ofício ou os fulgores semidivinos dos poetas que são «meia-noite porque querem», os poemas indicam as mil e uma maneiras de um poeta morrer ou os falhanços do ofício — evanescências banais, como a de qualquer outro mortal. Pior ainda, porque a expetativa era de uma certa grandeza: libertar uma alma um pouco mais redonda do que a média.

Por tudo isso, aceitamos que à nossa atual falta de sede, se contraponham os dois últimos versos do poema «os protestos»: «temos cada vez mais sede / e há cada vez menos água». Assim, conclui-se que os poemas sobrevivem às tragédias que descrevem ou sugerem, o que fica comprovado pelo apelo desesperado, mas justíssimo, depois de Auschwitz, para se deixar de escrever poesia. Ainda bem que sobrevivem: como poderíamos mudar de vida sem eles?

Nietzsche, Entre Amigos

Entre 1882 e 1884, Nietzsche redigiu um dos seus mais belos poemas. trata-se de um hino à felicidade e à amizade, à vida que vale a pena ser vivida como um incêndio que consome as paixões tristes.
A tradução é de Victor Gonçalves e integra a nova edição de Humano, demasiado Humano, a publicar em breve pelas Edições 70.

ENTRE AMIGOS
UM EPÍLOGO

1.

Belo é calar-se juntos,
Mais belo ainda rir juntos,
Debaixo do pano sedoso do céu,
Encostados ao musgo e à faia,
Amavelmente rindo com os amigos
E mostrar os dentes brancos.

Se o fiz bem, então calemo-nos;
Se o fiz mal — então riamos
E façamos sempre pior,
Fazer pior, rir pior,
Até ao fundo do poço.

Amigos! Sim! Assim será?
Ámen! E adeus!

2.

Nada de desculpas! Nada de perdão!
Concedei, vós os felizes, de coração livre,
A este livro irrazoável,
Orelha e coração e abrigo!
Acreditai-me, amigos, a minha desrazão
Não foi maldição!

O que eu encontro, o que eu procuro —
Esteve alguma vez num livro?
Honrai em mim o grémio de dementes!
Aprendei com este livro demencial,
Como a razão vem — «para a razão»!

Então, amigos, assim será?
Ámen! E adeus!

Mal-Estar na Civilização, Café Filosófico

O Victor, moi même (qui est un autre), no café filosófico da livraria Snob, Lisboa, a atirar setas conceptuais

Texto de divulgação:

Escolhemos pensar o mal-estar em geral a partir de um mal-estar específico: o da civilização, ou da cultura. Freud, o autor-totem deste café filosófico, podia separar o nosso mal-estar do bem-estar da natureza. Nós, pelo contrário, estamos quase obrigados a pensar um planeta inteiro, o orgânico e o inorgânico simultaneamente, atingido por uma doença mortal. Mas, como sugere Descartes, temos de dividir o problema nas partes que o constituem (continua a ser um método válido, desde que haja, depois, articulação entre os diferentes campos), começando, talvez, pelo mais urgente: o predomínio das paixões tristes.

Trump conseguiu sacudir o mundo com uma cartolina. Também, talvez sobretudo, porque não temos os pés assentes em terra firme. Não naquela que prende, para sempre, o humano a pulsões narcisistas, mas nessa outra que conserva em si matéria viva de poeira estrelar, corpúsculos elementares que, desde a origem, contêm já toda a poesia do mundo. Potência desbragada contra a inércia amparada num autocontentamento sem objeto.

É com Freud e o seu O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930) que iremos pensar o vendaval atual. Pensá-lo para o compreender e para tentar superar o pano de fundo psíquico do nevoeiro que, em Portugal, pode parir salvadores. Pode, mas não pare. Uma dinâmica e uma economia de pulsões (ou instintos) de vida e de morte comandam o nosso novo destino histórico. Sempre comandaram, aliás; mas agora as pulsões de morte parecem prevalecer. O superego civilizacional («amar o próximo como a si mesmo») mostra-se enfraquecido; agigantou-se, pelo contrário, o sentimento de culpa da humanidade, que pode, transmutando-se, manifestar-se num intempestivo desejo de vontade de poder.

Freud refere que os homens primitivos, com mecanismos de sublimação dos instintos destrutivos menos elaborados, eram um bando de assassinos. A civilização foi capaz de enquadrar e controlar esses instintos, mas, como nos mostraram as duas grandes Guerras, a atual redefinição de quase todas as relações geopolíticas, passando do primado da confiança para o da desconfiança, e os processos de desumanização difíceis de imaginar há algum tempo, talvez estejamos muito próximos desse «bando de assassinos».