Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.

o osso invisível

Tribunal invoca “sedução mútua” e “mediana ilicitude” em caso de jovem violada quando inconsciente.[1]

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For women, then, poetry is not a luxury. (…) It forms the quality of the light within which we predicate our hopes and dreams towards survival and change, first made into language, then into idea, then into more tangible action.
(Audre Lorde, The master’s tools will never dismantle the master’s house)



maria & manel
casal anónimo
tão português
almoçam no tasco
ao lado do tribunal

a culpa do arguido
(ouvia-se)
situa-se na mediania

a ilicitude
(dizia-se)
não é elevada

maria & manel
comentam
enquanto comem
que a carne não é tenra
que a carne
podia defender-se melhor
do carniceiro
que a carne não devia
custar-lhes tanto a mastigar
e que a carne tem culpa
de ser mastigada
se não acorda
enquanto é engolida

maria & manel
estão então satisfeitos
limpam a boca
à toalha da mesa
e prosseguem o dia
ignorando o osso
que discretamente desce
depois da deglutição

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que morrer
vem às vezes dos pequenos gestos
o ódio instalado no sofá
no sufoco da notícia de jornal
a mão suja que quis entrar
sem ser convidada
o ossinho invisível
que devagar
se vai instalando
na garganta

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que a culpa
nem sempre se vê
e mesmo que se visse
há quem diga que o frango
não só mostrou pelo sucedido
um enorme constrangimento
como na vida um escassíssimo
pendor para a reincidência

e maria & manel,
sejamos honestos:
dado o apetite largo
com que lamberam os dedos
à refeição
só poderiam estar a pedir
invocação de sedução mútua
e um osso
fino frágil
aguçado
- atravessando perpendicularmente
essas laringes
ao meio dia.


[1] Fernanda Câncio, Diário de Notícias. Disponível em <https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/tribunal-invoca-seducao-mutua-e-mediana-ilicitude-em-caso-de-jovem-violada-quando-inconsciente-9880816.html>. Acesso a 21 de Setembro de 2018.


carta de género

olá

 

   nunca te contei isto. tinha dezoito anos quando fui pela primeira vez e última vítima de violência. na altura tinha duas casas seguidas uma em cima da outra em baixo e por acaso saí à rua com a companhia da altura que trazia dois sacos de compras e tinha trinta e quatro anos. tinham pouco peso os sacos os anos não pesavam-lhe muito ai se lhe pesavam lembro-me que num deles os sacos não os anos nem vinte bacalhaus estavam é claro que estavam secos naturalmente não lhe ia passar para a mão vinte e três bacalhaus debulhados ou demolhados não sei como se diz às searas sempre tratei com respeito e o outro saco tinha apenas vinte e quatro sacos de sal admito que talvez fosse muito mas afinal aquele exercício todo agachamentos aulas yogas posturas alongamentos e pesos é para quê ah e tal e eu desde o meu acidente custa-me pegar em coisas. no final do dia nem quinhentos quilómetros eram queixa-se com voz irritada horrível ah e tal amor detesto que me chame amor já lhe disse para me tratar pelo meu nome queixa-se ah e tal amor já me cansa tu também podias levar um dos sacos e eu respondi está bem eu ajudo-te que pena eu também não estou mal da cabeça respondi eu ajudo mas entretanto peguei num dos sacos e nem vinte metros andei e tive de descansar trinta e quatro horas sabem as minhas cruzes não tenho culpa nem tenho de me sentir mal por isso era o que faltava temos de ser uns para os outros e viu-me naqueles preparos e disse deixa estar eu levo e eu disse-lhe tudo bem pega em tudo e logo ali foi a primeira violência olhou para mim olhos nos olhos e percebi nitidamente que me estava a tentar magoar electromagneticamente que estava a dizer preguiças não pegas nem num saco e deixas-me aqui com este peso todo e eu a pensar mas que besta então não percebe que o cansaço em mim é imenso não é fácil estar vivo e andar de vez em quando a pé reparem não é para todos logo ali ficou tudo estragado. passados duzentos quilómetros estávamos nós a chegar à outra extremidade do mundo continuava com aquelas trombas agressivas e percebi que tinha dito qualquer coisa entredentes talvez mesmo só no seu pensamento e eu percebi é pá esta coisa aqui é mesmo indelicada só pensa em si então tanto exercício para quê aqueles agachamentos pesos corridas yogas aulas vídeos crossfitting babylifting romewatching touristing e tal. sim tem tempo para isso lá eu não não tenho tempo para essas coisas. bom a coisa já estava azeda entre nós quando reparei que me disse algo como essa merda do saco estava pesada podias-me ter ajudado não disse com palavrões mas disse-o com  agressividade extrema e calma grotesca quase a roçar o grito contido parecia uma rolha de champanhe a rebentar e logo ali estremeci caramba as pessoas não me criaram para estas coisas comigo sempre foram delicadas comigo nunca me habituaram a este tipo de violência extrema e calei-me logo ali nem lhe dei hipótese àquela coisa. durante trinta dias nem nos falámos bem que tentava mas eu toma lá disto e toma lá daquilo quando falávamos eu dizia-lhe aquelas coisas normais não tens maneiras não és uma pessoa feliz devias procurar um psiquiatra tu não és normal a tua infância não valeu nada não sabes viver em sociedade se morreres nem dou por isso a tua mãe isto o teu pai aquilo e outras coisas ainda mais verdadeiras nem me lembro bem. quando olhava para mim eu desviava o olhar e quando tentava falar comigo eu respondia-lhe mas com muita cautela porque a mágoa era imensa e nem todos os dias se é vítima de violência e eu nem devia ter perdoado da primeira vez. entretanto foi preciso carregar mais quatrocentos e vinte quatro sacos de bacalhau perguntas para quê tanto bacalhau sei lá é absurdo mas eu até carreguei cem repara que apenas carregou com os outros três terços afinal tanto exercício é porque tem tempo não é e é mesmo assim aquelas aulas todas e mais os agachamentos e as dietas e os alongamentos e os abdominais e pronto já sei a minha forma não é a melhor mas até parece que temos de ser todos fortes que nem touros isso é um preconceito já não estamos no século dezanove. disse-lhe nunca mais te vou pedir mais nada ouve lá que parvoíce da tua parte nunca mais nunca mais. entretanto ao quadringentésimo vigésimo quinto saco gritou pega nesse pá mas disse-o com tal raiva no olhar e com tal berro que eu decidi nunca mais haveria diálogo entre nós. e é assim que devemos ser já basta. até havia coisas boas na relação cozinhava bem e tinha a casa arrumada mas é isso que pensam todas as vítimas de violência antes de serem assassinadas já lhe disse temo pela minha integridade física a sério qualquer dia ainda me matas ah sim pote de merda ainda no outro dia tive oportunidade de dizer que não vales nada e que não me mereces andar para aí mas não vales nem metade da minha integridade moral em comparação comigo és uma lesma moral um escroque moral um cagalhoto moral e podia continuar por aqui fora mas não tenho paciência não entro no teu jogo prefiro ficar em silêncio porque assim é melhor e tu também já que não dizes nada de jeito é melhor calares-te a não ser que tenhas um tema interessante estás sempre de boca calada és horrível devias ir a um psiquiatra a tua infância foi difícil não foi até estás bem mas eu não deixo de ser uma vítima disto e estou para aqui mas é horrível temo pela minha saúde. por isso por favor se alguma coisa me acontecer já sabes com quem me casei. casei com uma besta quando tinha dezoito anos. ainda bem que já passaram outros dezoito desde o meu divórcio mas nunca nunca permiti que nada semelhante me acontecesse outra vez. era o que faltava. ainda me lembro da última vez em que discutimos. tudo a propósito de um dia ter insistido em ser o que era quando já lhe tinha dito que aquela forma de ser para mim não dava. que horror. ainda me lembro de lhe ter dado um tiro nos cornos. sim cumpri dezoitos anos de prisão mas não considero violência era o que faltava. é que estávamos na rua. saquei do meu revólver era a primeira vez que escrevia a palavra e lá vai disto pum pum pum pum quatro tiros à queima roupa. nem tremi. afinal tive uma infância melhor que a tua. veio a polícia. ficaram admirados com o meu género e com a forma como os leitores lêem esta carta que não atribui género a qualquer um dos seus sujeitos ela ele etc.. e o resto já sabes toda a gente sabe é como se o sujeito tivesse que ser forçosamente tu sabes o quê. discriminação. todos nós lemos como queremos.

 

angra do heroísmo

agosto de 2018

Elogio de la inutilidad

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“No preguntarme nada. He visto que las cosa cuando buscan su curso encuentran su vacío.” 

Federico García Lorca en “1910”.

Hace un par de semanas, en el parque de Chapultepec, el retiro dominguero de Ciudad de México, se celebraron las jornadas de educación financiera, costeadas por el Ministerio de Economía y promovidas por un sinfín de instituciones de crédito y agencias de seguro. El objetivo era concienciar a los niños y adolescentes mexicanos de la importancia de endeudarse, de hipotecarse, de invertir en bolsa y de asegurar los ahorros. Los paneles informativos insistían en la relación entre futuro, madurez e inversión, con un mensaje sin aristas destinado a los padres de los asistentes: el éxito de su hijo depende de las finanzas familiares. Para los niños el reclamo era aún más zafio. Bob Esponja, Dora Explorada o Snoopy cantaban con una vistosa coreografía aquello de “I love soda, yo invierto en bolsa.” También había talleres para aprender a utilizar la tarjeta de crédito, videojuegos cuya recompensa eran billetes de imitación y teatros de marionetas en los que sus entrañables protagonistas contrataban seguros.

No pensemos que México está lejos, el espacio cuando hablamos de los imaginarios totalizadores del utilitarismo se reduce a una mera representación poética. En nuestro país, sucesivas leyes educativas ensimismadas en la formación de futuro capital productivo han reducido sustancialmente los estudios humanísticos para priorizar conocimientos económicos y pragmáticos. La educación de individuos con capacidad reflexiva y principios ciudadanos ha dado paso a la tortura de la empleabilidad y del emprendedurismo, que han reubicado la filosofía en odas al éxito y a las riquezas y a la historia en una sucesión de etapas oscuras superadas por el emprendedor y el crecimiento. El utilitarismo ha calado el sistema educativo hasta los huesos empezando por los docentes que, integrados en la lógica individual del pragmatismo, estamos sumidos en una carrera de puntos infinitos y pocas veces participamos en actividades que no reporten certificados o complementos autonómicos. (Quién esté libre de pecado…) Nos obsesiona la plusvalía, la noción de que cada acción generará algún tipo de beneficio, de valor añadido.

Este funcionalismo, tan bien reconocido por Nuccio Ordine o Martha Nussbaum para sociedades en crisis que han desmantelado en nombre de la recuperación económica siglos de bagaje cultural, condiciona nuestra capacidad para reconocer los instintos. Estamos programados para concatenar acciones útiles, identificadas por su rentabilidad económica o reconocimiento. Leemos, pensamos y trabajamos con estos fines. Cada minuto es una oportunidad para la rentabilidad cuantitativa que no podemos desaprovechar. Las artes o los conocimientos humanísticos nos distraen del camino de la competitividad o son lujos a los que debemos renunciar en aras de la prosperidad. Esta ceguera colectiva está dinamitando el conocimiento sobre las experiencias y expectativas de nuestra sociedad y, por extensión, el planteamiento de alternativas. El proceso tiene una amplia trayectoria: Montaigne ya se lamentaba que los alumnos de su época lograban declinar la palabra “virtud”, pero no sabían amarla ni abrazarla, lo cual les aportaba beneficios económicos pero escasas herramientas paraenfrentarse al abismo de la existencia humana. Hoy, la victoria de los principios políticos utilitarios ha convertido a los alumnos universitarios de humanidades en kamikazes matriculados en unos saberes inútiles, improductivos y prescindibles.

Los daños colaterales más visibles son la pérdida de nociones culturales e identitarias, la incapacidad de tolerar la frustración o el recluimiento del individuo en prácticas anestesiantes como el consumo o el entretenimiento digital. Pero no sólo se trata de un problema de abandono u olvido del bagaje acumulado de la cultura occidental, sino del alumbramiento de una nueva variante de humanidad, utilitarista, desprovista de elementos simbólicos y de significantes. Es el paraíso jamás soñado por los burócratas: nuestras aptitudes y saberes son el resultado de un enunciado, no condición preexistente al certificado.

Los agentes culturales nos hemos refugiado tradicionalmente en discursos autocomplacientes basados en la redención individual. El mundo podía irse a pique mientras nosotros degustábamos Los Ensayos o el Juan de Mairena. Nos consolaba saber que pertenecíamos a un selecto e invisible club que cultivábamos los saberes sin apenas encontrarnos y quemábamos ofrendas a la belleza, a la curiosidad y al desarrollo del espíritu. Esta estrategia fracasada ha dejado a la intemperie de políticas antropófagas e irresponsables los conocimientos y las prácticas humanísticas. Quizá haya llegado el momento de sustituir el escudo por la espada y emular a Attillio Maggiulli, quien el 23 de diciembre de 2013 en París empotró su coche contra el Elíseo para llamar la atención sobre el desprecio general del gobierno por la cultura y en particular por su proyecto Théâtre de la Comédie Italiénne. El conjunto de saberes que nuestro tiempo ha denominado inútiles es fundamental para la perpetuación de modelos sociales reflexivos y críticos, para comprender el entorno al margen de las lógicas utilitarias. El arrinconamiento de las humanidades nos deja a la intemperie de discursos nacionalistas, xenófobos, sin memoria ni herramientas de contestación, abocados a un continuo presente, donde las estrategias de seducción política y mercantilista encuentran el campo expedito para su extensión. Corresponde a los anónimos cultivadores de los saberes inútiles contrarrestar los imaginarios dominantes y propiciar un renacimiento que asiente nuestra sociedad en cuestiones más trascendentes e integradoras que la mera utilidad, principio que desde Cervantes a Theóphile Guatier o Leopardi ha sido combatido por su rotunda capacidad para multiplicar la estupidez humana.