Também voaste
/Não importa se te crescem asas,
o campo aberto como caverna,
um ovo por estação.
Pequena a boca em bico,
batem rápido os dias
antes de pousarem.
Um canto contínuo ao entardecer.
Dobra as pernas ao caíres, Ícaro.
somos o púlsar das aves/ a rocha linguística/
toda potencia calquera virtualidade/ unha exposición infinita/
un infinito de dor// non cruzamos correspondencias
Chus Pato, Sonora
Não importa se te crescem asas,
o campo aberto como caverna,
um ovo por estação.
Pequena a boca em bico,
batem rápido os dias
antes de pousarem.
Um canto contínuo ao entardecer.
Dobra as pernas ao caíres, Ícaro.
Livaniana fica na Grécia
no árido das montanhas,
o caminho onírico dos nenúfares
enfrenta a terra quente, isolada
como um útero, o acelerador
de partículas sob a foice da lua.
Imagino os gregos de coroas
de estrelas em lugares
onde as abelhas conectam
com o pólen.
Correm mulheres
pelas veias do Verão,
a diástole do corpo verbo,
o azul nos olhos,
bocas em forma de ilha –
as estrias vermelhas
da história.
Escuto as ninfas gregas,
reparo as trajectórias, saltos
de vibração laranja,
explosão invisível
entre as pernas,
o pássaro de fogo.
Solto
voo
e desejo se confundem.
De novo a tragédia grega.
Esqueceram-se de contar
que a liberdade continuaria o mesmo invento
num tempo em que amar nunca havia sido tão derrapante
e, sem aviso, ser gente poderia ser uma tortura pálida.
A saída seria a porta da ignorância
porque a tolerância
entre os gritos e as gargalhadas
dos loucos, dos líricos, dos cínicos, dos descrentes
explodiria na cabeça dos afectos.
Esqueceram-se de contar
que chegaria o dia em que apenas se escutavam
vozes soltas,
o último sol da Primavera,
todos os versos seriam enterrados,
a clausura como um cerco de sombras
ao redor do coração.
E seríamos perseguidos,
seguidos, influenciados, consumidos.
Os vampiros das coroas podres,
escravos do medo e do poder,
aniquilavam a história.
Não viveríamos mais hora a hora,
pulsaríamos iguais em cada tempo,
espelhos em repetição automática.
Esqueceram-se de contar
que abafariam o som de todas as canções,
o pássaro azul não voaria mais na gabardine do Cohen,
não subiríamos aos telhados dos vizinhos,
nada de assobios, nada de mãos dadas,
nada de árvores
à beira da fulgência desaparecida.
As árvores contraídas como línguas
que um dia lamberam rios.
Renovar e criar
deixaria de ser uma possibilidade.
Respirar
a chama erótica do corpo
seria o delírio de uma artéria selvática.
Esqueceram-se de contar
o que seria de nós
quando desaparecesse
o cheiro da noite,
quando não houvesse mais ninguém
que trincasse as flores silvestres.
A morte
tornar-se-ia ruga –
espasmo quente da serpente
debaixo da pedra.
Ainda não tinha visto a Primavera cá de casa.
No terraço ao lado há uma grande nespereira.
Lembro-me de comer nêsperas e gostar
do sabor meio doce, meio azedo,
e de a minha mãe dizer que as nêsperas
faziam nódoas.
Há certas pessoas
que são como as nêsperas que comemos –
não sabemos porque falamos nelas
se há toda uma vasta botânica.
O perfil de Ana Freitas Reis está disponível aqui.
Livros, filmes, ideias.