25 de Abril, parte 2
/Têm sido vários os podcasts sobre o 25 de Abril que foram lançados nos últimos meses. Tenho seguido alguns religiosamente. Destaco Operação Papagaio do Observador, Retratos de Abril no Expresso e Clandestinos no Público. Num dos episódios de Clandestinos, numa entrevista feita a Manuela Juncal, ela conta de como ouviu a uma colega da fábrica onde ela se infiltrara a seguinte frase: “Sou uma mulher séria, não preciso de liberdade.” É todo um mundo numa frase e é um mundo de facto pior do que aquele em que cresci. Escutei-a e lembro-me do lema da revolução francesa, “liberdade, igualdade, fraternidade,” três coisas sem as quais não me parece que valha a pena viver.
Nascida em 1986, Portugal não existiu para mim enquanto país não-Europeu ou isolado do resto do mundo por manter um regime político condenado, quando não detestado, internacionalmente, por causa do colonialismo e da guerra colonial. Mas a memória desse país anterior, no entanto, cruzou-se comigo e está a começar a desaparecer. Era visível, por exemplo, na vila onde cresci nos corpos de homens que voltaram mutilados da guerra. Existiu em dimensões que não imagino, que me escapam, que assomam, por exemplo, ao escutar um marido de uma amiga contar de como era preciso ter muito cuidado nos cafés porque nunca se sabia quem estaria à escuta. Os totalitarismos prosperam na paranoia, a divisão social é a sua harmonia, a mediocridade moral é sem dúvida uma das condições a partir das quais proliferam. É preciso rejeitá-la.
Voltei a Portugal na semana do 25 do Abril, também para poder descer a Avenida da Liberdade com o Victor. Gosto de caminhar ao lado dos meus amigos vagamente agorafóbicos quando eles resolvem juntar-se às multidões. E faço parte daquele grupo de pessoas que pensa nunca ter visto um 25 de Abril assim. É verdade que, como comentava com ele, não era o proletariado que estava na rua e é verdade que me pareceu haver nesta manifestação, tal como a ele, um certo défice de revolta social. As montras das opulentas lojas da Avenida da Liberdade, os hotéis, que são parte da turistificação massiva que devagar transformou a cidade de Lisboa numa espécie de caricatura de si própria, escaparam incólumes e talvez merecessem a nossa revolta. Via-se pouca polícia, não era possível cheirar gás lacrimogénio. Há uma explicação óbvia para isto, claro. O que se viu na tarde de quinta-feira passada foi verdadeiramente uma celebração do 25 de Abril, por parte daqueles que se sentem representados pela revolução, por quem reconhece que a democracia melhorou as suas vidas, que foi uma conquista e permanece o melhor sistema governativo que temos. E se é verdade que a homogeneidade social de que falava o Victor no seu texto da semana passada é mais ou menos óbvia, o mesmo não é verdade acerca das faixas etárias. Via-se o mais variado espectro de idades pela avenida. E quase toda a gente em modo de festa, com os cães, os filhos de colo, com copos de cerveja na mão. Vi muitas caras conhecidas, o que talvez queira dizer que a larga maioria dos meus amigos sente o mesmo que eu.
No dia seguinte, uma amiga faz-me um telefonema com uma pequena nota pessimista, diz-me que talvez seja o último 25 de Abril em que aparece tanta gente e acrescenta: “depois já ninguém vai querer saber disto para nada.” Eu esqueço-me de a lembrar de um poema de que me lembro depois, já no avião de volta a Londres, de Margarida Vale de Gato, que se pode ler em Atirar para o torto, onde a pessoa que narra o poema percorre toda a cidade de Lisboa em busca de cravos para celebrar o feriado e sem os encontrar. É um poema anterior em alguns anos à enchente que se viu ontem. Esse símbolo da nossa revolução que comoveu o mundo, o único feriado nacional de que sinto um orgulho sem quaisquer reservas. Esta multidão existe na semântica de outro poema, de Jorge de Sena, escrito durante a ditadura, é também ela uma luz, talvez nem assim tão pequenina. De resto, só vi mulheres sérias que precisam de liberdade a descer a Avenida da Liberdade.