Desatenção

Não sei se me lembro bem, foi inesquecível. Tínhamos finalmente alcançado o lugar monumental e famoso, e tudo aconteceu deste modo, sensivelmente deste modo. O autocarro da excursão escolar percorrera em esforço as estradas sinuosas e fomos reparando que o guião da viagem, tão minucioso, incluindo mapas e umas quantas citações poéticas, servia de leque, óculo improvisado ou avião de brincadeira que aterrava no sítio subitamente tão concreto. Sintra, atravessada de luz entre arvoredos, abraçava viajantes afinal desprevenidos. Olhávamos com surpresa e o grupo desorganizava-se. Onde fixar a atenção?

Os responsáveis pela visita de estudo inquietam-se com o incumprimento do roteiro. Impunha-se seguir de imediato o percurso do capítulo VIII de Os Maias, expoente, sublinha o guião, da arte realista; subtítulo, como é sabido, “Episódios da vida romântica”. Mas alguns alunos lambiam enormes gelados, outros ficavam a ouvir música no passeio oposto, voltados para uma parede vazia. Os olhos piscavam, encandeados, porque a praça onde estacionáramos entontecia de demasiada luz. O centro do lugar, onde quer que isso fosse, irradiava em labirintos ofuscados. Estavam desatentos! Sintra refulgia de espaço, como assinalava de novo o guião, mas as sombras eram também fortes e criavam áreas onde a humidade se tornava espessa e os vultos quase invisíveis. Estaríamos todos? Sorviam enormes gelados, mostravam-se imensamente desatentos e olhavam para tudo.

 

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Harmónica #1

Ontem dormi muito pouco. Às vezes acordo durante a noite com a sensação de que isto, o mundo ou sei lá, me foge, quase não o consigo agarrar. E depois lembro-me dos viajantes que usam calções azuis, as terras colocadas sobre uma bandeira às cores, o apito vermelho junto ao vaso na casa do avô. Por vezes vem também o cheiro a morcela e a barba ruça. Esses momentos sabem-me bem, sabem-me muito bem. Nunca poderia imaginar que um dia voltasse a comer morcela ou chouriço preto, desde aquela vez que comi tanto que acabei a madrugada a vomitar. Durante anos parecia que mantinha o sabor do vomitado de morcela na boca. Como uma má recordação, uma passagem triste na vida, a que nem por nada queremos reviver. Mas recentemente comi chouriço preto novamente, acredito que um dia esteja a comer morcela também. É como se tivesse crescido e apagado as más imagens do vómito, que podiam muito bem ser outra coisa qualquer. Talvez perdoar seja isto. É ser capaz de comer morcela outra vez. 

Nec spe nec metu

Mas enfim, acabou a era dos gigantes: porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

P.e António Vieira

 

O que retenho de tudo isto é violentíssimo.  Impulso por impulso, são as horas que acabam e passam. Gigantes. A cada tempo, impulsivamente, acabam e passam.
Isto não é sobre deus. Seria, possivelmente, sobre a paz. Mas creio que nem um nem outro existem já para se visitarem. Isto é violentíssimo para quem há já algum tempo deixou cair o rio que tinha no cabelo, deixou cair as mãos cujas linhas foram entregues a uma velhinha tardia. Aqui, agora, tudo é mar e respiração - eis os meus pés! É violentíssimo.
Eu tive confiança no tempo. Confiei na água, nas flores (mesmo nas desertas), tive confiança no oráculo das nuvens, no arco-íris.  Confiei a gigantes a minha cria (-ção) com a inocência de uma criança. E não era nada disto. Nada disto. O que se pretendia, o que eu pretendia, era uma era de caminhos longos sem buracos de guerra, oceanos em barda, caminhos livres de crianças abatidas a tiro e dadas a comer a cães sarnentos. Mães sujas com o sangue dos filhos. Isto são as fezes de deus e da paz todas juntas. É violentíssimo.
Mas eu também sei ser gigante; vou comer do céu, beber galáxias inteiras e soprar ventos de cheiro lindo por este universo todo. Espalhar, com umas mãos enormes, brilhos cósmicos por cima da terra e de cada criança nela. Os gigantes não acabaram nem passaram. O gigante sou eu. E estou aqui, pronta para ensinar a deus e à paz o que são e para que servem. Como se um sonho. Como se um ponto brilhante, e ser livre. Como se assim.
Como se para tudo isto houvesse uma só violentíssima magia.

no cair do pano

no cair do pano de cena dominical, o bastidor enfiou-se dentro de uma oficina: vê-se o desconstruir da relação, os gases a mais no motor, os aplausos antes de tempo, e com isso, a precocidade em explicar o porquê de não nos fazermos rogados a água de rosas no cu. mas os abraços contam, e o cheiro pleural que nos invade naquela parte em que as cabeças sossegam no altar do ombro. encaixe matemático. semicerrar de pálpebras. e pelo único momento do dia, afastamos a preocupação de proteger as pupilas acima de toda a vida onde nos segmentamos. desfadigamos. o esterno esvazia. repouso benevolente. e enche. de novo. com a força de um segredo.