Dar a Pensar

«O que força a pensar são os signos», afirma o filósofo francês Gilles Deleuze em 1964 no livro Proust et les signes. Prossegue com «Aquele que busca a verdade é uma pessoa ciumenta que deteta um sinal enganador no rosto da pessoa amada. É o homem sensível que se depara com a violência de uma impressão. É o leitor, o ouvinte, na medida em que a obra de arte emite sinais que talvez o obriguem a criar, como o apelo do génio a outros génios. As comunicações de uma amizade tagarela não são nada comparadas com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e boa vontade, não é nada comparada com as pressões secretas da obra de arte. A criação, tal como a génese do ato de pensar, parte sempre de signos. A obra de arte nasce dos signos tanto quanto os faz nascer; o criador é como o intérprete ciumento e divino que vela pelos signos nos quais a verdade se revela.»

Deleuze foi o primeiro a abordar filosoficamente a obra de Proust, fascinando-se e interessando-se pelos signos que revelam o que é o tempo, o abandono, a vaidade, a frivolidade, o egoísmo, o amor… À la recherche du temps perdu dedica-se mais, segundo ele, à inteligência do que à memória, trata-se de uma espécie de Bildungsroman, uma longa viagem de aprendizagem autorreferente, na qual, a par das descobertas do narrador sobre o sentido da vida na arte e na literatura, o próprio romance aprende a ser romance — algo a que não é alheio o exercício obsessivo de revisão. Por isso, la recherche deve ser lido como um jogo de signos que contém, quase secretamente, uma lógica dos signos, ou seja, uma lógica do sentido (Deleuze publicará Logique du sens em 1969). Não se trata de todo o sentido, bem entendido, mas de uma vasta parcela dos sentidos possíveis, compostos pela multitude quase pletórica de signos emitidos pelo romance. Aprender — que Deleuze gostava de descrever como uma tarefa de egiptólogo antes da descoberta de Champollion — consiste, então, em decifrar e interpretar signos, mesmo aqueles emitidos pelo não-dito.

Com esta perspetiva, Deleuze, o filósofo Deleuze, deixa bem claro que não há qualquer privilégio epistemológico inerente à filosofia. Tudo emite signos: as conversas banais do dia a dia, os filmes, as pinturas, os romances, a poesia, os animais, a natureza… E todos esses signos «dão a pensar» (expressão que Deleuze recupera em la recherche), pois são forças que investem o pensamento, nele penetram e produzem fulgurações luminosas. Luzes que aquecem, luzes que queimam, luzes que esclarecem, luzes que cegam.

Esta teoria dos signos desvaloriza a tradição filosófica do fundamento e do método, as linhas alemã e francesa, respetivamente. Os signos são instáveis e raramente funcionam isoladamente. Talvez por isso Deleuze tenha afirmado, numa entrevista a Claire Parnet, que «O interessante é o meio, não o início ou o fim». Ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, «Pas d’image juste, juste des images» (traduzido, o meio desaparesseria). Assim, perde importância, mas não a beleza, o verso de Les fleurs du mal: «No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!». Seja esse fundo «Inferno ou Céu».

No próximo ano, dediquemo-nos à potência do meio, deixando de lado os abismos do começo e do fim, tal como faz, de forma admirável, um órfão voluntário — que vive como um deus imperfeito entre os homens. Levemos a sério a máxima nietzschiana de sermos sempre outrosdu bist immer ein Anderer»). Para isso, basta cultivarmos uma arte da inservidão voluntária.

Enquanto Dormes

Enquanto dormes no meu colo, meu amor,

Que os sonhos te sejam leves e limpos,

O mundo continua demasiado humano,

Sujo e injusto, o progresso só tornou a maioria

Em insignificantes números, carne para canhão,

Contudo, com a tua mão sobre o lugar onde talvez

Ainda se esconda o meu coração,

Sinto que te sou seguro e por trás dessas pequenas

Pálpebras, o sonho decorre nesse teu mundo pequeno

E simples, que sejam borboletas, trevos no jardim da avó,

O raro sorriso do sol de inverno, gatinhos gregos,

Que nunca te contaminem os pesos e pesadelos

Que os homens aos homens se impõem,

Nascemos para poder pouco, meu amor,

A vida não tem sequer o valor da sua utilidade,

Nesta sociedade de gordos vampiros, buracos negros

Oligarcas, resta-nos um colo quente e um sono puro,

O sol e a promessa universal do derradeiro silêncio.

 

Turku

20/12/2024

Revista Fluir 14, Aventura

Acabou de nascer mais um número da importante e belíssima Fluir, uma forma de percorrer o mundo sem erodir as alteridades nem inundar os territórios dos pirilampos. Fluir é estar com, numa época em que parece que tudo está contra.
Um dos textos é o meu ensaio (continuo a inspirar-me no estilo de Montaigne) sobre a aventura do pensamento vivo, que talvez valha, sobretudo, pela magnífica epígrafe de Ruy Belo.

A aventura do pensamento vivo

«É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.»

Ruy Belo, verso do poema «A Mão no Arado», in Todos os poemas

 

Sempre que alguém me diz que «falta rigor» ou «é preciso rigor», respondo, com uma piada que contém uma teoria: «certamente, mas evitando o rigor mortis». Este último tipo de rigor não se afasta um milímetro do já conhecido, testado, consolidado, esgotado. É exercido com a rigidez intransigente de uma verdade que olha apenas para o passado, não para renová-lo, mas para venerá-lo. Venerar o que foi, como foi e porque foi. Contudo, o passado vivo não se deixa aprisionar tão facilmente, embora o clube dos rigorosos acredita que sim.
Se julgam que estamos a jogar o jogo das dicotomias fáceis — de um lado os hermeneutas maus (veneram um passado simplificado), do outro os hermeneutas bons (revolvem o passado e  projetam-se no futuro) —, desenganem-se. Aliás, talvez devêssemos viver assim: desenganando-nos, enganando-nos e desenganando-nos de novo. O incandescente George Steiner (iluminou tantos dos meus pensamentos com a sua benigna erudição rebelde!) guia-nos no In Bluebeard’s Castle (No Castelo do Barba Azul, Relógio D’Água) para algumas interpretações claramente conservadoras — ele que se assumia, à semelhança de Peter Sloterdijk, como um «conservador vanguardista». Para Steiner, trata-se de conservar o mistério do humano, de manter fechada a última porta do castelo. Não porque dê acesso às anteriores esposas sequestradas do Barba Azul (na interpretação de Béla Bartók), fruto de uma libido insaciável que desbarata e consome sistematicamente os compromissos nupciais, mas porque, neste caso, essa porta pode abrir para o quarto onde o genoma humano se mantém conservado e irreconhecível (o livro é de 1971). Contudo, será apenas uma questão de tempo. A nossa «obsessão heurística», como lhe chama Steiner, acabará por escancarar tudo. Abriremos essas portas «porque é o mérito trágico da nossa condição abrir portas.» Mesmo vivendo, ainda segundo este autor, numa «pós-cultura», em que não se lê, ou se lê mal, em que a música erudita deixou de ser ouvida ou em que o pathos matemático se reduziu ao mínimo. Bem sei que o conservadorismo de Steiner é composto de forças inovadoras, mas isso não o impede de criticar a curiosidade invasiva, talvez a mesma que constituiu a húbris de Édipo, e certamente a que hoje elevou a transparência a valor de referência (e que Byung-Chul Han tão bem critica n’A Sociedade da Transparência). Transformamo-nos, lenta mas inexoravelmente, em seres sem mistério.
Na primavera de 2021, a revista Electra dedicou o seu dossier à curiosidade. São páginas instrutivas e fulgurantes. Primeiro, o clássico: a filosofia, momento originário do livre pensamento — quase ainda sem espíritos livres —, para Platão e Aristóteles, nasceu do espanto, do assombro. É essa a lição que nos trazem o Teeteto e a Metafísica. Mas há também um clássico oposto: «Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se nos espetáculos as coisas mais prodigiosas. Daqui passa-se à indagação dos segredos da natureza, que estão fora do nosso alcance e que não há nenhum proveito em conhecer.» (Santo Agostinho, Confissões) Nada de novo em Santo Agostinho: do final do Império Romano até ao Renascimento, a curiosidade foi invariavelmente malvista. E mesmo em pleno Iluminismo, a entrada da Encyclopédie considera a curiosidade como louvável ou condenável, dependendo dos objetos e das finalidades a que se dirige. Ainda hoje, aliás, the curiosity killed the cat.
Interessou-nos trazer aqui duas notas sobre a curiosidade, pois ela é o ponto de partida para a aventura, um começo que nos permite saltar para as margens da normalidade e, no fundo, goste-se ou não da palavra, para a marginalidade. A aventura que daí pode (realço o condicional) advir, usando o impulso inicial da curiosidade, consegue, depois, sobreviver sozinha, percorrendo caminhos de descoberta de si, de outrem e do mundo.  A partir de agora, quando falarmos de aventura, saberão que é ontologicamente composta por uma parcela de curiosidade, condição necessária, mas não suficiente da aventura. Saberão também que temos em mente aquilo que Gilles Deleuze disse a Claire Parnet nos Dialogues: «o interessente é o meio, não o início ou o fim». E aquilo que Marcos Foz declara, prolongando a ontologia aberta de Deleuze, ao discorrer sobre os limites de um diário: «e sim, cartografar o futuro, mas entra-se sempre a meio de um caminho.» (Enublado Dizes, p. 44). E, para finalizar com uma inquietação pessoal: a devoção que prestamos à vertigem horizontal.
Mas, no meio das tendências, observadas e catalogadas — seja pela história, sociologia ou psicologia —, há os eletrões livres, os cometas, os foras-da-lei. Recordemo-los para os homenagear, pois foram eles, aventureiros do pensamento vivo, que evitaram a petrificação do mundo. Para René Descartes (injustamente e redutoramente preso na cartilha do racionalismo), como ele próprio declara logo no início do magnífico Discurso do Método: havia chegado a hora de ler «no grande livro do mundo», tornando-se um viajante prolífico. Encontrar exércitos, frequentar homens de diferentes humores e condições, recolher as experiências que pudesse. Descartes aventurou-se no desconhecido porque não lhe bastava o que conhecia, nem o modo como conhecia. É verdade que as viagens não lhe trouxeram nenhuma ideia clara e distinta, mas foi essa aventura intelectual que lhe permitiu, mais tarde, focar-se no conhecimento das capacidades da razão; uma outra forma de aventura.
Para Blaise Pascal, «Nada é tão insuportável para o homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem ocupações, sem divertimentos, sem incumbências.» (Pensées) Mais próximo de nós, Vladimir Jankélévitch em L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux, explica bem o que nos impele, o que o levou à aventura: «Por um lado, o terror do risco desconfortável ameaça a economia das nossas rotinas diárias; por outro, há um desejo louco de profanar um segredo, decifrar o mistério do futuro.» Esta ambivalência inebria. A liberdade vence a determinação, o novo vence o velho, a desconstrução vence a repetição. A conclusão a que podemos chegar é que devemos viver de forma a que haja sempre um pouco de vertigem, de aventura na nossa vida. E também aqui, em primeiro lugar, uma aventura do pensamento, mas um pensamento cheio de mundo. Cheio de caminhos sem Ítacas.
Tudo isto para chegarmos a Friedrich Nietzsche, que só pode ser considerado um ponto de partida. Chegarmos como se chega a um começo. Nietzsche não fechou nada, não fez mais do que distribuir verdades-relâmpago, por isso continua vivo, ao nosso lado, para nos ajudar a interpretar o humano, mas também a experimentar formas de sobre-humano.
Nietzsche viajou sempre pelo corredor central da Europa que liga o Norte (Alemanha) ao Sul (Itália). Naumburg, Bona, Leipzig, Bayreuth (circuito da sua proveniência cultural); Basileia, Lucerna (Tribschen) e a Alta Engadina alpina (sobretudo a adorada Sils‑Maria, no Cantão de Graubünden) na Suíça; Nápoles / Sorrento, Roma, Génova, Veneza, Turim, a Sicília (apenas uma vez), em Itália; Nice em França. No entanto, fez projetos bem mais aventureiros que nunca foram realizados: Paris, Córsega, México, Espanha, Polónia... Por curiosidade e necessidade, viveu uma parcela importante da sua existência imerso em paisagens naturais, percorreu-as e mergulhou o seu corpo, uma «grande razão», no seio desses corpos paisageiros. Caminhante compulsivo, deambulava várias horas por dia nas montanhas da Alta Engadina, ou nas cidades do sul da Europa. Essa disposição refletia também o desejo de romper com o velho estilo lógico-racional da filosofia, inventando uma nova escola peripatética, na qual o pensar seguisse ritmos e tópicos mais próximos de fluxos vitais originários. Durante as suas caminhadas, parava bruscamente, e com o joelho no chão grafitava um ou outro enunciado no caderno de notas.
Nietzsche contribuiu para a reabilitação filosófica do corpo, opondo-se ao «corpo-alienação» de Platão, «corpo-erro» de Descartes e Pascal ou ao «corpo-pecado» do Cristianismo. Com o auxílio de alguns lampejos de outros pensadores (Espinosa, com certeza, talvez um pouco de Rousseau), iniciou a aventura de abandonar o cogito, o solipsismo megalómano da razão, e regressar à Terra, pensando com ela, sobre ela e por ela. Um regresso que, verdade seja dita, ainda não foi totalmente consumado. Encontramos, criamos outras alienações, amamos outras intangibilidades. Vivemos agora mais para produzir e consumir, do que para pensar, sentir e passear. Contemplamos mais facilmente a nossa conta bancária do que uma paisagem. Frequentamos os gabinetes dos psicólogos como antes frequentávamos os confessionários. E quando viajamos vamos ver postais.
É por isso que o ouvimos dizer no «Prefácio» de Humano, Demasiado Humano I, § 4, enquanto discute a doutrina da grande saúde: «é precisamente o sinal de uma grande saúde [grossen Gesundheit], aquele excedente que dá ao espírito livre [freien Geist] o perigoso privilégio de poder viver por tentativas [Versuch] e de se entregar à aventura [Abenteuer]: a prerrogativa da mestria do espírito livre!» (a tradução é nossa, disponível nas Edições 70 no verão de 2025). Este «Prefácio» foi escrito em 1886 e integra a reedição do livro de 1878, início da sua segunda grande linha de aventura, depois dos anos d’O Nascimento da Tragédia (1872), da docência na Universidade de Basileia, da amizade com Richard Wagner e do patrocínio intelectual de Schopenhauer. Virão outras: as de Assim Falou Zaratustra, da Genealogia da Moral, de Ecce Homo. Mas não foi uma aventura de aperfeiçoamento (como queriam Kant ou Montaigne), antes uma traição. Trair-se para experimentar, tentar outra coisa, sem vislumbrar uma meta. Haverá maior princípio de aventura do que este? Uma traição que deve continuar, não faz sentido colocarmos Nietzsche no congelador académico. Cada leitor do filósofo errante deve traí-lo, experimentar plantá-lo, de estaca, noutros solos. A sua obra é um começo, ainda que não se descortinem os alicerces, um impulso, um trampolim, não um fecho ou um fim. Porque, como declara nesse mesmo «Prefácio»: «é o futuro que dá as regras ao nosso presente.» (§ 7)
E se a aventura se medir, como acreditamos, por essa abertura ao que está por vir, incógnita perfeita e poderosa, tomemos novamente as palavras do nosso autor e façamos delas, com o peso de um determinismo que, ainda assim, exige escolha, o nosso lema de vida: «Quem alcançou, mesmo que só num certo grau, a liberdade da razão não pode sentir-se senão um viajante na Terra — uma viagem, contudo, que não tende para uma meta: porque não as há.» (Humano, Demasiado Humano I, § 638).
Aconselhamos apenas, indo de Wilhelm von Humbolt a Robert Musil, passando, naturalmente, por Nietzsche, que assumam «a grande individualidade como força espiritual». Que saibam, assim, manter viva uma relação produtiva com o caos, conjurando-o e aproveitando-o. Vivendo, talvez, como sugerem bons leitores nietzschianos (Joyce, Deleuze e Guattari) num caosmos. Ou, para dar um toque contemporâneo à nossa análise, no work in progress de que fala James Joyce em Finnegans Wake.  

Victor Gonçalves

19/10/2024

Gonçalo M. Tavares, entrevista ao Le Monde

Entrevista de Gonçalo M. Tavares ao jornal Le Monde, publicada no dia 30 de novembro de 2024 (https://www.lemonde.fr/livres/article/2024/11/30/goncalo-m-tavares-ce-qui-m-interesse-est-l-idee-d-ecrire-comme-verbe-intransitif_6421753_3260.html). Tradução de Victor Gonçalves.
Um ângulo hermenêutico que se desvia ligeiramente da nossa oligarquia intelectual.

Com um ouvido atento, escuta as nossas perguntas, depois a interpretação do seu tradutor, Dominique Nédellec. Com gestos rápidos, desenha palavras numa folha de papel — «Bíblia», «Biologia», «Talho» — circunda-as e traça linhas para ligar os termos entre si ou a símbolos obscuros. Ao sairmos do encontro com Gonçalo M. Tavares nos escritórios parisienses da sua editora, Viviane Hamy, lamentámos não ter roubado os esquemas que resumiam a conversa numa espécie de linguagem científica. Mas esse sentimento dissipa-se. Diferentemente do escritor português, filho de uma professora de matemática e de um engenheiro, nós não temos o condão matemático. É melhor ficarmo-nos pelas suas palavras e pelos seus livros, cujo poder evocativo e clareza profunda se assemelham a fábulas que atravessam os séculos.
Ao longo de cerca de vinte anos, este professor de epistemologia da Universidade de Lisboa construiu uma obra prolífica e multifacetada, estruturada em torno de dois ciclos: O Reino, uma exploração do mal no século XX, inaugurada com Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser (2003 e 2004; ed. Viviane Hamy, 2014), e O Bairro, iniciado com O Senhor Valéry e a lógica (2002; reedição de Viviane Hamy, 2008), a que se juntou uma dezena de habitantes — entre os quais O Senhor Brecht e O Senhor Calvino (2004 e 2005; ed. Viviane Hamy, 2009 e 2010). Cansado de constatar, no animado café lisboeta onde trabalha, como «todos pensam da mesma maneira, mesmo em cidades democráticas onde existe liberdade de pensamento», Tavares quis criar uma cidade imaginária habitada por «verdadeiros indivíduos». Em 2021, foram reunidos numa obra de 800 páginas (Le Quartier, editado por Viviane Hamy).

À volta destes dois ciclos romanescos gravitam contos, poesia, teatro e publicações que o antigo estudante de física, desporto e arte não associa a qualquer género literário. «O que me interessa, e Roland Barthes falava muito sobre isso, é a ideia de escrever como verbo intransitivo», confessa. A resposta à pergunta «O que é que escreves?» é uma redução da linguagem. Muitas vezes, agarra-se ao mesmo tempo a um livro científico, um livro de arte ou uma coleção de contos. «Neste momento, leciono “corpo, cultura e pensamento contemporâneo”. Avanço aos saltos e ao acaso, admite. Tenho uma relação perversa com a epistemologia, porque gosto muito da contradição, da ambiguidade. É aí que reside a força do pensamento».
A dos seus livros baseia-se no facto de não buscarem a verdade, mas em «aumentar as interpretações possíveis». É o caso de O Osso do Meio, o seu novo livro, que completa o ciclo de O Reino. Tal como em Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica (2004 e 2007; publicados por Viviane Hamy, 2008 e 2010), encontramos nele um mundo em guerra, habitado por indivíduos rebeldes ou consumidos pela loucura, pelo medo, pela sede de controlo; um exame do mecanismo das suas almas. Escritos há muito tempo, os livros que compõem O Reino foram revisitados pelo autor «de forma infinita» antes da publicação, o que explica a sua dimensão, nomeadamente o último, que passou muitos anos a reduzir. «Queria fazer um livro no osso, explica Gonçalo M. Tavares. Escrever como se tivesse uma faca, como se fosse o talhante a escrever. Como se esses cortes servissem para abrir a pele, para a levantar, para ver o essencial».
No início, Gonçalo M. Tavares não fazia ideia do que significava o “osso do meio”. O que sabe é que, como sempre, este texto nasceu de uma imagem, que acabou por ausente do livro. «Há alguns anos, em Lisboa, ouvi um russo a cantar no metro, recorda. Sem perceber uma palavra de russo, comecei a chorar. Havia uma tristeza incomensurável nas suas canções». Essa tristeza persegue-o no desenvolvimento da cidade de O Osso do Meio. Os ricos vivem nas alturas; os pobres, na cidade baixa. Restam-lhe quatro personagens nos braços: um assassino, uma adúltera, um voyeur e um carniceiro. O traço comum: carregam dentro de si «uma espécie de tristeza inicial».
O escritor está convencido de que nascemos tristes, o choro do bebé que sai do ventre da mãe não tem que ver com o choque do ar nos pulmões. Nascemos tristes e depois esquecemo-nos. «Mas, por vezes, como nas minhas personagens, lembramo-nos», diz. Gonçalo M. Tavares segue-os, curioso com essa «tristeza inicial», sem causa aparente, próxima da malignidade.

Por que razão a personagem Kahnnak mata em O Osso do Meio? Decidir que é por causa da sua origem social ou dos maus-tratos sofridos na infância seria «dizer que ela não é como nós», ignorar que um empregado normal pode, um dia, esfaquear o seu patrão. Pois «trabalhar atrás de uma secretária das 9h00 às 17h00 não nos torna menos instintivos», acrescenta o professor.

Como prova, partilha uma cena estranha observada ao pequeno-almoço num hotel confortável. Muito rapidamente, o pão acabou. «Eram talvez vinte pessoas para três pães», explica, já divertido com a anedota. Quando chegaram mais dois pães, os clientes lançaram-se sobre a comida, ignorando os mais velhos. «É em situações como esta que o ser humano se revela, quando falta o essencial. Não se trata de uma questão de classe social, de força ou de fraqueza. Trata-se de manter uma forma de delicadeza, mesmo em situações extremas. A delicadeza é, sem dúvida, a caraterística humana mais extraordinária». E a mais misteriosa.
«O Osso do Meio reenvia para aquilo que nos resiste, mas...», começa a dizer o romancista. A frase do tradutor fica suspensa. Tavares volta a pegar na caneta e desenha o esquema de um corpo. De seguida, os seus olhos castanhos fitam-nos por detrás dos óculos. Continua. «O Osso do Meio é um pouco o que todos procuramos. É o que nos daria a nossa estabilidade, o que seria também a causa do que nos acontece. Para um freudiano, o osso do meio talvez fosse a infância». Falemos da sua, em Luanda. Nos anos 60, o pai foi chamado a Angola, então colónia portuguesa, para construir uma ponte. Tem «memórias orgânicas» do país que deixou com a família aos 5 anos. Tavares recusou dois convites do governo angolano por discordar da sua política. «Agora penso em voltar, confidencia. Vai ser um regresso emotivo e acredito que vou chorar muito». As lágrimas sufocam-lhe a voz. Fala das imagens que os pais lhe transmitiram, dele, muito jovem, dançando. «Há qualquer coisa de não-racional em Angola», acrescenta. Algo que toca o autor, que se interessa pela «parte não burguesa do cérebro, essa que não se senta num sofá. A parte que anda, salta e às vezes cai». A parte imprevisível.
Habitualmente, Gonçalo M. Tavares não fala da sua família, diz, mas faz questão de nos contar, para terminar, como o seu pai, nascido em Portugal no seio de uma família muito pobre, pôde prosseguir os estudos graças à insistência dos seus professores. Sem eles, ele próprio não teria começado a escrever, aos 14 anos, na «enorme biblioteca» do pai. Sem este «momento decisivo», tema preponderante na sua obra, as suas filhas, que estudam matemática no Reino Unido, nunca teriam dado «esse salto».

Crítica a O Osso do Meio (L’Os du milieu, trad. francesa Dominique Nédellec, ed. Viviane Hamy, 160 p., 19 €).

Quatro personagens — Kahnnak, Maria Llurbai, Albert Mulder e Vassliss Rânia — e Klaus Klump, que faz uma aparição, vivem numa cidade nunca nomeada, assolada pela guerra e pela fome. Um deles é um assassino; o outro uma adúltera, «demasiado bela» e sem dúvida amaldiçoada; Albert é um médico que observa secretamente os seus jovens pacientes; o último é um talhante. Enquanto percorrem a cidade, o romance atravessa as suas biografias, disseca os seus pensamentos, ausculta as suas pulsões e instintos.
Porque é que matamos? Como é que resistimos às nossas piores inclinações? Qual é o custo da sobrevivência? O Osso do Meio sobrepõe esta escala humana à da cidade, observada como um organismo vivo. Na parte superior, os nobres bridam com champanhe; na parte inferior, os pobres vivem de restos.
Vinte anos após a publicação em Portugal de Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser, Gonçalo M. Tavares encerra o ciclo de O Reino com O Osso do Meio. Num estilo depurado, o autor desenha, com a precisão de um biólogo, o funcionamento de uma sociedade ordenada, minada pela guerra.
Mas a ciência não sabe tudo — pelo menos, ainda não. Não explica porque é que esta música, difundida nos cafés, entristece tanto as personagens, o que é que ela reaviva nelas. Este mistério essencial leva o autor a escrever — e nós a lê-lo, sempre com a mesma intensidade.

Um excerto em francês

«Kahnnak à présent se souvient, vaguement, d’avoir lu un récit de voyage dans un pays pauvre, en d’autres temps : le mendiant loqueteux s’approchant du visiteur qui écrit ; il boite, ce mendiant, il marche comme mû par une audace terrible, un courage musculaire, il se traîne, tend sa main décharnée et dit : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose !”
“Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” ; voilà la phrase qui définit les hommes, leur essence, ce qui reste une fois qu’on a tout retiré, ce qui reste de ce qui est instinctivement humain, jusqu’au dernier moment, une fois que toutes les couches sont tombées – les phrases et les gestes élégants –, quand la faim surgit et que la survie devient la seule urgence des hommes qui, dès que le premier danger se manifeste, oublient leurs belles intentions : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” (…). » p. 26

Eros, Amargo e Doce de Anne Carson (Edições 70, 2024)

Anne Carson escreveu Eros, Amargo e Doce, agora publicado nas Edições 70 com tradução minha, em 1986. É um livro que faz parte da mesma tradição que é iniciada por Platão em O Banquete: é um discurso sobre eros. Enquanto discurso sobre eros é um objecto inesperado: abre com uma imagem que surge num conto de Kafka, “O Pião,” sobre um filósofo cujo passatempo mais obsessivamente cultivado era tentar deter em plena rotação piões lançados por crianças que ele costumava observar no seu tempo livre, e encerra-se pedindo ao leitor que imagine uma cidade onde o desejo deixou de existir. Sendo um texto relativamente breve, a cronologia aqui revisitada é extraordinariamente vasta: de Safo, que terá sido a primeira pessoa a descrever eros como amargo e doce, a Barthes, passando por Homero, Sófocles, Stendhal, Virginia Woolf, Sartre, Foucault, Velázquez. O fio condutor do ensaio são os dois extremos de eros, a amargura e a doçura. Pensei durante muito tempo, e talvez ainda o pense, que Eros, Amargo e Doce seja a melhor introdução breve que conheço à cultura grega antiga. Quase todos os autores importantes são aqui discutidos do ponto de vista de um aspecto central do seu pensamento, eros. Por outro lado, ao tentar contar a história de eros enquanto conceito vemos os movimentos de progresso e retrocesso que marcaram o modo como ele foi inventado no mundo grego. Da voz arcaica de Safo que o vê como polarizador da alma humana, que o vê como coisa que nos divide e dividindo-nos nos revela, ao mesmo tempo destruindo e deixando viver, até ao melodrama que se procura sempre prolongar nessa forma de proto-telenovela que são os romances gregos que datam já da era cristã, o ensaio conta uma história possível do modo como o desejo é fundamental à vida.

Anne Carson é uma das pensadoras mais inclassificáveis do nosso tempo. As suas associações são tão inesperadas quanto essenciais. Enquanto poeta, Anne Carson raramente tem intuição para o que é a música de um verso. O que é poético na sua poesia é normalmente da ordem da elipse. As suas elipses são tão certeiras que às vezes nos deixam sem ar. É, através de uma elipse, cujo tempo é a velocidade aguda da poesia, que podemos unir, por exemplo, um homem que abre um chapéu de chuva negro numa planície ao deus dos mortos, Hades, no Hino Homérico a Deméter. O que une um gesto feito num dia do século XX numa planície gelada de um continente que não é a Europa ao deus dos mortos tal como pensado por uma inteligência arcaica talvez do século VI a.C.? É neste tipo de associações que a poesia e a prática de ensaísta de Anne Carson se cruzam. 

Eros, Amargo e Doce é, então, um ensaio que se apropria de uma maneira de pensar específica da poesia. Abre com Kafka e tem qualquer coisa de kafkiano. Por exemplo, quando para falar da condição paradoxal de eros, Anne Carson recupera uma imagem de um fragmento perdido de uma tragédia de Sófocles e essa imagem permite uma investigação de um estado paixão como análogo à condição do gelo nas mãos de crianças. A princípio é um prazer bastante novo, mas não é possível continuar a segurá-lo sem que ele se derreta. O instante do gelo derreter e o paradoxo da resposta, de não poder largar, repetem a condição paradoxal de eros, o amargo e doce que dá título ao poema. Uma das reflexões mais estruturais do livro é uma crónica da forma como a introdução da escrita, no momento em que é inventada, muda a nossa relação com o pensamento, com a privacidade, com os próprios sentidos. Publicamos abaixo um excerto, sobre eros, princípio e revelação. Acidentalmente, é também sobre a distância que separa a filosofia da sofística (Sócrates é uma espécie de deus ex machina neste ensaio).

Como Sócrates a conta, a tua história começa no momento em que Eros entra em ti. Essa incursão é o maior risco da tua vida. O modo como reages é um índice da qualidade, sabedoria e decoro do que está dentro de ti. Conforme reages, entras em contacto com o que está dentro de ti, de forma súbita e alarmante. Entendes o que és, o que te falta, o que podias ser. Que é este modo de percepção, de tal maneira diferente da percepção normal que é melhor descrevê-lo como lou- cura? Como é que, quando te apaixonas, parece que de súbito estás a ver o mundo como ele realmente é? Uma atmosfera de conhecimento flutua sobre a tua vida. Pareces saber o que é real e o que não é. Algo te eleva em direcção a um entendimento tão completo e claro que te torna jubilante. Esta atmosfera não é um delírio, segundo a crença de Sócrates. É um olhar para baixo através do tempo, para coisas que conheceste em tempos, tão surpreendentemente belas como o olhar do teu amante (249e–250c).

O ponto no tempo que Lísias apaga do seu logos, o momento de mania quando Eros entra no amante, é para Sócrates o único e o mais importante momento a confrontar e compreender. «Agora» é uma dádiva dos deuses e um acesso à realidade. Compenetrares-te do momento em que Eros olha para a vida e entenderes o que está a acon- tecer na tua alma naquele momento é começar a entender como viver. O modo como Eros assume o controlo é uma educação: pode ensi- nar-te a verdadeira natureza do que está dentro de ti. Assim que o vislumbras, podes começar a tornar-te isso. Sócrates diz que é o vis- lumbre de um deus (253a).

A resposta de Sócrates ao dilema erótico do tempo é, então, a antí- tese da resposta de Lísias. Lísias escolhe suprimir o «agora» e narrar inteiramente a partir do ponto estratégico do «então». Do ponto de vista de Sócrates, riscar o «agora» é, em primeiro lugar, impossível, é uma impertinência do escritor. Mesmo que fosse possível, significaria perder um momento de um valor único e indispensável. Sócrates propõe, em vez disso, que se assimile o «agora» de tal modo que este se prolonga por uma vida inteira e para lá dela. Sócrates inscreveria o seu romance no instante do desejo.

Anne Carson, Eros, Amargo e Doce, Edições 70, 2024.