Os males e o sangue

José Cardoso, o migrante
interno de Salinas, Minas
Gerais que reza a lenda
de família, veio foi a pé
para as terras paulistas,
onde quebrou suas costas
a vida afora na Companhia
Paulista de Estradas de Ferro.
José Cardoso, vô materno,
dizem os mais velhos todos
(e baixam até hoje a voz
ao falar o nome do senhor)
que não dizia “A”, só olhava
e já sabiam na casa todos
que se disse um desgosto,
que história tristíssima essa
qu'inda hoje me atormenta,
José, seu pai e meu bisavô
indo campear de tristeza
o sítio a cavalo pra não ver
a partida do filho mais velho
e dando ordem à mulher,
sua mãe e bisavó minha: "não
deix'ele levar o mais novo".
José Cardoso de Salinas,
era o senhor o mais novo
e só Deus sabe que sonhos
ou ilusões fizeram o senhor
aceitar da mãe pão e doce
e seguir o irmão mais velho
para migrar só, entre onças.
José Cardoso, valeu a pena,
eu pergunto, tal desgosto
pros pais nunca mais vistos,
vir a pé de Salinas, fronteira
da Bahia com Minas Gerais,
ao município de Bebedouro,
onde viu Rosária, a cabocla,
a de cintura boa de dar filho,
gerada na violência antiga
das bandeiras dos paulistas
que o senhor por um sonho
invejava, sonho bobo e tolo
de melhora, José Cardoso,
com quem juntou os trapos,
moça paupérrima tal rosário
de contas de coco, vó e vô
analfabetos, iletrados, povo
que não tem onde cair morto,
criados por caiporas, botos
e lobisomens. Esses Cardoso
tidos por pobretões vaidosos
pelos vizinhos de Bebedouro,
analfabetos metidos a besta
porque mandavam pra escola
as filhas e filhos todos, quiçá
pra não quebrarem as costas
estes e os filhos vindouros
em estrada de ferro paulista.
E de geração a geração, olha:
já dominamos o abecedário todo,
vô, e até a filha alfabetizada
deu ao senhor este neto
metido a mula-doutor, poeta
que sequer assina seu nome,
José Cardoso, prefere o outro,
o da parte imigrante europeia.
E por seu próprio sonho bobo
não partiu ele por si à Europa
donde veio por sonho louco
a outra metade de seu corpo,
para fazer por lá o que o outro
vô morto fez por terras paulistas?
E logo adubaremos as terras
donde vieram uns, foram outros,
e aí, na terra de Bebedouro
que agora o senhor aduba
no jazigo abarrotado da família,
onde a CPEF foi à bancarrota
e os trilhos dessas ferrovias,
(como relatou Claude Lévi-Strauss
em seu triste Tristes Trópicos)
nunca haviam de ir pra frente
e muito menos repartir o ouro
entre os caipiras e caboclos,
eu pergunto, valeram a pena,
meu finado Seu Zé Cardoso,
aqueles passos de Salinas todos,
e servirá agora de calêndula
em suas costas algum poema?