Livros Porler
/Passo por uma estante, depois por outra, à procura de um livro. Talvez esteja na mesa de cabeceira ou nas prateleiras que enquadram a minha querida máquina digital — uma delas, não vá esta emancipar-se. Nada. Sinto, como quem pensa, que é no céu que tocamos quando mexemos num livro (Cesariny dizia «num corpo»). E agora estou privado dele. Não que não tenha muito porler, mas era precisamente esse, que não encontro, que contém a palavra-passe do mundo das ideias. Desisto. Um sábio, não eu, também lê livros, mas pode passar bem sem eles.
Decido, numa espécie de vingança suave, que vou buscar outro, um dos muitos que estou a ler ou tenho para ler. Alguns permanecerão invioláveis (na segunda virgindade que adquirem ao irem parar às mãos do putativo leitor), a escrever para dentro. Outros estão em fila de espera, ainda intocados (salvo para os marcar com uma assinatura afetiva, seguida do ano e mês) ou a meio, um terço, três quartos, poucas ou muitas páginas, romance, poesia, ensaio, filosofia. Outros, ainda, em releitura, como a magnífica República de Platão ou a brilhante e, para os ouvidos actuais, parcialmente incompreensível Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.
Há quem, dizem-me, sinta a angústia do não-lido. Outros, a do porler. Quando, como no porvir, isso devia ser a porta aberta para a aventura. Devia conjurar em vez de angustiar. Sobretudo agora que o lazer abandonou as ruas para se tornar doméstico. Agora que acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Na época da autoexploração por excelência (Byung- Chul Han). Na época do aluvião de publicações que não conseguem diminuir a esterilidade.
Eu, meio a fingir, meio a sério, sinto uma bela emoção estética (mais no corpo do que na faculdade do juízo) quando passo pelos livros porler. Como em Kant, mutatis mutandis, não haverá muitos conceitos para descrever esse prazer ou essa alegria. Mas não me enganarei muito se disser que prevejo que serei incendiado, uma e outra vez.
Qual é a lista actual das minhas alegrias porvir?
Nathalie Heinich, Le paradigme de l’art contemporain. Structures d’une révolution artistique. Gallimard, 2022.
Anne Carson, Sobre aquilo em que eu mais penso, trad. Sofia Nestrovski editora 34, 2023 [1950].
Byung-Chul Han, A Crise da Narração, trad. Gilda Lopes Encarnação, Relógio D’Água, 2023 [2022]. Restam umas magníficas 10 pp.
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, trad. Clara Alvarez, E-Primatur, 2025 [1957].
Arturo Leyte, Heidegger. El fracasso del ser, Shackleton Books, 2024 [2015].
João Barrento, Walter Benjamin. A Sobrevida das Ideias, Saguão, 2022.
Timothy Snyder, On Freedom, Random House, 2024.
Montaigne, Ensaios III, trad. Hugo Barros, E-Primatur, 2024.
Boris Graoys, Staline, Oeuvre d’art totale, Jacquelin Chambon, 1990.
Jenny Erpenbeck, Kairos, trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D’Água, 2024 [2021]. A conter-me, para não terminar demasiado depressa.
Silvina Rodrigues Lopes, A Anomalia Poética, Língua Morta, 2023.
Benjamín Labatut, Um Terrível Verdor, trad. Guilherme Pires, Elsinore, 2024.
Daniel Chandler, Liberdade e Igualdade. O que será uma sociedade justa?, trad. Pedro Elói Duarte, Presença, 2024 [2023].
Bernard Edelman, Nietzsche. Un continent perdu, PUF, 1999.
CristopheBouriau, Kant écologiste, PUF, 2024.
Electra 27, inverno 2024.
Tatiana Faia, recurso e pobreza, Tinta da China, 2025. Para decrescer, sabendo que não nos podemos suicidar numa piscina se soubermos nadar bem, e que nem o maior dos sábios, que, acreditando nesta possibilidade, se torna o mais pequeno dos sábios, poderá explicar o que se passa numa rua que expulsou a classe média com os lamentos da pobreza.