2 poemas

Ōkōchi Sansō, Arashyiama (Quioto)

Novembro 2023

Komorebi

Aspiras à ascensão do silêncio bruto,

Abrupta a certeza do impalpável momento,

Mais lento que um suspiro no desmoronamento

Da partida, o toque último das pupilas

No deslocamento dos astros, todas as ilusões

O vento que move as distâncias imperceptíveis,

Derrotas-te a cada desejo,

Mas nem o impacto violento de um definitivo olhar

Consegue tolher irremediavelmente

Uma eternidade humana.

Fazer a Janta

O pão endurece, as manhãs perdem-se uma a uma

E sobre a mesa, alho e cebola, esperando o azeite quente,

Um pôr-do-sol que valha a pena, um reflexo estrangeiro

Num mar familiar e mitológico,

Quantas vezes há menos poesia na poesia

Que num gesto quotidiano executado com graça,

Viver, esse ensino constante da perdição, abrir mão,

Teme-se mais o esquecimento que ficar sem resposta,

Por isso se erguem monumentos à incerteza

Para que perdure na eternidade,

Deixa-se cozer o ragu, mexe-se um pouco a massa

E espera-se, uma nuvem permite um pouco de sol,

Toca a campainha, é tudo.

Salvar o Futuro ou ser um herói do sucesso?

Karl Valentin

Vivemos com o «stress da nossa imperfeição», diz Peter Sloterdijk numa entrevista recente ao El Pais, no âmbito da tradução para castelhano do seu último livro: Wer noch Grau gedacht hat: Eine Farbelehre (Quem Ainda Não Pensou no Cinzento: uma Teoria da Cor). Acrescenta: «O horizonte é sombrio, o sentimento de que o nosso mundo está condenado é omnipresente». Em vez de desejarmos o futuro, afastamo-nos dele refugiando-nos em «atitudes frívolas».

Parece fácil aceitar esta visão, que no caso do filósofo alemão é a de um niilismo feliz, ou, como ele por vezes diz, de uma poesia da resignação. Tudo leva a crer que o futuro já não tem luz suficiente para aquecer o presente, faz todo o sentido, pois, repetirmos Karl Valentin e o seu «Dantes, o futuro era melhor».

Felizmente a psicopolítica e a psicogestão não param de nos surpreender. Muitas vezes sem querer, acredito que são legião os enganadores enganados que se candidatam a empregos de controlo (de qualidade e de fala de qualidade). É assim que vemos emergir máximas de incitamento à crença alegre do tipo «Inválidos do Comércio», «Heróis do Sucesso» ou «Impulso Fundamental», em, respetivamente, associações corporativas, transportadoras e empresas de construção civil. Os mais epicuristas verão nestes batismos a vontade, talvez ingénua, de lutar contra o cinzento de hoje. Os mais estoicos, incapazes de se iludirem mas acreditando secretamente na vida eterna, confirmarão a suspeita de que fazia mais sentido esperar por Godot. Os otimistas, elogiarão as capacidades dadaístas do humano, continuando a remeter sub-repticiamente para Deus a responsabilidade de resolver os problemas do fim do mundo (fim deste ou daquele mundo).

Para Deus ou para uma Igreja secular que se dedicou a fazer política e tem a convicção, sem porquês muito pormenorizados, de que se governar um país bailaremos e cantaremos até de madrugada, haverá um novo Cântico dos Cânticos, uma religião do amor, não já ditada pelo distante, incomensurável divino, mas pelo homem, pelo homem e para o homem. Seremos, finalmente, bem-sucedidos contra os factos do mundo. Cessará o niilismo, essa obsessão de viver e propagar desvalorizações, da vida inclusive. Sem almas doentes (depois da ação da nova política curativa), o mundo real e o seu potencial de alegria poderão propagar-se e perpetuar-se.

Onde poderemos vislumbrar essa potência psicopolítica da suprema motivação (motivos intensos e justos)? Claro, há muito charlatanismo, já que aumenta diariamente o número dos que querem ser enganados, é essa a economia pujante e basilar das fake news (nunca se tratou verdadeiramente da verdade e da mentira, mas de querermos ou não ser enganados por coisas que parecem aumentar a nossa autoestima), mas há também o trabalho, honesto e ousado, de encontrar uma expressão-dinamite que nos ponha todos a correr para o mesmo lado. Encontrei ontem a minha: «salvar o futuro». Assim mesmo, um partido político português propõe-se, nem mais nem menos, salvar o futuro. Isto é, preservar uma coisa que não existe (a ontologia do futuro só pode ser negativa, mesmo acreditando com toda a força possível na causalidade), mas com a qual as pessoas ainda sonham. Como escreve Silvina Rodrigues Lopes, no magnífico O Nascer do Mundo nas suas Passagens, no futuro dirigimo-nos para o desconhecido, temos a «expectativa de haver futuro».

Será uma espécie de Ética de Responsabilidade à la Hans Jonas? Sim e não. Sim, porque queremos que a vida continue, e nessa continuação seja mais fácil e autêntico viver. Não, porque parece que o futuro se extinguirá se esse partido político não o salvar (Hans Jonas nunca foi tão catastrofista nem megalómano).

Para lá da óbvia contradição (não se pode salvar o porvir, embora o presente condicione as condições de adversidade com que continuaremos a viver), haverá sempre futuro, poderá é ser um futuro de merda (para uma ecologia-geral, esqueçamos os humanismos especistas). Retenho também que estamos perante a evidência de que se trata de um caso de suprema presunção, forjado nos gabinetes de especialistas em comunicação (todos os grupos políticos têm, e valorizam desmedidamente, estes funcionários do slogan): só aquele partido pode salvar o futuro, qualquer outro que ganhe mostrará a impotência profetizada em negativo, mantendo-nos alienados no presente sombrio e no ressentimento do passado, onde fomos todos ou réus ou vítimas, ou colonizadores ou colonizados.

É por tudo isto que prefiro o slogan «Heróis do Sucesso», passado para a arena política podia servir um ecossistema psicopolítico mais à direita, talvez mesmo Trump o pudesse usar com proveito.

Situação de Emergência

Está tudo escrito numa língua
que não consigo perceber, repete
Alice vidrada no espelho da página.
Enche-me a cabeça de ideias, é belo
e cortesão, de alguma maneira. Mas isso
é do teu lado, leitora, nós também cuidamos
e queremos uma morte condigna pela água.
 
Estamos condenados a uma verdade ineficaz:
a compreensão começa a partir do exacto momento
em que se desfaz. Foi Ashbery quem o disse, citando
a situação de emergência em que a mente se aflige
nas condições meteorológicas de um sobe-e-desce:

“algo / devia ser escrito sobre o modo
como isto te afecta / quando escreves
poesia: / a extrema austeridade de uma cabeça
quase vazia / colidindo com a exuberante,
rousseauniana folhagem do desejo de comunicar
qualquer coisa entre um fôlego e outro, /
nem que seja só pelos outros, pelo seu desejo
de te perceber e desertar”. Nem tudo está perdido

quando dois dedos mornos coincidem
na mesma vocação de lebre, penso acocorado
num palácio em Vila Real enquanto tento verter
a camisa desabotoada do americano sem abandonar
a forma do seu corpo frio, a tira cómica da tarde
cumprida a traduzir um opaco manual de instruções.

E de repente, na dolorosa quina da circunstância,
dou com o termo balseiro, se bem que escutado
por alto junto ao café do pelourinho, pairando
algures sobre a triste torrada do descanso,
e penso logo em metáforas mortas, afunilo-me
em dorso escamado por uma lura de coelhos

e dou outra vez com Alice a reler Ashbery
do outro lado da Terra, extasiada com a folga
semântica visível numas sedutoras manchas
de tinta que hoje lhe proíbem peremptórias
outro centro de comunicação.

Visitações

Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo.
Neste calendário não havia
a métrica fílmica, discursos
ou palavras lúridas para revisitar,
somente imagens que se profanavam
a si mesmas na ânsia de se recriarem.
Os tecidos envelhecidos do verbo não eram
pardos, as complexas idades da mente
estavam a ser preparadas. Lembravam
os tecidos moles de rio e rochedo, carmes
conseguidos com a primeira saliva do dia.

Esquecemos a cega censura da génese.
O que distingue as manhãs supremas
de Shelley e Keats só pode ser
o descuido de uma ou outra gota a mais
vertida na lâmina do orvalho. Sabemos
como eram essas visitações escandidas
pelo ângulo de uma luz ainda nodosa.
Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo
no nosso quintal delapidado,
e súbito eram horas de Shelley
e Keats neste calendário inumerado.

Vou em plena voragem amniótica do tempo.
For ‘twas the morn: febre nos olhos,
Sopro estéril no sangue das pedras frias
quando as levantei para conhecer
o tenebroso desenho das lagartixas.
Dedos desencontrados de futura biografia,
sinas que nem um sutra saberia destecer.
Na aragem da visão passavam mãos meninas
com selhas transbordantes de branco,
aventais com a goma dos líquenes
enquanto, marcado pelos dentes das estrelas,
flectido na terra, este coração desaparecia. 

(inédito)

Ciclismo e Filosofia

Há muito que sigo a Volta à França (Tour de France) em bicicleta. Sigo à distância, primeiro em diferido, quando as notícias desportivas impressas apareciam em Bragança (a minha Ítaca mal-amada) cerca de 12 horas depois de serem publicadas na capital; agora pelo direto televisivo, podendo mesmo escolher que comentadores quero ouvir. Sonho em estar lá, de corpo inteiro, nos sítios onde alguns segundos, ou minutos, valem o tempo longo de muitos compromissos existenciais sem qualquer intensidade dionisíaca. Tudo isto porque mantenho a esperança ambiciosa de recuperar um mundo no qual me possa encontrar a mim. Aos agnósticos do ciclismo, parece absurdo demorar meio dia a posicionar-se numa curva de estrada de montanha para ver e vibrar (raras são as vibrações do olhar) com a passagem dos 20 ou 30 primeiros corredores, capturando o eterno no efémero. E desde 1903 (o primeiro Tour) que é assim, ano após ano (interrompido somente durante a Segunda Guerra Mundial), um eterno retorno do épico.

Os Monty Python fizeram humor com duas equipas de futebol compostas por filósofos (Alemanha vs. Grécia). David Foster Wallace escreveu sobre a experiência religiosa que emergia (uma física divina) do jogo de ténis de Roger Federer. Outros descreveram um José Mourinho infiel a si mesmo ao padronizar-se. Muitos ainda sobre desportistas e desportos, sobre uma das principais condições de possibilidade de ser humano, porventura mais homo ludens do que homo laborans, o jogo (que talvez não retire ao real a sua realidade, como defendeu Jean-Paul Sartre). Um ludens muito sério, agora que o lazer já não é ócio, mas negócio.

Cada desporto, elevado à institucionalização e absorvido pela economia capitalista, tem traços dominantes (mais de existência do que de essência), por exemplo: no futebol, intensidade e fanatismo; no ténis, pancada certa e tenacidade mental; no basquetebol, potência e exatidão; na natação, deslizar e respirar; no atletismo de velocidade, explodir e quase levantar voo… No ciclismo, viagens épicas, o melhor desporto para prolongar o culto do herói dos Olímpicos gregos, as etapas de alta montanha exigem aguentar torturas extremas nas subidas e medos de morte nas descidas, enquanto nos contrarrelógios (estranho agon filosófico, o Humano e o Tempo, um tempo que termina na vida em vez de na morte, a ontologia do morrer de Martin Heidegger) há um sofrimento solitário que concentra toda a tortura num só indivíduo. Apesar das disparidades, os diferentes desportos oferecem várias oportunidades aos melhores.

Aproveitando a experiência dos Monty Python, que filósofos podemos associar aos principais candidatos à vitória do Tour deste ano? Aposto em quatro corredores: Tadej Pogacar (talvez o favorito, mesmo tendo feito a Volta à Itália, que ganhou com muito à vontade), Jonas Vingegaard (vencedor dos dois últimos Tour, mas com um acidente grave há alguns meses, obrigando-o a refazer o plano de preparação física e psicológica), Primoz Roglic (perdeu incrivelmente o Tour de 2020 para Tadej Pogacar) e Remco Evenepoel (o mais novo, o mais imprevisível, talvez o mais talentoso, mas com uma preparação para este Tour muito condicionada devido a uma queda na Volta ao País Basco). Há outros excelentes ciclistas, por exemplo João Almeida (da mesma equipa de Tadej Pogacar, UAE), mas é pouco provável que a vitória final fuja àqueles quatro sobredotados (sobre-homens), todos eles corsários, prontos a roubar o que for necessário para vencerem.

Assim, à maneira de uma tentativa (versuch), tão apreciada e praticada pelo filósofo artista de Assim Falou Zaratustra, associo Friedrich Nietzsche a Remco Evenepoel (pela vontade que revela de correr riscos, de sobrestimar as suas capacidades, pela generosidade heroica, o oposto da piedade, um pathos da distância relativamente aos outros ciclistas, a vivência da tragédia, uma queda que quase o matou na Volta à Lombardia de 2020, menos refinado, contudo, do que Nietzsche, mas um homem das alturas e do risco, dos desastres grandiosos, até agora). Junto Byung-Chul Han e Vingegaard (a contenção precisa, sabe o que fazer em cada situação, e fá-lo bem, a subir as montanhas ou a lutar contra si nos contra relógios, reservado quase até ao enigma, uma potência que não desperdiça qualquer recurso, seguindo uma máxima de Han: «a vida não é autoconservação, mas autoafirmação»). Primoz Roglic e Gilles Deleuze (deslizar e rizomatizar em vez de enraizar, defendia Deleuze, é assim que corre Roglic, quando está em forma parece desenhar as estradas que percorre, em vez de se submeter a todas as leis que definem as entropias que travam os ciclistas, apesar de ser um bom trepador, tenho a sensação de que nele o vertical se horizontaliza, aspira ao ascético sem sair do mundo). Finalmente, o extraordinário Pogacar a Peter Sloterdijk ou Michel Foucault (pensadores mais vastos do que a filosofia, ciclista para lá de qualquer definição fornecida, ainda que em esboço, pela história do ciclismo, talvez só Eddy Merckx, belga como Evenepoel, autorize comparações, Pogacar é um campeão exuberante, assumindo um talento desmesurado com uma incrível modéstia — bem dentro do que disse Hannah Arendt: «Só os espíritos vulgares se permitirão retirar orgulho daquilo que fizeram» —, como Sloterdijk e Foucault é capaz de admirar o que os outros fazem, o colapso numa ou duas etapas do último Tour deram-lhe a aura que talvez lhe faltasse, os heróis trágicos precisam de cair de boas alturas, Foucault morreu cedo, Sloterdijk conseguiu indispor o intocável Jürgen Habermas por causa de uma desejável antropotécnica, Pogacar perdeu sete minutos para Vingegaard numa etapa do Tour de 2023).