"Dante e os poetas contemporâneos" - entrevista a Pier Paolo Pasolini (1965)




Por ocasião dos 700 anos do nascimento de Dante, Pasolini aceita dar uma entrevista à rádio cuja transcrição permaneceu inédita até 1999, mais tarde publicada na edição Meridiani Mondadori em Saggi sulla letteratura e sull'arte.

Pasolini é submetido a um questionário de 11 perguntas:


1. A era de Dante apresenta as características de uma grande civilização que atingiu o seu auge e se vira, já, para o declínio, ou – se preferirmos – em vias de transformação para uma nova civilização que dali a pouco tempo se configuraria e se definiria por humanismo. Alguns dos aspectos da época em que vivemos – crise da cultura “burguesa” no sentido tradicional, e o delineamento de um novo humanismo – parecem indicar que um fenómeno semelhante se está a produzir no nosso século. Qual é a sua opinião acerca disto? Dirigimos-lhe esta e as seguintes perguntas apelando, naturalmente, à sua pessoal e viva experiência de poeta.

Parece-me uma pergunta demasiado “adequada” às circunstâncias contingentes das celebrações, e, por isso, pouco científica. Só nas histórias da literatura idealistas e românticas nos deparamos com semelhantes figuras de poetas que se agigantam entre uma época e outra, numa toponomia absurda onde uma Câmara está ao lado de uma Senhoria, uma Senhoria a um Estado, etc., etc., tal como num brasão popular. Dante não pairava fora da história, nestas prefigurações maníloquas de história futura: ele estava dentro da sua Florença e da sua Itália apenínica, e é ali dentro que o amamos. A partir do momento que o extraímos dali, torna-se num poeta oficial, ou, melhor, e digo-o com horror, num símbolo nacional, ou num símbolo universal: dois símbolos falsos e feios, ambos. Como se sabe, Dante teve uma grande ideia, a de usar a língua vulgar, mas também teve outra grande ideia, a de usar as várias línguas das quais essa língua e todas as línguas são compostas. O que demonstra a substancial democraticidade de Dante em pleno século XIV: se é que ele não usa o vulgar como possível língua institucional e literária para se opor em bloco ao latim, para o substituir na mesma função universal e meta-histórica. Se for articulado nas suas várias sub-línguas ou línguas sociais – da língua da aristocracia à língua dos malfeitores, do jargão literário à língua familiar, etc., etc. –, significa que a função do vulgar reflectia um momento real da sociedade. Mesmo sem recorrer ao determinismo de uma dada estética marxista dos anos 50, e remetendo-nos à revisão realizada sob o determinismo de Goldmann, é claro que a poesia de Dante tem estruturas homólogas às da sociedade municipal florentina: e as várias sub-línguagens encontram o seu princípio numa experiência de lutas sindicais, que opunham dramaticamente categoria social contra categoria social. Neste sentido, não me parece que Dante prefigure de forma alguma o humanismo iminente, e que, aliás, não prefigure de forma alguma nenhum momento da Itália futura: se ele porventura prefigurou algum momento ideal da evolução democrática das burguesias europeias, saltando todo o humanismo, foi o renascimento e a contra-reforma em Itália.


2. A atitude que Dante, homem e poeta, assume em relação aos problemas suscitados pela realidade imanente e transcendente do seu tempo, pode reflectir-se na posição que o escritor de hoje – enquanto homem e poeta – assume em relação aos problemas da nossa época? Sem dúvida que em Dante o compromisso do homem e o compromisso do poeta coincidem. Considera que para os poetas de hoje é possível uma semelhante coincidência?

3. Directamente relacionada com a pergunta anterior: e o resumo do real na sua totalidade (moral, filosofia, teologia, história, política, ciência), que faz do poema de Dante um documento talvez único na história universal da poesia, pode ser, hoje, repetido?

4. Particularmente na Divina Comédia, Dante tentou e efectuou a conciliação entre poesia e ciência. Hoje, numa situação bem mais dramática neste aspecto, considera possível esta conciliação para os poetas actuais, e que a mesma é indispensável e essencial àquilo que deve ser a poesia e à função que deve desempenhar: noutras palavras, à sua existência e à própria sobrevivência?

5. Dante acredita na palavra, que nasce nele através do mesmo acto de fé que o dirige a Deus, que também é palavra, através da qual a [palavra] humana atinge a sua verdade e a sua substância. O poeta de hoje, segundo se diz, duvida também da palavra, tal como de tudo. E, no entanto, agarra-se a ela, para fazer dela espelho do seu desespero, mas também como um acto extremo de fé. Não lhe parece que esta posição se aproxima, de certa forma, da concepção que Dante tem da função da poesia?

Também as perguntas 2, 3, 4 e 5 – peço desculpa, mas parecem-me perguntas radiofónicas, às quais uma pessoa pode responder sim ou não indiferentemente, dependendo do humor.


6. No panorama da poesia do século XX, existem algumas figuras representativas nas quais a presença de Dante é claramente perceptível, embora de forma e em certa medida diferentes. Basta apontar para Ezra Pound, Thomas Stearns Eliot, Saint-John Perse. Considera-os casos isolados, ou sintomas de um renascimento dantesco?

Disse, ao responder à primeira pergunta, que Dante prefigura, quando muito, em vez do humanismo italiano, etc., alguns momentos da evolução democrática burguesa na Europa do século XVI em diante. Pois bem, eu pensei em tudo excepto nos nomes referidos nesta pergunta. O uso que Pound ou Perse fizeram de Dante foi um uso arbitrário e estético, alinhado, tal como sucede com os poetas chineses... Há uma espécie de processo degenerativo da cultura europeia do século XIX graças ao qual os textos da história literária são postos fora de contexto histórico, colocados numa plataforma meta-histórica que deturpa os seus significados. Tal plataforma é o laboratório do poeta (o laboratório, entenda-se, é um lugar extremamente poético), e aí os significados de uma obra estão sujeitos a violências deveras sádicas. Dante em Pound é exactamente como um judeu nas mãos de Hitler.


7. Especificamente no campo linguístico, técnico e expressivo, considera que a lição de Dante conserva a sua validade e, portanto, a sua actualidade? Pessoalmente, nas suas experiências concretas na página, retirou alguma vantagem da convivência com a poesia de Dante?

10. Em Dante recai o mérito de ter criado a língua italiana. Mas na evolução desta, o contributo de Petrarca e de outros autores teve maior peso. Neste aspecto, parece-lhe que na poesia italiana do século XX, particularmente a do pós-guerra, a presença de Dante seja menos evidente que a de Petrarca? E, caso a resposta seja afirmativa, quais são, na sua opinião, as razões?

11. Hoje podemos avaliar, em toda a sua dimensão, a revolução linguística de Dante, aplicada, sobretudo, na Divina Comédia. Partindo de tais considerações, e traduzindo os conceitos em termos modernos, considera arrojado falar, a propósito de Dante, de experimentalismo linguístico?

(7, e em parte, 10 e 11) Houve nos anos 50, no seio de um grupo de especialistas muito empenhados nisto, com base num famoso ensaio de Contini, uma espécie de assunção de Dante a símbolo. O seu multilinguismo, as suas técnicas poéticas e narrativas, eram formas de um realismo que se opunha, uma vez mais, à Literatura. Pelo que eu, da forma como trabalhava naqueles anos, pensava em Dante como uma espécie de guia, cuja lição, menosprezada ou mistificada ao longo dos séculos, havia recomeçado a actuar na Resistência. Agora, essa ideia de realismo dos anos 50 parece, e está, superada: e com ela esmorece a interpretação dantesca da «pouca companha» [1] que dizia eu.

8. Repreende-se os poetas de hoje pela tendência a recolher e colocar em evidência os aspectos negativos do nosso tempo (que são, sem dúvida, predominantes) em vez dos positivos (que são poucos, mas existem); tendo em consideração a ideia de crise como factor determinante, que confere a priori validade à inspiração, aos temas abordados, às soluções formais. Considera, pelo menos parcialmente, fundamentadas essas evidências? E, caso a resposta seja afirmativa, pensa que Dante, com o equilíbrio entre a participação na realidade histórica do seu tempo e a afirmação da sua pessoa e dos valores da sua fé, consegue encarreirar os poetas de hoje para uma visão mais clara dos problemas da nossa época e das dificuldades expressivas que estes comportam?

Prefiro o Lager de Pound a este tipo de função do poeta que a oitava pergunta implica, em nome do bom senso e da opinião média e, por isso, oficial. Dante passou uma vida atormentadora em exílio por ter dito não a pretensões semelhantes do establisment, facilmente antedatáveis no seu tempo.


9. Mais especificamente, considera possível, hoje, a recuperação dos valores em que Dante acreditava, ou, pelo menos, de valores equivalentes? Ou pensa que o percurso da história nos encaminha para a aquisição de valores totalmente diferentes, como alternativa? E quais seriam, na sua opinião, estes novos valores?

«Mais especificamente», creio que a recuperação dos valores em que Dante acreditava não é possível, sempre graças ao caminho anti-dantesco que a Itália tomou, até chegar à contra-reforma e à actual burguesia, profundamente inimiga de qualquer tipo de realismo, mesmo o religioso. Recuperar esses valores através da elaboração das grandes burguesias europeias que perpetuaram, de algum modo, o espírito municipal, é igualmente impossível, porque os valores do neocapitalismo não são religiosos, nem equivalentes, a não ser num sentido aberrante, aos religiosos. É claro que por trás de cada técnico se esconde um místico: porém, que místico?

[1]. Versos 100-102 do Canto XXVI da Divina Comédia.

[ENTRE]vista(s) / CONVERSA COM PEDRO EIRAS

Ler é nunca chegar ao fim (…) é

uma alma crescendo.

- Maria Gabriela Llansol

Pedro, muito obrigado por teres aceitado este desafio. A minha ideia é simples, fazer-te algumas perguntas sobre a tua obra. Andava eu a ler a totalidade dos teus livros, mas depois cheguei à conclusão de que não seria uma entrevista, mas uma tese...

(risos)

Então, tive de mudar o modelo. Para quem tem acompanhado a tua obra, ficamos espantados – eu fico – sempre com um novo livro. Quando estamos à espera de um romance, aparecem cartas; quando estamos à espera de ensaio, aparece poesia… Estás sistematicamente, e eu acho isso fabuloso, a quebrar as espectativas dos leitores. É algo que surge naturalmente ou é propositado?

Posso começar pela parte mais fácil da resposta: nunca escrevo a pensar em surpreender os leitores. Sei que essa surpresa acontece, e acho isso excelente, mas espero que seja sempre o resultado um pouco marginal de outras apostas, mais fundamentais. Quero dizer: não estou em luta com os leitores, mas com a escrita, as convenções, os géneros. O que importa mesmo – acontece entre o texto e a linguagem, entre a invenção das formas e os limites estabelecidos.

Mas há outra razão para experimentar tantos géneros: tenho horror à ideia de me repetir, de escrever toda a vida o mesmo texto, de me glosar a mim próprio. Naturalmente, sou sempre eu atrás dos textos, não posso fugir a mim mesmo; mas tento não cair na facilidade de uma técnica adquirida. Tenho muito medo de acertar sempre. E é tão fácil acertar sempre: basta descobrir como se faz, e depois repetir, repetir, repetir. Gosto muito mais do que fazia Paul Klee: pintava com a mão esquerda, a mão inábil, a mão não-académica. (Herberto Helder: “Acautela a tua dor que não se torne académica”…) Também eu procuro colocar-me em apuros, numa espécie de exílio.

E mais isto: gosto da ideia de inventar géneros novos, sim; mas acho que os meus textos são sobretudo explorações dentro dos géneros que já existem. Por exemplo: não inventei o género epistolar, claro; mas tento levar aos limites as leis da correspondência em Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro. Aliás, esse livro também joga nos campos do ensaio académico e da contrafacção. Ou seja, não me furto propriamente às convenções: tento desafiá-las de dentro, nos seus limites.

Vendo, no geral, a tua obra, é impressionante a variedade de “géneros” praticados – ensaio, romance, romance epistolar, micro-contos, teatro, poesia, alguns de difícil “separação” –, e verificamos que, apesar da diversidade, há nela toda uma enorme coerência. Há na tua obra, parece-me, a concretização de uma enorme Constelação, em moldes que fazem pensar em Maria Gabriela Llansol (esse enorme e belo Texto) e em Gonçalo M. Tavares (diversos registos), dois autores sobre os quais já trabalhaste. Queres comentar?

Sim, espero que haja coerência – e, ao mesmo tempo, discórdia, hesitação, contradições densas...

Por um lado, quase todos os meus textos são atravessados por algumas obsessões persistentes – determinadas questões éticas, por exemplo, e suas muitas, muitas derivas. Isso faz com que os romances coloquem questões afins dos ensaios, e os ensaios se cruzem com as peças de teatro, e o teatro dialogue com a poesia. São textos diferentes, mas vão experimentando questões comuns, cada um de modo próprio (e nem sempre concordante). Digamos: peças de um puzzle, peças cujo sentido se multiplica à medida que o puzzle é construído.

Por outro lado, os textos que nascem como ficções narrativas têm regras diferentes daqueles que nascem como peças de teatro; um ensaio não é um poema. O importante é ser radical na aposta: uma tragédia deve ser absolutamente trágica, e uma comédia absolutamente cómica. Estou fascinado por essa estrita obediência às regras do jogo. Digo isto muitas vezes: o que é belo no xadrez não é fazer uma jogada “ilegal”, mover um cavalo como se fosse uma torre, ou um bispo como se fosse um peão, inventar um xadrez louco e imprevisível. Não: o que é belo é mover a torre como uma torre, e o cavalo como um cavalo, e mesmo assim criar um estilo próprio – e alguém poder dizer: “esta é uma jogada à Paul Morphy”, ou “esta jogada é típica de Mikhail Tal”...

Numa leitura a propósito de Barthes, Manuel Gusmão diz o seguinte: “em momento nenhum do tempo, um leitor ou leitores podem esgotar o sentido, reunir todas as citações, até porque não podem esgotar o tempo a vir, as leituras futuras”. Esta passagem de Gusmão lembra-me um comentário que fizeste e que, muito frequentemente, fazes e repetes nas suas intervenções, a ideia de que “cada leitor é uma leitura”.

Ou talvez: cada leitor é muitas leituras. Ou ainda: o leitor é aquele que se perde nas suas leituras. E que se reencontra através delas.

O sentido nunca está fechado e são múltiplas as leituras sobre um texto. És capaz de esmiuçar um parágrafo por três horas, de o ampliar. Vi-o a propósito de Herberto Helder.

Para certos parágrafos, para certas frases – três horas é pouquíssimo. Para algumas páginas, uma vida humana não chega. Ando há muitos anos em torno de algumas frases de Kafka; às vezes parece-me que as consigo desvendar, depois volto a descobrir quão misteriosas são, e como resistem à minha leitura. Ler é decerto uma tarefa infinita: devemos aprender a saber hesitar muito mais, aprender a viver perto dos textos, a dar passos em volta (Herberto, de novo), com paciência infinita, sem forçar o sentido. Ando à procura dessa arte da lentidão. E a tentar ensiná-la aos meus alunos, às minhas alunas: é fascinante poder dedicar uma aula inteira a um único poema, reaprender a ler.

Consideras-te um herdeiro de Barthes, alguém que defende que o autor “não existe”. E isso pode-se encontrar já na tua tese de doutoramento, o teu trabalho sobre a fragmentação do sujeito. Ensaio que seria mais tarde publicado com o título Esquecer Fausto. Ou seja, o autor não só morreu, como também não é um “indivíduo” uno. Isso parece explicar o fascínio que tens por personagens “múltiplas”. Estou no caminho certo ou a misturar conceitos? Queres comentar?

Sim, gosto muito dessa ideia da multiplicidade, de certa instabilidade subjacente aos textos: um plural irredutível. Isto não quer dizer que todas as leituras são igualmente válidas ou interessantes, e a “morte do autor” também não significa que se pode dizer seja o que for sobre um texto, em pleno delírio hermenêutico, ou simples cegueira interpretativa (esse ensaio de Barthes tem sido terrivelmente mal lido, já há meio século). Pelo contrário: é porque não existe uma verdade ditada ex cathedra que somos tão responsáveis pela nossa leitura, e temos de a demonstrar através de uma extrema atenção. O que há, em suma, é escritas contra escritas: a nossa leitura é um texto criado a partir de outro texto, que por seu turno se inscreve numa longa história de textos, géneros, leis, convenções. Nesse abismo inesgotável, a ideia de uma verdade-do-autor parece-me um subterfúgio um pouco desonesto.

Do mesmo modo, esta entrevista é um texto também. Que existam fisicamente dois indivíduos chamados Vítor Teves e Pedro Eiras é evidente, mas também, de certo modo, irrelevante. O que importa é o texto dual que se vai criando – quero dizer, um jogo de ideias, formas, aparentes teses. Aliás, quais teses? Que verdade se define aqui? O que quer dizer este texto, senão aquilo que o leitor ler nele?

E, claro, uma entrevista não é forçosamente um lugar de verdade. Pode ser uma encenação, um fingimento, o lugar mais insuspeito – que, por isso mesmo, se torna superlativamente duvidoso…

(Uma vez, escrevi uma entrevista em que o entrevistador era Octávio C., uma personagem minha. E ele aproveitava a entrevista para me endereçar umas quantas maldades… (Ou será que ele tinha genuínas razões de queixa? É palavra contra palavra…))

Como já reparaste, cada pergunta é um salto, uma faísca para colocar-te a falar. Interessa-me aqui levantar pontos, ideias, fugacidades que depois, muito livremente, possas pegar e explorar à vontade. Tens um fascínio por citações, revejo-me nesse teu fascínio. As tuas citações no Facebook são pérolas que em agosto fazem falta…

Divirto-me muito com esse ritual diário, essa sementeira de citações no Facebook. Uma citação por dia, cerca de trinta por mês (excepto Agosto: férias são férias – mas fico sensibilizado por reagires a esse vazio…). Portanto, mais de trezentas citações por ano: já devo ter postado duas mil, três mil frases, poemas, parágrafos. E não quer dizer que concorde sempre com aquilo que cito: gosto simplesmente de agitar a rede social, ver o que acontece quando posto este aforismo filosófico ou aquele poema antigo.

Sou, como sabes, um semeador de citações na forma de epígrafe. Vejo nessa recolha e utilização de citações uma honestidade intelectual. Há nesse teu gesto a consciência de que somos, todos, uma multiplicidade de peças daqui e dacolá. É, no meu entender, a consciência de que somos resultado de mil misturas. Será que os puristas têm consciência disso? (risos)

Somos uma multiplicidade de peças, sim, um conjunto de vozes, uma memória. Nada mais natural do que indicar as fontes, para indicar o caminho, sugerir a leitura, partilhar.

Por outro lado, há circunstâncias em que falho voluntariamente essa regra de indicar as fontes. Nos ensaios, procuro que os subtextos fiquem claríssimos; a bibliografia final é rigorosíssima. Mas num romance, num poema, numa peça de teatro concedo-me várias liberdades. Seria absurdo ir comentando em notas de rodapé tudo quanto devo a tantos livros. Não sei escrever sem partir de outros textos, às vezes de forma explícita, às vezes de modo subtil, mais ou menos invisível. Em algumas páginas de Bach há frases inteiras de outros autores, como Jean-Marie Straub, Leibniz ou Etty Hillesum. Se fosse um ensaio, teria de as identificar uma a uma, indicando o livro, a edição, a data, a página. Como não é um ensaio, mas contrai todas essas dívidas, indico simplesmente nas últimas duas páginas uma sequência de obras – sem qualquer comentário. Mas, além dessas referências, há ainda muitos, muitíssimos outros textos que sigo, e não os posso indicar todos.

Às vezes penso que tudo o que escrevo é uma citação.

O teu livro […], que foi, pareceu-me, maltratado pela “crítica” (com aspas), é dos livros de que mais gosto. Sei que outros artistas também adoram esse livro, talvez porque vemos nele, mais facilmente, a exploração da colagem. É um belo livro que remete para Flaubert, mas também para T.S. Eliot. Queres falar deste teu ensaio? Quanto tempo demorou a ser feito?

Demorou cerca de doze anos a ser feito. Claro que escrevi outros textos pelo caminho; e houve fases em que pouco ou nada trabalhei nesse ensaio – cheguei mesmo a desistir dele durante algum tempo. Na verdade, poderia bem ter demorado mais outros doze anos, criando não um livro de quinhentas páginas mas de mil ou duas mil… Para tecer esse infinito de vozes dialogantes, e mostrar a narrativa contínua que lhes subjaz (a relação do mestre com o discípulo, entre o fascínio e a traição), quinhentas páginas é pouco: para mim, […] não passa de uma amostra possível.

Confesso-te que não posso falar muito deste livro: ele implica o desaparecimento da minha voz. O único modo legítimo de eu falar sobre esta costura de citações seria, claro, através de novas citações. Talvez um dia?...

Luís Quintais, na apresentação online de Inferno (2020), em 23 de junho último, referiu-se a Bach (2014) como um poema em prosa.

É uma descrição muito generosa, de um leitor muito generoso.

Gostei muito dessa ideia, visão do Quintais, porque nunca tinha pensado em Bach como poesia, mas sim como pintura. E a razão para ver Bach como pintura parte daquelas folhas em branco que encontramos às tantas no livro. É como um zip numa pintura de Barnett Newman, um corte transparente, vertical, que rompe o texto. Há nessa atitude a transmissão do carácter inefável da música (Vladimir Jankélévitch), mas também a imposição de uma visualidade que aponta para Barnett Newman ou Robert Ryman. Agora que penso nisso, não posso deixar de lembrar que o meu Apocalipse, quase exclusivamente branco, deve-se em parte a este zip que criaste. Poderíamos dizer dessas folhas em branco: “Em cada sala completamente vazia, gritei os nomes de todos” (Llansol). De todas as personagens do livro gosto sobretudo de Llansol, é impossível não gostar dessa secção e, de forma diferente, da parte de Anna Magdalena (o que nos leva a Danièle Huillet e Jean-Marie Straub). Queres falar um pouco sobre Bach? Quanto tempo demorou a ser escrito?

De novo, começo pela parte mais fácil da resposta: levei vinte anos a tentar escrever Bach. O fascínio que tenho por este compositor tornava a escrita impossível; tentei várias vezes, desisti sempre; mas a vontade – ou necessidade – de escrever esse texto regressou sempre. Depois, como explico no segundo capítulo, aconteceu: compreendi que teria de falhar este livro, que era impossível escrevê-lo. E nesse instante comecei a escrever. Foi muito rápido: um ano; nem isso: alguns meses. E depois, como sempre, o longo, longo trabalho de revisão…

Já contei isto algures. Um dia, fui convidado para falar do meu livro numa escola de música, a Escola dos Gambozinos, no Porto. Foi uma belíssima tarde de domingo: professores e alunos tocaram Bach, eu falei do livro. À minha frente, além dos adultos (professores, pais), havia uma primeira fila de crianças, jovens músicos. E falei-lhe disso mesmo – de ter estado vinte anos à espera, a tentar compreender como se escreve um determinado texto; e disse-lhes que vinte anos à espera de um livro não é muito tempo. Só depois me dei conta: eram crianças, alguns tinham cinco ou seis anos, não podiam ter uma noção clara do que é vinte anos. Mas foi um encontro maravilhoso, porque eles compreenderam tudo: o desejo, e a impaciência, e a espera, e o encontro.

Sobre as páginas em branco: elas surgem depois do monólogo de Etty Hillesum, no vagão que a leva para Auschwitz. Na última página desse monólogo, Etty espreita por uma frincha e consegue ler uma placa, com o nome de uma localidade: Leipzig. Alguns leitores disseram-me que, mesmo sob o horror, a minha personagem consegue ler um nome que lhe devolve a esperança. Receio que a minha própria leitura seja mais desencantada: para mim, estamos num lugar-limite, onde a música de Bach não pode salvar ninguém, nem trazer qualquer esperança. E o capítulo em branco tem muito a ver com isto: depois do testemunho de Etty (todo ele decalcado de frases das suas cartas, do seu diário), o que poderia eu escrever? O que se poderia ouvir? Por isso o capítulo seguinte é apenas um extenso vazio.

Mas esta leitura é apenas a minha leitura. Quem encontrou esperança nas últimas linhas do monólogo pode bem ter razão. Eu não sei tudo sobre o meu próprio livro. Às vezes tenho a impressão de que sei muito pouco.

Bach dava para longas horas…

É um livro muito importante para mim, um dos livros mais importantes que escrevi, não sei se alguma vez escreverei outro tão importante.

Num poema de Inferno lemos o seguinte verso: “a alegria da danação”. Não só vejo algum humor como também um fascínio quer por Fausto – Goethe & Sokurov – quer pelo diabo, pelo inferno e, por afinidade, pelo fim do mundo e pelo apocalipse. Convém dizer que o Inferno (2020) ganha, a cada leitura, mais densidade; há sempre alguma coisa que nos escapou e que descobrimos numa nova leitura. É, vejo-o, como um longo vórtice: muitas vozes, muitas camadas que remetem para muitas outras coisas. Uma enorme vertigem. Essa multiplicidade de vozes tem a ver com a necessidade de esquecermos Fausto ou com o voltarmos a vestir da pele de Fausto?

Tem a ver com analisar aqueles que vestiram a pele de Fausto, e que, a meu ver, estão no Inferno. (É curioso como aproximas os dois livros: o Inferno e o Esquecer Fausto. Lá está: poemas e ensaios podem estar a responder a uma pergunta comum…)

O modelo romântico de Fausto coloca-me problemas. É um modelo desmesurado, sôfrego – e sabemos bem quão fáusticos foram os maiores projectos políticos do século XX. Bem pelo contrário, precisaríamos de esquecer Fausto, esse modelo heróico, ruidoso, insaciável, irascível. Precisamos de hesitação, dúvida, lentidão.

O meu Inferno está cheio de Faustos. E foram eles que decidiram condenar-se aos tormentos eternos: eles mesmos abriram a Geena, fecharam-se à chave, deitaram a chave fora.

É curioso o que dizes sobre fechar à chave e deitar a chave fora, ou, talvez, engolir a chave. Digo isso porque há uma ideia “generalizada” de que os poetas ou alguns escritores estão sozinhos e a chorar pelos cantos; quando muitas vezes têm necessidade interior de estarem sozinhos, sozinhos por livre escolha. Estar sozinho não é o mesmo de estar triste, há uma enorme diferença.

Acho muito divertida essa ideia de um consenso sobre os poetas “sozinhos e a chorar pelos cantos”... Claro, admito perfeitamente que haja poetas sozinhos a chorarem pelos cantos – tal como há poetas mergulhados nas multidões, e também há poetas de riso feroz. Como sempre, recuso-me a pensar uma definição única de poesia; por isso, também me recuso a imaginar que haja uma definição única de poeta. Compreendi isso pelos quinze anos, quando devorei as traduções de poesia de Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos e Poesia do Século XX. Os volumes terminam com pequenas biografias e comentários aos poetas traduzidos, aliás muito interessantes. Li tudo, e notei que não havia nada de comum entre tantos autores, tantas autoras: havia ali poesia de reis e de escravos, poesia melancólica e eufórica, revolução e reacção, escassez e prolixidade, classicismo e iconoclastia... O único denominador comum, claro, era a escrita. Mas a escrita é infinitamente plural.

Quanto à solidão: para mim, é uma necessidade absoluta. Não posso prescindir dela, preciso de lutar por ela. De certo modo, está nestes versos do Inferno:

Como nos poderíamos entender, se

dou por mim, ao fim dos dias,

a sonhar com claustros, águas furtadas,

impassíveis areias

do deserto

  Claro que o poeta é um fingidor, já sabemos, e neste livro em particular é preciso um extremo cuidado: muitas vezes, é preciso compreender que o “eu” dos poemas é uma personagem, uma criatura condenada ao inferno, um ser que eu enceno – mas que logo a seguir toma a palavra e assume a sua própria verdade. O Inferno é um catálogo de vozes desencontradas. Mas nestes versos que te citei há uma reivindicação que é inteiramente minha, uma defesa da solidão que eu reivindico como minha. Vou dizer isto de maneira muito ingénua, como que ignorando toda a teoria da literatura e as ressalvas metodológicas que eu mesmo sigo todos os dias: esta defesa da solidão, c’est moi (Flaubert que me perdoe!).

Mesmo assim, Vítor, podes sempre desconfiar desta mesma reivindicação. Estarei a dizer a verdade? Qual verdade? E verdade de quem, se tudo isto não passa de palavras. E quando juro dizer a verdade, toda a verdade, nada senão a verdade – não será nesse preciso instante que mais finjo, enceno, minto, escondo expondo?

Gosto quando “desestabilizas” tudo aquilo que tu próprio dizes. Estás constantemente a deslocar o “eixo”, a mover as coisas, a “relativizar tudo”. Acho que todos ganhávamos se tivéssemos menos “certezas literárias” e nos deixássemos “cair” ou “perder” no Labirinto que é a Literatura. És um poeta-pensador, melhor dizendo, um escritor-pensador, na linha daqueles de que eu gosto.

Ter certezas é estar parado, pensar é andar perdido…

Ainda sobre Inferno, não posso deixar de falar na capa de Gustave Doré. Vejo a emergência do túmulo de Farinata, representada na capa de Inferno, como a melhor “metáfora” para o que estamos a viver há já alguns anos e que se agravou com o Covid – essa condição geral de sermos todos “mortos-vivos”, zombies, sonâmbulos. Barbara Stronger (1983-2019) tem para sair na Enfermaria 6 o seu Lazarus (R.I.P.) (risos). É urgente a lentidão, mas não esse estado entre a vida e a morte em que vivemos. Queres comentar?

Não se pode viver pela metade: o desassossego de não estarmos bem vivos é uma condenação terrível. E este mundo de super-produtividade, prazos, avaliações, publicidades, competição, ânsia de se ser sempre novíssimo mantém-nos num constante estado de excitação – que é também um estado de permanente alienação; estamos acordadíssimos e, ao mesmo tempo, a dormir. Vou dizer uma banalidade, mas: claro que somos mortos-vivos quando nos perdemos nas redes sociais, quando vemos notícias e há dois ou três rodapés sempre a debitar texto, quando produzimos toneladas de informação inútil e nem nos damos conta, quando chegamos ao fim do dia e nem sabemos o que vimos, o que lemos, o que dissemos. Para usar termos benjaminianos, acumulamos vivências, mas temos uma terrível falta de experiência – quer dizer: dispersamo-nos em informações e não sabemos construir um sentido com elas.

Mas não há o perigo de uma enorme injustiça nesta generalização? Estou cercado por pessoas que se dedicam a desafiar a doxa, pessoas capazes de inventar sentidos, narrativas, rebeldias, uma festa do pensamento. Estou cercado – quer dizer: cerquei-me, escolhi ficar cercado, procurei vozes em contracorrente, deixo-me inspirar por elas. Contra o perigo desse sonambulismo que descreves (tão confortável, tão viciante), estou cercado por pessoas que movem montanhas. E a minha dívida em relação a essas pessoas não tem limite.

Em Apresentação do Rosto, Herberto Helder escreve o seguinte: “Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco – e que fizeram da dignidade humana?”. Com o teu Inferno fazes exatamente isso, alteras o “Inferno”.

Agradeço-te, Vítor, mas é um elogio demasiado grande. Digamos que escrevi uma simples nota de rodapé – e já é um projecto muito ambicioso.

É engraçado ler isso, porque eu acho que a maior das virtudes, das qualidades, é observar “a coisa” mais pequenina, é fazer a coisa mais pequenina. Logo, nesse sentido, o resultado valorativo só pode ser o inverso. Estou convicto de que é a capacidade de “apontar o insignificante” que pode ajudar a trazer algum sentido.

Roland Barthes, citado de cor: “a insignificância é o lugar da verdadeira significância”. Aliás, Freud já tinha dito isso de outros modos. E, ainda antes, Poe…

A Joana Matos Frias, numa das suas aulas, citou uma frase que nunca mais esqueci: “antes de Turner não havia nevoeiro”.

Que frase maravilhosa!

Turner identificou / apontou o nevoeiro e logo surgiram imensos quadros com nevoeiro. Essa capacidade de observar o mínimo, fazer o mínimo, apontar o mínimo, talvez não seja tão insignificante como parece à primeira vista. Um exemplo: quando apareceu Inferno, o teu Inferno, foi para mim uma dupla surpresa: Eiras poeta e o aparecimento do Inferno – que sempre foi um tema que me interessou. Embora sendo um tema tão caro à literatura, não estava à espera de em 2020 dar de caras com um Inferno; um novo Inferno. De algum modo, lembrei-me de Miguel Ângelo, porquê? Porque ele alterou a representação do diabo, humanizou-o; e tu retiras o inferno da visão cristã, dantesca, e trazes para o quotidiano, o quotidiano atual, numa espécie de anacronia. É um “apontar” muito certeiro, adequando ao que estamos a viver. Se há coisa em que acredito, é no poder de previsão da grande arte, o teu Inferno faz isso, parece-me. Conheces aquela história de Victor Brauner? Pintou um autorretrato sem um olho e anos depois perdeu esse mesmo olho, talvez tenha sido isso esta história que tenha fascinado Luiza Neto Jorge.  E é engraçado começar por “apontar” e acabar em Neto Jorge, um ciclo. Queres pegar nalguma linha?

Quero, claro – em muitas.

Sobre a escrita e a pintura criarem realidades, deixa-me citar outro texto meu, um brevíssimo texto dos Museus, chamado “Mimesis”:

Reza a história antiga: Zeuxis pintou cachos de uvas tão perfeitos que os próprios

pássaros, ludibriados, as foram bicar. É provável. Mas a história não explica: de onde,

se o céu esteve vazio todo o dia, vieram os pássaros?

É um pouco isso – sim, existe a imitação do mundo, a natureza morta, os cachos de uvas perfeitamente pintados. Mas talvez também haja o contrário disso: a pintura que inventa os próprios pássaros, a realidade das coisas… (Estarei a falar literalmente? Metaforicamente? Tu decidirás…)

E, sobre a dupla surpresa, alguns comentários. Acredita que também para mim foi muitíssimo surpreendente este livro acontecer-me. Já disse isto no lançamento virtual, mas vou repetir-me (acho que eu só sei duas ou três coisas na vida, e passo a vida a repetir-me): ao longo dos anos, sempre que me perguntavam se eu escrevia poesia, eu respondia, de boa fé, que a poesia é demasiado difícil, que tenho um terror absoluto em relação à poesia, que só escreveria poesia a partir dos oitenta anos. Este anúncio final sempre foi também uma referência, irónica e algo privada, a certa página de Hokusai. Mas a minha percepção da poesia como distante ou inacessível era genuína – e trágica. Depois, aconteceu: escrevi este Inferno. Disse isto no lançamento: publicar o primeiro livro de poesia aos quarenta e quatro anos pode parecer uma estreia tardia – na minha perspectiva, pelo contrário, este é um livro precoce. Afinal, ainda preciso de viver algumas décadas para chegar aos oitenta…

E sobre o inferno: sim, admito que seja estranho publicar em 2020 um livro que se chame Inferno. Mas é um tema muito mais recorrente do que parece. O Castelo, Desgraça, Purificados, Austerlitz poderiam perfeitamente chamar-se Inferno

Engraçado, nunca pensei em Desgraça como um inferno, via mais facilmente inferno em A Vida e o Tempo de Michael K. Inferno talvez não: solidão; tenho de o reler.

Eu também – e depois voltaremos a este diálogo…

Em algumas passagens de Inferno há vozes que parecem ser de um docente que está preso; há, parece-me, uma crítica subtil ao sistema académico, o que só revela lucidez e espírito crítico.

Sim, claro que pode haver um inferno na academia: burocracias, avaliações... Mas também há o paraíso das aulas, dos diálogos com os alunos, da partilha dos textos.

O inferno, assim o vejo, é a própria escrita. A última palavra do livro é exatamente “escrever”. E eu acho que quem escreve tem essa perceção, a perceção de que a escrita é algo de tão intenso e tão poderoso que é impossível não sermos arrastados para esse inferno, arrastados pelo vórtice de vozes. Queres comentar?

Vou repetir-me: também a escrita é inferno e paraíso (e muito purgatório, algum limbo, todos os lugares em simultâneo). Existe um prazer da escrita e uma tortura da reescrita e talvez um masoquismo calculado, uma vontade de inventar problemas, desafios, obstáculos, inventar uma língua maldita, sim, sim, mas também uma alegria feroz quando se escreve o que não se sabe que se sabia escrever, a palavra certa no lugar certo, e a estranha consciência de perceber que se acertou, que se encontrou – dentro das leis invisíveis mas rígidas da gramática, das normas aprendidas – um salto, um vislumbre, uma pequena brecha para nos escapulirmos do inferno.

Vivemos presos na linguagem. Não escolhemos a nossa língua, e dentro da língua não inventámos a nossa gramática. Pensamos em termos de sujeito, predicado, complementos; activo versus passivo; definições, exclusões, tertium non datur; nem sequer podemos interromper as nossas frases a meio de uma palav-

…mas a escrita inventa uma pequena desordem dentro dessa ordem, uma estranheza resistente. Há uma espécie de danação nessa procura da estranheza certa (“estranheza certa”: que expressão estranha!), mas há também uma alegria nessa danação, uma fúria festiva.

Queria dar mais um salto, ou talvez recuar um pouco. O humor e a ironia. Há um poema de Inferno (2020) com um apanhado de expressões pessimistas, clichés que se ouvem aqui e ali. Estou a pensar na passagem: “generalizar, usar expressões do género: / «hoje em dia toda a gente…», / ou «isto já não é como dantes…», / ou até «a juventude…»”. Vou completar as frases, se me permites: “Hoje em dia toda a gente ESCREVE POESIA”, “isto já não é como dantes POIS NO TEMPO DE SALAZAR É QUE ERA” e “a juventude ESTÁ PERDIDA”. Importa ver aqui DANTE em “dantes” antes de avançarmos. Essa passagem, que acho muito cómica e muito lúcida, aponta para um esgotamento de frases repetidas, frases ditas sem pensar, frases que ouvimos e com as quais não estamos de acordo. A juventude não está perdida, há coisas novas e interessantes a surgir e isto não é o fim dos tempos. Confesso que não estava à espera de tanto humor e ironia. Vejo nestas passagens o otimista nato que admitiste ser na apresentação de Inferno. Queres comentar?

Sim, acho que o humor existe neste livro, paredes-meias com o lamento, a denúncia, o escárnio-e-maldizer, a melancolia… Tal como existe noutros livros meus – lembro-me de A Cura, ou Os Três Desejos de Octávio C., por exemplo. Tenho mesmo uma comédia, chamada Pedro e Inês (na verdade, espero que seja também uma desmontagem dos mitos nacionais, uma crítica do patriarcado, uma denúncia da violência doméstica – e ainda um jogo estilístico que muito me divertiu escrever).

Há humor neste Inferno, mas o humor é uma face da melancolia. Lembro-me também da minha peça Um Forte Cheiro a Maçã, que está cheia de humor – incluindo episódios de puro nonsense – mas é um texto dolorosíssimo (e provavelmente a minha peça favorita, junto com Uma Carta a Cassandra). O humor e a ironia servem de máscara e esconderijo.

Quanto aos versos que citas, sim, são frases que devem ser desmontadas, conforme fizeste. No poema de Inferno, são uma tentação do enunciador: quem “me” dera, quem “nos” dera, às vezes, podermos escudar-nos atrás de generalidades, generalizações. Claro que, pelo contrário, toda a minha luta com a linguagem consiste em estar atento às excepções, às subtilezas. Pensar é recusar a solução fácil das generalizações. Por isso mesmo, trata-se de uma tentação…

Ah, também teríamos de falar do conceito fascinante das tentações! Escrevi um ensaio com esse título, sobre Raul Brandão e o Marquês de Sade...

Vou procurar esse ensaio. Sobre os ensaios, convém lembrar os dois belos volumes – Constelações e Constelações 2. Exemplos da exploração da trama, do pensamento em constelação. Constituem bons exemplos do pensar em constelação, numa enorme liberdade, mas com coerência. Não há aluno de Literatura Comparada que não deseje fazer o mesmo. E há que lembrar algumas palestras – lembro-me de uma sobre a obra inexistente de João da Ega, se não me engano publicada no volume Ofício Múltiplo, editado por ti, Joana Matos Frias e Rosa Maria Martelo. Para quando Constelações 3?

Um dia destes, um dia destes…

Esses ensaios merecem continuidade.

São tentativas de aproximação entre obras às vezes muito diferentes. É preciso encontrar a distância justa: dois objectos demasiado iguais não chegam a entabular um diálogo, ou objectos demasiado diferentes não conseguem encontrar-se em nenhuma frente. É preciso definir uma escala certa.

E há surpresas: continuo a gostar muito do meu ensaio sobre Sade e Raul Brandão, por exemplo, porque é um diálogo improvável à primeira vista, mas que depois se revela um diálogo necessário (claro que sou muito suspeito nesta avaliação – mas vou assumir tanto a avaliação quanto a suspeita). Claro que o ensaio só acontece quando descubro o lugar onde os dois autores se encontram: no caso de Sade e Raul Brandão, tem a ver com a questão do mal – que ambos colocam de forma apaixonada.

Como chegaram ao conceito de Ofício Múltiplo? Creio que é um conceito que faz muito sentido: Etel Adnan salta da secretária da pintura para a secretária da escrita diariamente, para um fazedor de Ofício Múltiplo não há divisões internas; mas são sempre anticorpos nos meios específicos. Queres sintetizar esse conceito de Ofício Múltiplo? Nós, portugueses, sempre gostamos de gavetas, a versatilidade é mal vista.

Tal como não acredito em identidades estanques, nem num conceito único de poesia, eu e as co-organizadoras desse volume pensamos que a criação é porosa, híbrida, plural: as artes dialogam entre elas e alguns autores assumem a criação em várias linguagens: poetas que também pintam, cineastas que também escrevem… Não será uma regra geral, mas também está longe de ser uma excepção – e esse volume de ensaios tenta compreender como esse encontro de linguagens não consiste em trair duas artes, mas em cruzá-las infinitamente.

Em Museus (2019), já tinhas escrito e explorado o humor. Eu adorei o “Frei Domingo” e o micro-conto “Ordem”, sinto ser aquela criança a fazer o pino (risos).

Eu também…

É talvez o micro-conto com mais esperança no futuro, pela simples razão de que a criança está a ver tudo de forma diferente, de pernas para o ar e, ao mesmo tempo, a “revoltar-se com a ordem imposta”, a imposição de uma visão “única” do mundo. Num outro, “A vingança”, o académico e o poeta: uma pérola, é divertidíssimo. Não vou contar, para obrigar o leitor desta entrevista ir ler o livro, pois vale muito a pena. Lembrei-me, quando li Museus, de Edson Russell, poeta que escreve em prosa, estou a pensar em O Espelho Atormentado. E essa minha observação aponta para uma evidência, alguns micro-contos podem ser lidos como poemas em prosa, numa tradição norte-americana da poesia. De modo semelhante, algo me fez pensar em Lydia Davis, não propriamente no estilo, mas sim no uso do humor, um humor muito próximo de situações absurdas, algo que pareces ter herdado do teatro. Para quando um Museus II? Acho que devias continuar a explorar esse registo do micro-conto.

Agrada-me a ideia de voltar às pequenas narrativas, sim, e talvez conseguir ser ainda muito mais sucinto. Mas há o tal problema do horror à repetição, à fórmula… Nesse sentido, não acredito que surja um Museus II: é como se esse caminho se tornasse proibido para mim.

O teatro. Beckett, Brecht, Sartre, Sarah Kane, Pinter, Artaud… todo o teatro do Absurdo. Há o Teatro I e o Teatro II, dez peças de teatro em dois livros, és talvez o autor da tua geração que mais teatro escreveu.

Ah, não, não, há dramaturgos muitíssimo mais prolíficos do que eu! Aliás, Vítor, fazes várias referências à pluralidade dos meus livros, mas posso dizer-te isto: do meu ponto de vista, sinto-me extremamente, extremamente preguiçoso. Por cada texto que escrevo, há dez ou vinte ou trinta que idealizo e nunca escrevi nem escreverei… Aliás, como sei que tu cumpres admiravelmente a máxima de nulla dies sine linea, e não apenas na escrita mas também no desenho e na pintura, posso dizer-te que eu perco muitíssimos dias sine linea – às vezes semanas, às vezes meses…

Ler teatro é das coisas mais entusiasmantes. Aqui só vou perguntar se desististe de escrever teatro, ou, simplesmente, não têm surgido oportunidades.

De maneira nenhuma desisti de escrever teatro. É verdade que tem havido algum desencontro entre mim e o teatro nos últimos anos (mais ou menos desde que publiquei os volumes de Teatro I e II), mas é um mero acaso. Tenho escrito ficção, ensaio, e agora poesia – mas a qualquer instante posso regressar ao teatro, que continua a fascinar-me – aliás com profundo terror.

Recomendo, de Martin Crimp, Attempts on her life (1997). Crimp veio a “desestabilizar” as minhas ideias de teatro.

Conheço bem esse texto! Acompanhei a encenação do João Pedro Vaz, na Assédio, e participei numa conversa com o saudoso Paulo Eduardo Carvalho, que foi publicada no programa do espectáculo, há muitos anos atrás...

O Absurdo fascina-te enquanto “arma” no teatro? Sabendo, como bem sabemos, que toda a vida é um teatro de absurdo.

A vida é sonho, contada por um idiota, cheia de som e de fúria, e nós somos feitos da matéria dos sonhos…

Sim, a vida é um teatro do absurdo. Mas essa é também a dimensão da nossa criatividade – porque, se houvesse um sentido óbvio para a vida, não nos restaria nada para fazer.

E, sim, claro que o absurdo me fascina no teatro. Muito mais o de Beckett do que o de Ionesco. Com o expressionismo e dadá a abrirem caminho, ainda antes. Seja como for, o que me interessa no absurdo é a possibilidade de sentido que ele introduz. Volto a lembrar-me de Um Forte Cheiro a Maçã: quando o Elias revela à família que se vai matar, e a família aplaude, e quando mostra o veneno que vai usar, e o tio Judas prova e comenta: “É do bom!...”, tudo isso me parece muito mais cheio de sentidos do que a conversa fiada da família, durante os primeiros dez ou vinte minutos da peça…

E ainda não falamos de Dante. Disseste no lançamento que é impossível pegar em Dante. Fiquei a pensar nisso nas últimas horas. Qualquer coisa que queiramos fazer como Dante fica aquém, é um facto, mas ao mesmo tempo parece que o resultado, para ser digno de Dante, só pode ser wagneriano.

O problema é que já só conseguimos ler certos clássicos através do conceito de arte total de Wagner. E quanto a Dante, só o conseguimos ler hoje através de Eliot, Greenaway, Castellucci… Não podemos prescindir de toda a história da estética posterior – nem, aliás, da História em geral.

Romeo Castellucci é extraordinário, estende todos os nossos sentidos a um novo patamar… E sim, tens razão, por um lado é difícil ler Dante sem a impressão dos séculos sobre ele.  

É uma das definições de “clássico” segundo Italo Calvino…

Estou a dizer isso e a pensar em Gustave Doré e no meu eterno adiar “trabalhar em Dante – plasticamente falando”. Doré leva Dante a um bom patamar, mas quando lemos a obra de Dante, Doré soa a cartoon, é insuficiente.

Não sei… Acho Gustave Doré muito forte. Mas reconheço que o Inferno deveria ter sido pintado por Goya…~

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Goya - “S. Francisco Bórgia na cama de um penitente”, 1788 (pormenor).  

Goya é uma boa escolha. Mas por momentos pensei em Francis Bacon.

Sim!

Sempre me arrepio quando ouço alguém dizer: “adoro Bacon”, aí penso: “estão a ver bem?”. Bacon, assim como Goya, é visceral, corrói, não se “adora” como a um Watteau.

“Adorar” Bacon – é como dizer de um texto que está “muito bem escrito”. É um elogio que mata o texto, inapelavelmente…

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Francis Bacon – Retrato de George Dyer Crouching (1966) (Pormenor).

Do Inferno passarás para o Purgatório ou o confronto com Dante (e por arrasto, T. S. Eliot) ficará por aqui? Os 700 anos da morte de Dante estão aí à porta (1321-2021).

Não ficará por aqui, não…

Uma pergunta que ainda não tive oportunidade de fazer-te, e fugindo do Inferno: porquê Stalker (1979) de Tarkovsky? O fim do mundo e…? Pergunto porque é o filme de Tarkovsky que menos me diz, acho O Sacrifício (1986) e Nostalgia (1983) muito mais bonitos, sublimes. Porque é este o teu filme preferido?

Precisaria de muito, muito tempo para responder a essa pergunta, Vítor… Escrevi há uns anos um livro sobre Tarkovsky – e também Raul Brandão, Maria Gabriela Llansol e Luís Quintais – chamado Os Ícones de Andrei, para tentar começar a explicar o que me fascina tanto nesses filmes.

Bem, resumindo muitíssimo, e até correndo o risco de não me conseguir exprimir em condições – Stalker interessa-me por causa da esperança, do medo, do desejo, da desilusão, da loucura… Interessa-me muitíssimo por causa da dúvida. Nostalgia e O Sacrifício são maravilhosos, mas ambos defendem um salto da fé que tenho dificuldade em acompanhar. Quando o protagonista do último filme decide realizar o sacrifício para (pelo menos é nisso que ele acredita) impedir um fim do mundo, não o posso seguir. Bem sei que também há dúvida e ambiguidade nesses dois filmes, e saltos de fé nos anteriores; mesmo assim, sinto uma distância maior a partir de Nostalgia

Isto está tudo muitíssimo mal explicado, é terrível – podemos voltar a falar daqui por alguns anos?

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Tarkovsky - “Stalker” (1979) (pormenor).

Combinado! Para terminar. Foste responsável por colocar na boca de muitos alunos e professores frases como estas: “Vais hoje ao fim do mundo?”, “Quando é o fim do mundo?”, “Vem ao fim do mundo!”.

(risos)

Para quem não teve a oportunidade de ver os Seminários do Fim do Mundo – os melhores seminários livres da Flup (não tenho dúvidas) – podes falar um pouco sobre em que consistiram esses seminários? Nas várias sessões que aconteceram o seminário inspirou cineastas, poetas e artistas; e deixou um repertório interessante de pesquisa sobre o tema do Fim do Mundo. Queres falar um pouco dessa experiência?

Foi uma experiência muito curiosa, e já fiz uma espécie de comentário, ou saldo, no último seminário. Recentemente, publiquei esse texto no libreto Materiais para o Fim do Mundo, nº 12 (aqui está: www.dropbox.com/s/j4fe4t0t35059as/3.%20Pedro%20Eiras.pdf?dl=0 ). Foram vinte e quatro seminários, distribuídos por seis anos, em que falaram sobre o fim do mundo várias dezenas de investigadores das mais variadas áreas. E isso é fascinante – que tantos universos de investigação tenham algo de próprio (e de irrepetível) a dizer sobre a ideia de fim.

Na verdade, não esgotámos nada: continuamos bastante perplexos perante este objecto intratável. O fim do mundo não pode ser enunciado porque implica o desaparecimento dos enunciadores. Por outro lado, penso que todo o nosso comportamento depende da consciência que temos da nossa finitude; nesse sentido, penso o mundo a partir do seu fim, a presença das coisas a partir da ausência das coisas. Somos seres-para-a-morte, diz Heidegger. E, mesmo que tentemos recalcar essa consciência, como fazem as personagens de Húmus, não deixa de ser um recalcamento construído sobre uma consciência apavorada.

Agora com o Covid os Seminários da Salvação foram adiados e há quem espere por eles ansiosamente – eu. Mas parece que não poderei ir assistir, pois já estarei nos Açores. Seria interessante se fossem gravados e distribuídos online – fica o desafio lançado ao Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Podes falar destes seminários futuros?

Que ano tão estranho estamos a viver, em que uns Seminários da Salvação do Mundo têm de ser adiados, e talvez reinventados à distância – quem sabe? Em poucas semanas, o assegurado tornou-se provisório; e o provisório, impossível. A realidade encarrega-se de demonstrar a nossa fragilidade.

Dito isto, ainda não sei o que dizer sobre os Seminários da Salvação do Mundo. É uma regra fundamental: não posso, não quero prever o que acontecerá. Importa-me muitíssimo preservar a ignorância, não forçar caminhos. O que não quer dizer que não tenha expectativas…

Pedro, muito obrigado pelas respostas ao desafio, ficam pelo caminho várias perguntas, mas terão de ficar para quando sair o próximo livro. Entretanto vou tentar acabar o que me falta da tua obra – Teatro II e A Cura – ainda não li A Cura, o que é imperdoável! E não falei do O Riso de Momo (2018) – sobre a obra de Pedro Proença – mas é um ensaio que não fica de fora de muitas das questões que foram aqui levantas. Obrigado, Pedro.

Obrigado a ti, Vítor. Os livros estão todos ligados, cada livro responde a um livro anterior. Mas o mais importante é a pergunta que um novo livro faz, o desejo que ele inaugura.

Alguns livros de Pedro Eiras. / Correr na horizontal /

 

"Produzo poesia, uma mercadoria inconsumível", Pier Paolo Pasolini

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Tradução: João Coles

Esta entrevista reproduz um trecho da intervenção de Pasolini na transmissão de um episódio do programa de Enzo Biagi “Terza B facciamo l'appello”, que deveria ter ido para o ar em Julho de 1971. Foi, contudo, suspenso graças a um processo judiciário que implicava Pasolini na qualidade de director responsável de “Luta Continua” (“instigação à desobediência” e “propaganda antinacional”). O episódio foi transmitido quatro anos mais tarde, no dia 3 de Novembro de 1975, no dia após o seu assassinato.

Entrevista:

O senhor escreveu: "No plano existencial eu sou um contestador global. A minha desesperada desconfiança em todas as sociedades históricas leva-me a uma forma de anarquia apocalíptica". Com que mundo sonha?

Durante um tempo, quando era jovem, acreditei na revolução como acreditam os jovens de hoje em dia. Hoje em dia acredito um bocado menos. Sou, neste momento, apocalíptico. Vejo defronte de mim um mundo doloroso, cada vez mais vil. Não tenho esperanças; portanto não esboço sequer um mundo futuro.


Quer parecer-me que já não acredita nos partidos.

Não. Se me diz que já não acredito nos partidos está a chamar-me qualunquista; eu, pelo contrário, não sou um qualunquista. Inclino-me mais para uma forma anárquica do que para uma escolha ideológica de algum partido, mas não significa que não acredite nos partidos.


Porque é que defende que a burguesia está a triunfar?

A burguesia está a triunfar porquanto a sociedade neocapitalista é a verdadeira revolução da burguesia. A civilização do consumo é a verdadeira revolução da burguesia. E não vejo outra alternativa, porque também no mundo soviético, na verdade, a característica do homem não é tanto a de ter feito a revolução e de a viver, mas a de ser um consumista. A revolução industrial nivela o mundo inteiro.


O senhor bate-se contra a hipocrisia, sempre. Quais os tabus que destruiria: as prevenções no sexo, o escapulir-se às realidades mais cruas, a falta de sinceridade nas relações sociais?

Dizia isto até dez anos atrás. Hoje já não digo estas coisas porque não acredito nelas. A palavra “esperança” foi apagada do meu vocabulário. Portanto, continuo a lutar por verdades parciais, de momento a momento, de hora em hora, de mês a mês, mas não perspectivo programas a longo prazo por já não acreditar nisso.


Já não tem esperança?

Não.


Esta sociedade que o senhor não ama deu-lhe, no fundo, sucesso e notoriedade...

O sucesso não é nada. O sucesso é a outra face da perseguição. E o sucesso é uma coisa péssima para um homem. Pode exaltar naquele momento, pode dar algumas satisfações e certas vaidades, mas na verdade, mal alcançado, compreende-se que é algo péssimo. Por exemplo, ter encontrado os meus amigos aqui, na televisão, não é bonito. Felizmente conseguimos ir além dos microfones e do vídeo e reconstruímos algo real e sincero; mas como posição é péssima e falsa.


Porquê? O que vê de tão anormal?

Porque a televisão é um meio de massa, que não faz senão alienar-nos.


Porém, fora os queijos e o resto, este meio leva a casa as suas palavras. Estamos todos a discutir com grande liberdade, sem qualquer inibição.

Não, não é verdade.


Sim, é verdade. Pode dizer tudo o que quiser.

Não, não posso dizer tudo o que quiser.


Pois diga.

Não, não posso, porque seria acusado de vilipêndio pelo código fascista italiano. Na verdade, não posso dizer tudo. E, objectivamente, perante a ingenuidade e desprevenção de alguns espectadores, eu próprio não quero dizer determinadas coisas. Mas posto isto de parte, é o meio de massa em si: a partir do momento em que alguém nos ouve desde um vídeo estabelece-se entre nós uma relação de inferior a superior, que é uma relação assustadoramente antidemocrática.


Julgo que em alguns casos também possa ser uma relação de igualdade: porque é que o não pode ser?

Alguns espectadores, por privilégio social, podem ser culturalmente semelhantes. Mas normalmente as palavras que caem do vídeo caem sempre de cima, até as mais democráticas, mesmo as mais sinceras. O conjunto da “coisa vista” em vídeo adquire sempre um ar autoritário, fatalmente, porque nos é sempre dada como uma cátedra. Falar desde o vídeo é falar sempre ex cathedra, mesmo quando isto é mascarado de democraticidade.


Foi, há muitos anos atrás, por Ragazzi di vita, um dos primeiros escritores italianos chamados a comparecer em tribunal sob a acusação de obscenidade: como encara alguns dos escritores eróticos de hoje e este alastramento do erotismo no cinema, nas livrarias e nas bancas?

Para mim, o erotismo na vida é uma coisa belíssima, mesmo na arte: é um elemento que tem direito de cidadania numa obra como qualquer outro. O importante é que não seja vulgar; mas por vulgaridade não pressuponho o que se entende geralmente, mas sim uma disposição racista ao observar o objecto do eros. Por exemplo, a mulher nos filmes ou nas bandas-desenhadas eróticas é vista de maneira racista como um ser inferior, logo é vista vulgarmente. Ora, neste caso o eros é puramente algo comercial, vulgar.


Como é que um marxista como o senhor extrai com tanta frequência inspiração de temas vindos do Evangelho ou dos testemunhos dos apóstolos de Cristo?

Obviamente que o meu olhar para as coisas do mundo, para os objectos, é um olhar natural, não laico: extraio as coisas como se fossem miraculosas. Cada objecto é para mim miraculoso: tenho uma visão – sempre de maneira informe, digamos assim – não confessional, em certa medida religiosa, do mundo. Eis porque dou uma investidura desta maneira de ver as coisas mesmo às minhas obras.


O Evangelho consola-o?

Não busco consolações. Busco de forma humana, de quando em vez, alguma pequena alegria, alguma pequena satisfação, mas as consolações são sempre retóricas, insinceras, irreais.. Disse o Evangelho de Cristo? Não, neste caso excluo completamente a palavra “consolação”: para mim, o Evangelho é uma mui grande obra intelectual, uma grande obra de reflexão que não consola: que preenche, que integra, que regenera... mas a consolação, que faço eu com a consolação? “Consolação” é uma palavra como “esperança”.


De acordo consigo, os intelectuais italianos comprometem-se demasiado: falemos de nomes, citemos casos...

O compromisso pode resumir-se a uma só questão: a de aceitar acriticamente – pois se fosse crítico, poder-se-ia admitir, aliás, creio que seria inevitável – a integração.


Tão-pouco a aceita?

Sim, mas de modo crítico (como vê, premuni-me). Isto é, claro que não posso não aceitá-la: tenho de ser consumista à força, porque também eu tenho de me vestir, tenho de viver; não só mas também tenho de escrever ou fazer filmes e, por isso, tenho de ter editores e produtores...


Portanto, também produz para o consumo.

A minha produção consiste em criticar a sociedade que num certo sentido consente, pelo menos por agora, que eu de algum modo produza.


A sociedade sempre amou imensamente quem produzia dizendo não amá-la.

Sim, é verdade. Pode ser que as senhoras da boa burguesia gostem, num certo sentido, de ser alvos. A sociedade procura assimilar, integrar, claro: é uma operação que tem de ser feita para se defender. Mas nem sempre consegue e às vezes há operações de rejeição. Tanto mais que não podemos falar de poesia como de mercadoria: eu produzo, mas não produzo uma mercadoria que na realidade seja consumável, e, portanto, cria-se uma relação entre mim e os consumidores. Imagine que a certa altura, na Lombardia, chega um sujeito que inventa um tipo de sapatos que não nunca se consumirá, e que seja uma indústria milanesa a produzir estes sapatos: pense na revolução que ocorreria na Valle Padana, pelo menos no sector do calçado. Eu produzo uma mercadoria, a poesia, que é inconsumível: morrerei eu, morrerá o meu editor, morremos todos nós, morrerá a nossa sociedade, morrerá o capitalismo, mas a poesia permanecerá inconsumpta.



Produco poesia, una merce inconsumabile

Pier Paolo Pasolini


Lei ha scritto: "Sul piano esistenziale io sono un contestatore globale. La mia disperata sfiducia in tutte le società storiche mi porta a una forma di anarchia apocalittica". Che mondo sogna?

Per un certo tempo, da ragazzo, ho creduto nella rivoluzione come ci credono i ragazzi di adesso. Adesso comincio a crederci un po’ meno. Sono, in questo momento, apocalittico. Vedo di fronte a me un mondo doloroso, sempre più brutto. Non ho speranze. Quindi non mi disegno nemmeno un mondo futuro.


Mi pare che lei non creda più ai partiti.

No. Se lei mi dice che non credo più ai partiti mi dà del qualunquista, invece io non sono qualunquista. Tendo più verso una forma anarchica che verso una scelta ideologica di qualche partito, ma non è che non creda ai partiti.


Perché lei sostiene che la borghesia sta trionfando?

La borghesia sta trionfando in quanto la società neocapitalistica è la vera rivoluzione della borghesia. La civiltà dei consumi è la vera rivoluzione della borghesia. E non vedo altre alternative, perché anche nel mondo sovietico, in realtà, la caratteristica dell’uomo non è tanto quella di aver fatto la rivoluzione e di viverla, ma quella di essere un consumista. La rivoluzione industriale livella tutto il mondo.


Lei si batte contro l’ipocrisia, sempre. Quali sono i tabù che lei distruggerebbe: le prevenzioni sul sesso, lo sfuggire alle realtà più crude, la mancanza di sincerità nei rapporti sociali?

Mah, questo l’ho detto fino a dieci anni fa. Adesso non dico più queste cose perché non ci credo. La parola "speranza" è cancellata dal mio vocabolario. Quindi continuo a lottare per verità parziali, momento per momento, ora per ora, mese per mese, ma non mi pongo programmi a lunga scadenza perché non ci credo più.


Lei non ha speranze?

No.


Questa società che lei non ama in fondo le ha dato il successo, la notorietà…

Il successo non è niente. Il successo è l’altra faccia della persecuzione. E poi il successo è sempre una cosa brutta per un uomo. Può esaltare, al momento, può dare delle piccole soddisfazioni a certe vanità, ma in realtà, appena ottenuto, si capisce che è una cosa brutta. Per esempio, il fatto di aver trovato i miei amici qui, alla televisione, non è bello. Per fortuna noi siamo riusciti ad andare al di là dei microfoni e del video, e a ricostruire qualcosa di reale e di sincero; ma come posizione è brutta, è falsa.


Perché? Che cosa ci trova di così anormale?

Perché la televisione è un medium di massa, che non può che alienarci.


Ma oltre ai formaggini e al resto, questo mezzo porta in casa adesso anche le sue parole. Noi stiamo discutendo tutti con grande libertà, senza alcuna inibizione.

No, non è vero.


Sì, è vero. Lei può dire tutto quello che vuole.

No, non posso dire tutto quello che voglio.


Lo dica.

No, non potrei, perché sarei accusato di vilipendio dal codice fascista italiano. In realtà non posso dire tutto. E poi, oggettivamente, di fronte all’ingenuità o alla sprovvedutezza di certi spettatori, io stesso non vorrei dire certe cose. Ma a parte questo, è il medium di massa in sé: nel momento in cui qualcuno ci ascolta dal video ha verso di noi un rapporto da inferiore a superiore, che è un rapporto spaventosamente antidemocratico.


Io penso che in certi casi sia anche un rapporto alla pari: perché non potrebbe esserlo?

Alcuni spettatori, per privilegio sociale, possono esserci culturalmente pari... Ma in genere le parole che cadono dal video cadono sempre dall’alto, anche le più democratiche, anche le più sincere. L’insieme della "cosa vista" sul video acquista sempre un’aria autoritaria, fatalmente, perché viene sempre data come una cattedra. Il parlare dal video è sempre parlare ex cathedra, anche quando questo è mascherato da democraticità.


Lei è stato, molti anni fa, per Ragazzi di vita, uno dei primi scrittori italiani chiamati a comparire in tribunale sotto l’accusa di oscenità: a distanza di tempo, come giudica certi scrittori erotici di oggi e questo dilagare dell’erotismo nel cinema, nelle librerie e nelle edicole?

Mah, per me l’erotismo nella vita è una cosa bellissima, e anche nell’arte: è un elemento che ha diritto di cittadinanza in un’opera come qualsiasi altro. L’importante è che non sia volgare; ma per volgarità non intendo quel che si intende generalmente, ma una disposizione razzistica nell’osservare l’oggetto dell’eros. Ad esempio, la donna nei film o nei fumetti erotici è vista razzisticamente come un essere inferiore, quindi è vista volgarmente. Allora, in questo caso, l’eros è puramente una cosa commerciale, volgare.


Come mai un marxista come lei trae tanto spesso ispirazione dai soggetti che escono dal Vangelo o dalle testimonianze dei seguaci di Cristo?

Evidentemente il mio sguardo verso le cose del mondo, verso gli oggetti, è uno sguardo non naturale, non laico: tratto le cose un po’ come miracolose. Ogni oggetto per me è miracoloso: ho una visione – in maniera sempre informe, diciamo così – non confessionale, in un certo qual modo religiosa, del mondo. Ecco perché investo di questo modo di vedere le cose anche le mie opere.


Il Vangelo la consola?

Mah, non cerco consolazioni. Cerco umanamente, ogni tanto, qualche piccola gioia, qualche piccola soddisfazione, ma le consolazioni sono sempre retoriche, insincere, irreali… Lei dice il Vangelo di Cristo? No, in questo caso escludo totalmente la parola "consolazione": per me il Vangelo è una grandissima opera intellettuale, una grandissima opera di pensiero che non consola: che riempie, che integra, che rigenera… ma la consolazione, che me ne faccio della consolazione? "Consolazione" è una parola come "speranza".


Secondo lei gli intellettuali italiani scendono a troppi compromessi: facciamo dei nomi, citiamo dei casi…

Il compromesso si può riassumere in un punto solo: quello di accettare in modo acritico – perché se fosse critico si potrebbe anche ammettere, anzi credo sarebbe inevitabile – l’integrazione.


Non l’accetta anche lei?

Sì, ma in modo critico (come vede, mi ero premunito). Cioè, certo non posso non accettarla: devo essere un consumista per forza, perché anche io mi devo vestire, devo vivere; non soltanto, devo scrivere o fare dei film e quindi devo avere degli editori, dei produttori…


Quindi anche lei produce per il consumo.

La mia produzione consiste nel criticare la società che in un certo senso mi consente, almeno per ora, di produrre in qualche modo.


La società ha sempre tremendamente amato chi produceva dicendo di non amarla.

Sì, è vero: può darsi che le signore della buona borghesia amino, in un certo senso, essere colpite. La società cerca di assimilare, di integrare, certo: è un’operazione che deve fare per difendersi. Però non sempre ci riesce, a volte ci sono delle operazioni di rigetto. Tanto più poi che non possiamo parlare di poesia come di merce: io produco, ma produco una merce che in realtà è inconsumabile, e quindi c’è un rapporto strano tra me e i consumatori. Immagini che a un certo punto, in Lombardia, arrivi uno che inventa un certo tipo di scarpe che non si consumeranno mai più, e che un industriale milanese costruisca queste scarpe: pensi alla rivoluzione che succederebbe nella Valle Padana, almeno nel settore dei calzaturifici. Io produco una merce, la poesia, che è inconsumabile: morirò io, morirà il mio editore, moriremo tutti noi, morirà tutta la nostra società, morirà il capitalismo ma la poesia resterà inconsumata.

Entrevista ao pintor Urbano

Um dos maiores pintores açorianos – Urbano (1959, S.Miguel, Açores) - cedeu-nos uma pequena entrevista sobre o seu percurso e a sua Pintura.  Atualmente tem em exposição, na Galeria Fonseca Macedo, em Ponta Delgada, uma série de trabalhos com o título “Tempus Edax Rerum”, uma exposição que nos fala sobre a importância da natureza e do Tempo. No texto introdutório à exposição podemos ler o seguinte: “As flores já murcharam e levei-as todas de volta ao jardim. Repousam na terra e são fertilizante para as plantas. Devagarinho e em silêncio novas flores irão surgir”. Urbano, o “herdeiro” da pintura de Dacosta, é, ao mesmo tempo, o renovador da pintura de paisagem da natureza dos Açores. Uma paisagem onde o sagrado e o silêncio se misturam com o intemporal, e esse com o isolamento e beleza das ilhas. A entrevista foi realizada via e-mail.

 

Vítor Teves- Caro Urbano, obrigado, antes de mais, por conceder esta entrevista, pois é uma honra tê-lo como convidado. O Urbano não se deve recordar, mas no meu primeiro contacto consigo e com a sua obra, em Ponta Delgada, contou-me que muito dos seus tempos de infância eram passados numa praia em Ponta Delgada, uma que já não existe. Pode falar-nos dessa sua ligação com o mar e como é evocar um “elemento/sítio” que já não existe?

Urbano - Era um espaço de mar, não de praia mas sim de piscina. Banhos das Alcaçarias ou Piscina de S. Pedro, no extremo nascente da Avenida Infante D. Henrique, em Ponta Delgada. A ideia de evocar aquele espaço e aquela vivência esteve comigo muito antes da sua destruição no final da década de oitenta.

 V- Comecei pelo Mar porque tudo parece andar à volta do mar. Claro que a paisagem e as figuras estão presentes, mas, talvez, o seu verdadeiro elemento seja a água e o fogo. Concorda com esta observação? Digo isto porque estou a pensar nas suas paisagens sobre o mar, e nalgumas a própria ligação com o fogo.

U- Devo antes de mais dizer que o meu trabalho vai para além disso. Provavelmente que pelo facto de ter nascido e vivido numa ilha, de origem e actividade vulcânicas, foi e é estar sempre com o mar e o fogo à nossa  volta e ao alcance dos sentidos. Possivelmente e também por isso, a partir de determinado momento, o meu interesse foi-se centrando  nas origens e  no sentido da nossa existência. Trata-se de uma questão universal e intemporal.

 V- O urbano é já um artista com muitos anos de carreira. Pode sintetizar o seu percurso para o leitor desta entrevista. Quando descobriu o seu talento e como o foi desenvolvendo ao longo dos anos.

U- Desde sempre me lembro de desenhar, o que é certamente normal à maioria das crianças, no meu caso o que aconteceu foi que nunca deixei de o fazer e com o tempo, naturalmente e sem me dar conta, a pintura foi ocupando um espaço cada vez maior em mim. As circunstâncias tiveram alguma importância neste percurso, pois ainda estudante e em resultado do convívio com amigos que tinham os mesmos interesses participei na organização de exposições o que me fez entender a arte numa outra dimensão. Mais tarde, em 1983 fiz a minha primeira exposição individual (no Museu Carlos Machado) e a partir daí foi nunca mais parar, antes pelo contrário. Em 1995 decidi e fui para a Slade School em Londres com o objectivo/pretexto de estudar gravura. Fui por um ano mas acabei por ficar dois e no regresso estabeleci-me em Lisboa ficando ligado à Galeria 111, o que se mantém até à data. 

 V- Como se desenvolve o seu processo criativo? Estou a lembrar-me da série sobre Veneza (o tempo suspenso), os seus arlequins e paisagens evanescentes. Parecem-me evocar Picasso (o Picasso neoclássico: Mãos, arlequins) Degas, Monet e Turner.

U- De um modo geral desde o momento em que uma ideia nasce e começa a existir dentro da minha cabeça até ser materializada decorre muito tempo, vários anos mesmo. Além disso cada uma delas é sempre parte de mim, com tudo o que vi e vivi (e o que isso significa), antes e depois daquele primeiro momento.

A ideia para o Palio (2002) e Veneza (2004), nasceu quando estava na Slade (Londres, 1995) durante a leitura do livro “Viagem a Itália" de Goethe, e para ser claro a minha primeira motivação foi a de (e à semelhança de Goethe) ter um bom pretexto para ir e estar em Itália por longos períodos de tempo.  Mais tarde, quando fiz as viagens e escolhi Veneza como um dos lugares a trabalhar, refleti sobre ser ou não ser oportuno fazê-lo, quando tantos e tão bons já o tinham feito. Entre outras coisas lembrei-me do que Renoir, quando lá esteve, escreveu à sua amiga Madame Charpentier “Fiz um esboço do Palácio dos Doges como se fosse a primeira fez que alguém fizesse isso”, (tenho essa passagem num dos cadernos de Veneza que acabou por ter edição da Galeria 111, em fac-simile) ou seja, já Renoir se questionou ao fazer o que fez, mas fez. No meu caso senti que podia fazê-lo pois não se tratava apenas de pintar Veneza, eu tinha uma ideia e pareceu-me que nunca antes ninguém tinha feito nada assim. Veneza é talvez o que melhor exemplifica aquilo que é para mim uma parte muito importante do meu trabalho. A passagem do tempo, o efémero. Foi esta a principal motivação e foi nela que me concentrei. Considerei dois momentos: o primeiro terça-feira, dia de carnaval, o segundo quarta-feira de cinzas. Nesses dois dias estive a vaguear pela cidade. No primeiro, tudo, e por todo o lado era cor, alegria, música, exuberância, excesso. No segundo, fui logo pela manhã à Praça de São Marcos que estava completamente deserta, apenas povoada por todo o tipo de despojos, sobretudo papéis levados pelo vento movimentando-se silenciosamente como fantasmas. Foi uma imagem totalmente oposta à do dia anterior, profundamente forte e perturbadora, parecia que tudo tinha sido vaporizado. Foi assim, considerando esses dois momentos, que desenvolvi a exposição. No primeiro, a cidade invadida por Arlequim e demais personagens da “Commedia dell’arte", e não só. No segundo imagens de Veneza deserta onde o casario e as estacas aparecem brancas como fantasmas ou espectros.

 V - Não sei se o Urbano se recorda, mas a quando da Retrospetiva de António Dacosta, em Serralves, em 2006, o Urbano foi o meu guia da exposição. Nunca me vou esquecer daquele encontro, no qual o Urbano deu-me a conhecer um Dacosta desconhecido, sobretudo a pintura da sua última fase. O que o fascina tanto em Dacosta?

U - O que me fascina num pintor é a qualidade da sua obra. Dito assim acabei por não dizer nada mas é assim que tem de ser dito. A obra de Dacosta sendo muito complexa é, parece ser, de uma simplicidade e facilidade extremas. Engano o nosso. O desenho é seguro, as cores são as certas, os toques de pincel são só os necessários e todos os que são necessários, não há exibição de virtuosismo embora haja virtuosismo ao mais alto nível só que é contido e posto ao serviço da obra final, não se vê mas, o que não se vê vê-se sem se dar conta. Qualquer centímetro quadrado de uma pintura de Dacosta é um regalo para os olhos e para a alma.

 V - Na sua, já vasta, obra, o Urbano recorre essencialmente ao Branco, a sua cor dominante. E digo cor reconhecendo já a importância do Branco em toda a pintura na Modernidade. Porquê esse fascínio pelo branco?

U - O branco não foi, nem é, uma escolha mas a verdade é que muitas vezes depois de fazer e voltar a fazer acabo por ir limpando até chegar a quase nada ou apenas ao que me parece essencial daí que acaba por ficar limpo. É isso, branco é limpo.

 V- Nos últimos anos, tem trabalhado com folhas de ouro e de prata. Visualmente o observador é absorvido pela beleza e impacto dessas obras. Estou a pensar na sua exposição “Hespérides” na Galeria 111. Porquê esse uso específico de material e esse episódio da mitologia clássica?

U - O recurso à folha de ouro e de prata é relativamente antigo embora só o tenha feito em obras em gesso, mostradas pela primeira vez na exposição antológica no Museu Carlos Machado em 2011. No caso da exposição Hespérides (2012), atendendo ao assunto que estava a tartar,, era um bom pretexto para recorrer a esses materiais pelo seu valor formal  e semântico, onde está subjacente um intencional sentido de ironia, pois estava a referir-me à Europa, exemplo de sucesso e prosperidade que na realidade se encontrava numa situação complicada, no caminho da ruína, como todos sabemos e infelizmente ainda hoje sentimos.

 V- Na sua obra podemos encontrar um fascinante bestiário e uma variedade de paisagens, por vezes paisagens que remetem para a ideia de origem (Génesis; árvore da vida). Estas são as suas temáticas de eleição, a paisagem e os animais?

U - São os que mais me interessam, são intemporais e universais.

 V- Um dos aspetos que sempre me fascinou na sua obra foi o uso dos suportes. São sempre muito variados e nunca virgens, na medida em que estão sempre salpicados de tinta, dobrados, rasgados. Essa materialidade, muitas vezes muito expressiva, contrasta com um desenho quase sempre linear de elementos simples: uma mulher de costas, um cordeiro, uma sombra de rapaz, etc. há, parece-me, esse eterno jogo entre o abstrato e o figurativo. Por um lado, há plena aceitação das propriedades do desenho, pois ele aparece quase sempre como elemento da própria pintura. Quer comentar isto? Partilha desta minha visão?

U - O que me interessa é criar obras que sejam fortes e complexas, mas ao mesmo tempo frágeis e simples. Trabalho muito o suporte para que sobre ele baste apenas uma leve linha.

 V- A sua obra está carregada de uma simbologia religiosa. Por vezes claramente associado a um ambiente religioso judaico-cristão, mas por vezes, essa religiosidade extravasa esse domínio, melhor dizendo: a sua pintura explora todos os domínios do sagrado. É uma necessidade interior essa exploração ou é apenas uma consequência de algum apelo exterior?

U - Trata-se sobretudo de entender as coisas num sentido onde o sagrado tem presença, mesmo que só intuído.

 V - Uma das suas mais interessantes obras é a capela do Hospital do Espírito Santo, em Ponta Delgada. Creio que essa obra marca, de certo modo, uma viragem na aceitação da Arte contemporânea nos Açores. Quer falar um pouco dessa obra? Sabendo desde já que é difícil sintetizar a sua complexidade.

U - Essa obra só por si podia ser motivo de uma entrevista que para ser devidamente esclarecedora teria de ser longa. Mas tentando dizer o essencial. É muito importante não esquecer o local onde se encontra e que foi feita para lá. É um retábulo em pedra gravada e fala sobretudo da luz e do nascimento. Tive a preocupação que fosse/seja uma obra aberta e que todos, independentemente da religião que professem, ou mesmo que não professem nenhuma, ao estarem na capela sintam paz e esperança.

 V - Há na sua obra uma forte ligação com a poesia. Não só porque muito dos seus trabalhos plásticos são carregados de um sentido poético, mas porque trabalha ou trabalhou com poetas de renome, como Emmanuel Jorge Botelho e João Miguel Fernandes Jorge. Além desse contacto é um leitor assíduo de poesia? Antero de Quental aparece aqui e ali em muitos trabalhos, é para si uma referência incontornável?

U - Para além da poesia tenho uma ligação forte com os livros, não só como leitor mas também como criador. No que diz respeito à poesia tenho desenvolvido um trabalho vasto com o Emanuel Jorge Botelho, o que nos aproximou muito cimentando uma grande amizade entre nós, relativamente ao João Miguel Fernandes Jorge a minha colaboração foi menor e mais pontual, mas certamente também nos aproximou. Antero de Quental é um caso diferente, até porque não o conheci nem convivi com ele, trata-se do mito e são coisas que vêm também da minha infância.

 V - Na antologia açoriana de João Miguel Fernandes Jorge há 4 trabalhos seus sobre os quatro elementos: Ar, terra, fogo, água. Creio que a sua obra anda à volta desses quatro elementos. Se tivesse que escolher um, qual seria? E porquê?

U - Não sei dizer porquê mas inclino-me para a água.

 V- Urbano, sei que terá muito em breve uma nova exposição na Galeria Fonseca Macedo, em Ponta Delgada, pode falar um pouco do que poderemos encontrar nessa exposição? Que trabalhos e temas explorados?

 U - A exposição intitula-se “tempus edax rerum” (o tempo devorador de todas as coisas). Tem como motivo simples naturezas mortas, flores, representadas em tempos diferentes onde o meu particular interesse foi a sua decadência.

Maio, 2019

 

Imagens:

1-      “1 Memória dos Banhos das alcaçarias”, 1996.

2-      “Antero de Quental”, 1996.

3-      “Portrait of a young woman”, água-forte, 1996.

4-      “No Princípio”, 2000.

5-      “Palio”, 2002.

6-      “O Tempo suspenso”, 2004.

7-      “O Tempo suspenso”, 2004.

8-      “Peixe”, gesso e folha de prata, 2011.

9-      “Vaso”, 2011.

10-  A Capela do Hospital do Divino Espírito Santo, P. Delgada, 1998-99.

11-  A Capela do Hospital do Divino Espírito Santo, P. Delgada, 1998-99.

12-  ilustr. para Fecho as cortinas e espero, de  Emanuel Jorge Botelho, 2014.

13-  “Terra (pormenor), ilustração para Antologia Açoriana de João Miguel Fernandes Jorge, 2011.

14-  “As Flores e as Cinzas”, 2008.

15-  “Tempus edax rerum”, 2019.

José Aníbal Campos e o teatro aberto das suas collages

José Aníbal Campos, tradutor do alemão para o espanhol, autor de uma miríade de colagens que o público virá um dia a melhor descobrir, concedeu a um dos nossos editores, o João Coles, uma entrevista sobre este ofício paralelo que mantem com a tradução, o das colagens, e de como ambos se influenciam. Ei-lo aqui na Enfermaria 6. Obrigado, Aníbal.

- Para quem não te conhece, Aníbal, de que maneira surgem as colagens como actividade paralela à tradução? Dirias que o teu ofício como tradutor é fundamental para os teus trabalhos gráficos?

En realidad, mi oficio de traductor literario tiene una influencia en mis collages, pero a la inversa, en un sentido negativo: cuando traduces literatura estás, digamos, cautivo entre los moldes del texto original con el que trabajas. El margen de libertad del traductor es muy reducido. Se requiere de un impulso creativo, pero controlado, siempre al servicio del original. En el collage ocurre exactamente lo opuesto: no hay un original concreto. Lo que existe es una nebulosa de ideas que van cobrando forma de manera azarosa, en un proceso que saca incluso provecho del error: una mala decisión al pegar un elemento puede dar un giro diametral a la vaga idea que rondaba por tu cabeza y descubrir en el papel un universo nuevo, o una textura inesperada, o una composición imprevista. Resumiendo: el collage es para mí como una terapia liberadora de la concentración que requiere mi trabajo con textos de bordes fijados por el original. Es como adentrarse en un campo abierto en el que caben todas las posibilidades y rumbos.

- Louis Aragon, um devoto da colagem, defende num ensaio que o processo criativo das colagens não diverge em nada daquele do cinema ou da literatura, que estes ressoam citação atrás de citação. No final diz: “a diferença não é outra que não de vocabulário: colagem, citação ou letreiro...à vossa escolha.” Concordas? Que relação dirias que têm as tuas collages com a ficção?

Estoy de acuerdo en parte. Podría decirse que todo producto del intelecto es, bien visto, collage. Nuestra mente es un bullicio de ideas contradictorias, y lo que luego recibe un orden en la página, el lienzo, la partitura o la cinta de celuloide es, observado al microscopio, un conjunto de retazos de citas y materiales distintos, como en un patchwork. Pero no creo que la mayoría de los creadores aspiren a eso. Quizá un tipo de cine surrealista sí. Seguramente. O en el caso de los experimentos literarios de los surrealistas, el cadáver exquisito, por ejemplo. Puedo suscribir la opinión de Aragón, en mi caso, en lo relativo al ensayo especulativo. Me fascina, por ejemplo, escribir un tipo de ensayo asociativo que se sirve de la técnica del mockumentary o documental falso. Mi forma de acercamiento a la cultura se refleja en el tipo de ensayos que escribo y también en estos collages. No sé: vivimos en una época saturada de palabras, conceptos, teorías, técnicas e imágenes, pero, a la vez, estamos más desinformados que nunca. El llamado fake news es un resultado directo, también, de esa saturación, y tal parece que la genuina capacidad de imaginar haya quedado derogada por esa sobreabundancia. (Sucede, por ejemplo, con el cálculo mental y la saturación de calculadoras electrónicas. En unos años no quedará nadie que sepa hacer cálculos mentales rápidos o ni siquiera usar los dedos para contar hasta diez.) A mi juicio, el ensayo especulativo, al estilo del mockumentary, me mantiene viva cierta capacidad imaginativa alejada del supuesto dato fidedigno. En cierto modo —así me gusta creerlo—me restituye al menos un atisbo de lo genuino, declarando de antemano que lo que te cuenta o sobre lo que reflexiona no se corresponde con datos reales. Ese es el principio de la ficción regeneradora de la parálisis que provoca la saturación de «realismo» o de una supuesta «objetividad» de la imagen, por ejemplo, que sabemos falsa, maleable, como lo es la palabra institucionalizada (en academias, prensa, organismos políticos o corporaciones económicas).

- Vejo muita ironia nas tuas collages: um presente desorientado, farpas ao politicamente correcto e às modas-fatiota ideológicas, entre brincadeiras e chistes do dia-a-dia - um grande teatro com uma máscara a esboçar um sorriso sardónico. E sempre com muito humor. Pareço ver na plateia um pequeno Gregor von Rezzori a apreciar o teu espectáculo.

Yo no sabría siquiera vivir sin la ironía. La necesito como el aire. Es uno de mis raseros valorativos fundamentales en el disfrute del arte y un imperativo vital. En ese sentido, Rezzori ha sido un descubrimiento muy importante para mí: ante todo, porque toda su obra es una burla amarga y sarcástica contra un arte, precisamente, que ha ido volviéndose cada vez más inauténtico e inesencial. Hay un tipo de poeta (existe en España, por ejemplo, una asfixiante superpoblación de poetas pésimos) al que yo llamo «poeta suspirante». Más que escribir desde sus entrañas, estos poetas, en su mayoría filólogos, escriben desde la «pose del poeta» que conocen por sus lecturas, muchos visten «como poetas», se expresan y comportan en público «como poetas», whatever that fucking means. Ello abre un abismo tan vertiginoso entre su escritura y la esencia misma de la literatura (que es ofrecer alternativas a la realidad), que ya no interesan a nadie, salvo a dos o tres amigos. En Rezzori se unen la vasta cultura y la mirada escéptica, y ello da lugar a una honestidad intelectual (aun contra sí mismo) que muy pocos han sabido ver. De ahí el estremecimiento (y la carcajada) que provoca su obra, en especial la más moderna. A mí Rezzori—lo digo sin tapujos—me devolvió la fe en la literatura como mecanismo de-constructor de toda pose en la creación artística, en las búsqueda del elemento auténtico en ese cándido instinto creador del ser humano y su imperiosa y lastimosa necesidad de poner orden en el caos que somos. Para mí llegó un momento en que, de tanto ver y manejar la inauténtica copia de la copia de la copia (como las de esos poetas descorazonadoramente epigonales de los que hablaba antes, que tal vez fueran más útiles trabajando de carteros, taxistas, agricultores o de amables camareros), dejé de percibir la literatura y su valor irrenunciable. El encuentro con la obra de Rezzori me re-conectó con una tradición y me abrió los ojos para todo lo inauténtico. Eso creo al menos. Yo espero que mis collages espoleen o inciten esa capacidad para imaginar, que ayuden a recuperar una vía de acceso menos teleológica (más caótica, fractal y desordenada) al disfrute de los productos del arte. Y si le arrancan una sonrisa sarcástica a algún espectador, mejor que mejor.

- O que dirias a um jovem tonto que te entrevistasse e te perguntasse se os leitores podem ver o teu trabalho gráfico como uma espécie de Decameron em collages? E em que dimensão?

Pues yo parto de un principio vital: la única pregunta tonta es la que no se formula cuando uno tiene dudas. No sé hasta qué punto los collages puedan ponerse en relación con esa joya literaria que es el Decamerón. Pero hay una esencia del Decamerón que, lejanamente quizá, sí tiene que ver: el Decamerón es el resultado de la huida de la peste florentina. Un grupo de hombres y mujeres se retiran a una villa campestre a contarse historias que, en su mayoría, tienen que ver con los apetitos del hombre real, del ser humano tal cual es. Ante el panorama desolador que tenemos hoy, mis collages, al menos para mí, son también una retirada de la «peste» de nuestros días: nuestra galopante decadencia cultural, la agonía de la capacidad de imaginar por una saturación neuronal de «realismo». Es una retirada en solitario que huye de ese momento gregario del que todos, de algún modo, formamos parte activa.

- Por fim, Aníbal, o que tens a dizer-nos desta selecção que reuniste para a Enfermaria 6?

Es una selección echa a bote pronto a partir de las series que más me gustan. No me atrevería a arriesgar definiciones o intenciones para ellas, pero puedo hablar de los títulos y de lo que vagamente las inspira: una de ellas, la serie «HausHalt», lleva cierta ironía en su propio título, ya que Haus-Halt podría significar «presupuesto», «vida doméstica» o «sostén de la casa», y en cierto modo todas giran en torno al enmarañado asunto de la convivencia con los demás. Luego, las de la serie sobre cartulina negra, están algo más específicamente ligadas a la relaciones «Hombre-Mujer». «Eroticonos» reúne sátiras contra cierto fariseísimo sexual, pues creo que nuestra época, también por una saturación del lenguaje (visual y verbal) supuestamente emancipado, ha involucionado hacia una mojigatería y un conservadurismo aterradores. Y finalmente he seleccionado algunas páginas de mi «Cuaderno Ror Wolf», ya que mis collages surgen de un hábito muy privado, que es llevar cuadernos sobre temas específicos que me ocupan y en los que cabe todo: reflexiones, recortes, citas. Es mi modo de, a partir de un caos de ideas sobre un tema, poner orden en mis pensamientos cuando me dispongo a escribir sobre ello. Son mis pequeños intentos (casi arqueológicos) de reunir y preservar los detritos de mis privados big-bangs.