Nadar

 

Para Antonella Di Marzio,
que nem nunca me disse se gosta de nadar.

Há aquele poema da Sophia em que ela diz que quando morrer voltará para viver todos os momentos que não viveu junto do mar. Penso também que, se desse, queria voltar para nadar em todas as extensões de mar em que não vou conseguir nadar. É um pouco o mesmo dos livros que não vai dar para ler. O filósofo alemão Lessing dizia que a diferença entre a pintura e a poesia é que uma se desdobra no tempo e a outra no espaço, mas de cara na linha de água tenho sempre a impressão que nadar é alguma espécie de soma das duas coisas: tempo e espaço claramente desaparecem um no outro à medida que os braços e as pernas se movem na água. Cresci longe do mar e comecei a aprender a nadar cedo, numa piscina construída dentro de um pinhal, por onde se chegava de bicicleta, por uma estrada de terra batida que era mal iluminada e, por isso, era preciso ter especial cuidado no inverno. Havia um instrutor que era um oficial da marinha, um homem alto e bem-parecido e por quem as minhas quatro ou cinco colegas se apaixonaram todas na viragem da infância para a adolescência. Eu não, porque tinha parado de nadar. A adolescente chata que eu fui andava de nariz escondido dentro dos livros de latim. Esqueci-me de nadar e, consequentemente, da vida algures entre a primeira e a quinta declinação e os exercícios de tradução das Filípicas. Não me lembro bem se os romanos, mortos há séculos, mas para quem o mar era tão importante, só me fizeram voltar a pensar em nadar quando cheguei àquela imagem no De Rerum Natura de Lucrécio:

Suave, mari magno turbantibus aequora ventis,
e terra magnum alterius spectare laborem;
non quia vexari quemquamst iucunda voluptas,
sed quibus ipse malis careas quia cernere suave est.

(“Pleasant it is, when on the great sea the winds trouble the waters, to gaze from shore upon another’s great tribulation: not because any man’s troubles are a delectable joy, but because to perceive what ills you are free from yourself is pleasant,” na tradução, um pouco tosca mas inteligente (não me convence o pleasant por suave), de W.H.D. Rouse na Loeb.)

O equipamento de natação passou a andar dentro da mochila talvez às quartas ou às sextas-feiras, não me lembro bem, quando o terror das provas globais no primeiro ano da secundária passou. O equipamento viajava pouco mais de cem quilómetros por dia entre o liceu e a piscina, para que eu pudesse nadar um pouco já de noite, fora da hora da minha turma normal. E não me lembro de quase nada daquelas sessões de natação, excetuando o edifício da piscina aceso entre os pinheiros e a libertação do corpo no mergulho da prancha, aqueles poucos segundos de voo, a pressa em entrar dentro de água e em começar a mexer-me porque era preciso aquecer. Lembro-me do falhanço espetacular de entrar de chapão, um erro que nem sempre se evita. Quando mais tarde vim a ler As Memórias de Adriano da Marguerite Yourcenar achei que o ritual daquele mergulho tinha de ter qualquer coisa que ver com uma das últimas frases do romance, quando se diz que é preciso entrar na morte de olhos abertos; e só muitos anos mais tarde, a destoar entre um bando de turistas americanos diante do túmulo do mergulhador em Paestum, vi claramente a alegria simples de um mergulho de colunas em esquema para uma água esquemática. A alegria do último mergulho como coisa banal no mundo dos vivos e metáfora de entrada no mundo dos mortos.

Túmulo do Mergulhador, Paestum, ca. 470 a.C.

Túmulo do Mergulhador, Paestum, ca. 470 a.C.

Havia nadar nas piscinas da Cidade Universitária durante o curso e no Atlântico enquanto vivi em Portugal. Havia as diferenças entre nadar nas praias de Lisboa e do Porto. Há muito tempo que não entro no mar em Portugal. Não gosto de nadar no Atlântico. É demasiado frio, mas tenho alucinado noutras piscinas e noutros mares as ondas e as correntes, a beleza cortante de nadar num estado de alerta que é uma resposta consciente a sentir à nossa volta o campo de forças de um elemento que nos ultrapassa completamente. A última vez que senti algo como isto foi numa praia muito recôndita do norte da Grécia, numa tarde em que no espaço de poucos minutos, de um céu carregado que li mal, uma tempestade de granizo desabou sobre o mar e uma força imensa podia facilmente ter-nos puxado para longe da costa se não tivéssemos sido rápidos a sair. É importante escapar a tempo ao que nos quer destruir, acho, uma coisa que se aprende cedo com a natação e também dá jeito para outras situações. Em Inglaterra as piscinas fizeram-me falta durante o confinamento e durante muitos meses vi gente nadar diariamente no Tamisa, gente indiferente a saber que esses braços de rio são zonas poluídas, com depósitos de resíduos industriais. Via-os entrar e sair da água nas cancelas que estão construídas para os remadores e penso que a solidão dos nadadores é a mesma dos escritores. Não sei que amigo é que me contou que Anne Carson tem sempre de nadar, onde quer que esteja.

Em Oxford, antes do mundo confinado, costumava nadar na piscina da universidade, num sítio que se chama Iffley Road, a que me apeguei porque também lá chegava de bicicleta, mas não por uma estrada de terra batida, e onde filas de sapatos se empilhavam em bancos à entrada porque é proibido entrar calçado. Às horas a que eu aparecia era eu e um grupo de cinco velhinhas que no balneário cantavam em uníssono no fim do treino, em alguma língua que me parecia mandarim, gloriosamente alto e (um pouco menos gloriosamente) nuas, olhando-me com a pena e o desdém que se reserva aos intrusos mais inconvenientes. Em três ou quatro anos de nadarmos juntas, isto é, em faixas adjacentes, nunca trocámos uma palavra. Não sei porquê. Às vezes via-as na sua disciplina cantante e vinha-me à mente uma fotografia de Cartier-Bresson que vi uma vez em Paris, tirada na China, que mostrava estudantes da cidade de Beijing a construírem a piscina da Universidade, a baldes e força de braços numa era para lá de industrializada. Gosto de pensar que tenho nadado em piscinas isentas de crueldade. Às vezes entramos numa piscina e é o que basta para ficarmos sozinhos com a persistência da memória, como sugerem as cenas em que se vê Juliette Binoche a nadar no Bleu de Kieslowski. (Considerações sobre outras piscinas cinematográficas, nomeadamente as que aparecem em La Piscine de Jacques Deray e A Bigger Splash de Luca Guadagnino, vão ficar para crónicas de outra estação porque os leitores da Enfermaria 6 são de todas as idades e porque, infelizmente, o outono inglês é previsivelmente vitoriano.)

Henri Cartier-Bresson, Beijing, 1958

Henri Cartier-Bresson, Beijing, 1958

Às vezes antes de entrar no edifício da piscina em Iffley, via, das janelas, o cronómetro aceso sobre os tanques, com a inscrição Poseidon acima, e lembrava-me do título do livro da Golgona Anghel, Nadar na Piscina dos Pequenos. Em Iffley não há piscina dos pequenos, onde cresci sim, e costumava jogar uma espécie de voleibol aquático com as minhas irmãs, a irmã mais nova ficava no meio, para gáudio das mais velhas e às vezes penso que íamos jogar para aquela piscina só para encenarmos imperfeitamente aquele fresco da Villa Romana del Casale, na Sicília, onde se vê raparigas em biquíni a jogar com uma bola.
Mas para onde terão as velhotas que cantavam ido? Para onde os estudantes que construíram a piscina a braços? Onde estarão eles a nadar agora?

Gostei de nadar no Pacífico, que por qualquer coisa me lembra o Mediterrâneo, mas acho que as minhas extensões preferidas de mar ficam nas ilhas gregas, em Paros e Naxos, em Cefalónia (onde às vezes a água é tão clara que os barcos fazem sombra no mar, mas cujas correntes podem ser tão traiçoeiras que nos lembramos que são estas as costas de Ulisses), em Creta e Rodes e na pequena ilha de Symi, numa aldeia que se chama Nimborio, onde uma vez, depois de beber muito ouzo, uma velhota me contou que quando era mais jovem costumava sair de noite com um pequeno barco que era do marido, para nadar sozinha e depois lançar as redes ao mar; e houve um ano em que apanhou tanto peixe que todos os pescadores em volta lhe vieram pedir conselho. É raro nadar de noite, mas às vezes gosto de ver o sol nascer sobre o mar enquanto nado.

Depois da tempestade de granizo lá naquela praia do norte ter passado, voltei para caminhar junto ao mar com um par de amigos e durante alguns quilómetros tivemos a impressão que nada tinha acontecido. Depois começaram a aparecer as árvores derrubadas e os barcos arrastados para a costa e na vila mais próxima um iate tinha sido lançado para a praia e um minúsculo barco tentava puxá-lo de novo para o mar. Ficámos ao longe, de cocktails na mão, comprados num dos últimos bares abertos e tentei falar de Lucrécio enquanto víamos o barco ser puxado pelo piloto maníaco no seu barquinho, que dentro da cabine devia estar a amaldiçoar a hora em que atendeu aquele telefonema; e achámos que era impossível até que qualquer coisa se desprendeu e de repente as velas se ergueram e todo o barco virado de novo para cima voltou a flutuar no mar, para aplauso geral na praia.  

Às vezes alucino os fantasmas de gente que vi nadar e nunca mais tornarei a ver. Alucino os barcos, os pontões, as pranchas que foram seus e de onde os vi mergulhar. Regressam os seus gestos, imagens às vezes submersas no lusco-fusco da lembrança, às vezes tão claras como fotografias. Lembro-me de praias, de cores e modas de fatos de banho, dos corpos nas diferentes estações das suas vidas, do ritmo das suas braçadas, das extensões que percorriam, por onde exactamente, até onde o meu olhar os perderia de vista. Lembro-me às vezes da luz a que os vi e não os tornarei a ver. Tenho nostalgia de ver certas pessoas nadar. E deve ser qualquer coisa dessa alegria que volta à memória do meu corpo sempre que posso voltar a nadar.

Oxford, 25 e 26 de Setembro de 2021

Luca Zingaretti em Inspetor Montalbano, nadando a cada manhã para refletir nas suas investigações.

Luca Zingaretti em Inspetor Montalbano, nadando a cada manhã para refletir nas suas investigações.

Pontão de Agios Pavlos, Lindos, Rodes, 2020

Pontão de Agios Pavlos, Lindos, Rodes, 2020

Queda Medea

Queda Medea

Queda Medea es el primer proyecto de Skaenika Teatro, grupo teatral creado en el seno del curso de Literatura Latina de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Granada que tiene por objetivo difundir, desde un abordaje contemporáneo, algunas de las obras literarias de la Antigüedad Clásica, no exclusivamente los teatrales. El espectáculo propone una relectura de la más famosa matricida griega, Medea de Cólquida, una de las más trágicas figuras femeninas de todos los tiempos. Desde una experimentación dramatúrgica sobre los textos de Séneca y Ovidio –mezclándolos, borrándolos, poniendo a prueba los límites dramáticos del uno y del otro–, presentamos a una Medea múltiple, polifónica y sobre todo actual. ¿Por qué habrá que leer el caso de Medea como algo más que la acción extremada frente a un amor traicionado?

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Sophokles

Sófocles, Filoctetes (versão de Frederico Lourenço, encenação de Luís Miguel Cintra), Teatro da Cornucópia, 2007 

Sófocles, Filoctetes (versão de Frederico Lourenço, encenação de Luís Miguel Cintra), Teatro da Cornucópia, 2007 

A maior parte dos argumentos com que se tem afirmado que Sófocles é singularmente sofocleano não sobrevivem se forem questionados. Parece que, acima de tudo, ainda existe um desejo de o conformar a um modelo de firmeza ou solidez de alguma espécie. Num soneto muito citado, Matthew Arnold agradecia a Sófocles “cuja alma equilibrada em justa medida... viu a vida firmemente, e viu-a inteira.” Mas as peças propriamente ditas constantemente desequilibram esta afirmação com sobressaltos e reviravoltas, tanto de enredo quanto de ponderação ética. Arnold estava mais perto do alvo quando escreveu (em Dover Beach) que Sófocles escutava “o turvo fluir e refluir da maré da miséria humana.” E esse turvo sofrimento do mundo humano não é (tanto quanto me parece) mais bem medido ou justo ou explicável nas peças de Sófocles do que em qualquer outra literatura trágica. Nem as peças dele são, como muitas vezes se tem defendido, distintamente conservadoras ou particularmente piedosas. As linhas finais d’ As Traquínias incluem uma condenação tão feroz do comportamento dos deuses em relação aos homens como qualquer outra em literatura. Há mais verdade em dar a Sófocles o rótulo de “pessimista”. A tragédia não é lugar onde ir se é de optimismo que se anda à procura, mas pode ser verdade que Sófocles ofereça menos alívio compensatório ou consolação do que a maior parte do drama trágico. Ao mesmo tempo, as suas peças não acabam em desespero inqualificável ou resignação: antes o contrário, à sua maneira fortalecem-nos.

O que torna Sófocles tão bom não é tanto uma visão de vida ou uma “filosofia”, mas uma intensa e inabalável visão do mundo humano no meio da dor que ele contém. Não é tanto uma questão de perspectiva do mundo quanto de clareza atmosférica, como num daqueles dias em que se pode ver cada pormenor de colinas que estão muito lá ao longe. Isto serve para dizer que as peças de Sófocles fazem o que a tragédia costuma fazer, mas com um poder particularmente forte. “O que a tragédia costuma fazer” é uma frase ambiciosa. Eu diria que isso é (em termos muito simples e breves) isto: lançar uma teia complicada e inextricável de emoções fortes e de pensamentos que desafiam através de um largo espectro de experiência humana, para que cheguemos a estar ao alcance de fazer algum sentido do sofrimento humano. Essa mistura de emoção e envolvimento cognitivo produzem uma forma que encontra expressão em movimento, poesia e música.


Oliver Taplin é professor emérito de Estudos Clássicos na Universidade de Oxford e autor de vários livros, sobretudo dedicados a literatura e cultura gregas (sobretudo tragédia e Homero), entre os quais The Stagecraft of Aeschylus (Oxford University Press, 1989), Greek Fire (Atheneum, 1990), Homeric Soundings (OUP, 1995), Greek Tragedy in Action (Routledge, 2002, 2ª ed.). Greek Fire tem uma tradução portuguesa (Fogo Grego, Gradiva, 1990).

O excerto que aqui publicamos fará parte de uma tradução (a publicar em breve) de algumas tragédias de Sófocles. 

*Tradução do inglês: Tatiana Faia (em colaboração com o autor).

Séneca, Troianas

Séneca, Troianas

As histórias relativas à queda de Tróia encontram-se plasmadas numa muito rica tradição literária, mitográfica e artística. Apesar de a acção da Ilíada terminar antes da destruição da cidade e de o início da Odisseia ser já posterior a esse marco, os episódios decorridos entre as duas épicas homéricas seriam narrados em outras épicas gregas arcaicas hoje perdidas, de que o Saque de Tróia (Iliou Persis, de Arctino de Mileto) e a Pequena Ilíada (Ilias Mikra, de Lesques de Pirra) são exemplo. Para os Romanos, esses episódios ganharam uma ressonância especial com a sua épica nacional, a Eneida, em que não só se narra de forma vívida a queda de Tróia, mas também se celebra a sobrevivência parcial de Tróia no exílio, figurada em Roma como continuidade. À audiência das Troianas de Séneca (leitores / ouvintes), não passariam despercebidos ecos da Eneida (em particular do livro segundo), nem a influência do livro 13 das Metamorfoses de Ovídio na composição da cena de morte de Políxena.

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