Um ditador que não é um ditador

Um ditador que não é ditador não pode usar bigode. Os bigodes ficam sempre mal quando vem o Carnaval, sendo preciso cofiá-los em frente da televisão, o que do ponto de vista da comunicação é dois, e não um. Três nunca seria. Um ditador também não pode fumar porque estraga os dentes, e além disso pode provocar várias doenças, nomeadamente a doença-do-charuto ou a doença-do-cachimbo, que grassa por zonas em que não há monarquias activas. Roterdão, por exemplo, seria uma terra em que tal acontecimento não sucederia.

Um ditador que não é ditador não diz não às liberdades. Fecha-as, come-as, tranca-as, fode-as, e eventualmente torna-as maiores quando os que delas precisavam têm uma larva no olho esquerdo. No direito, não, porque só há ditadores que provoquem mortes no lado esquerdo, o que tem a ver com a forma como o cérebro funciona (hemisfério esquerdo, mão direita, vice-versa).

Um ditador que não é ditador não ordena: sugere, indica, estimula, faz pensar, faz evoluir, faz caminhar. Por exemplo: se um ditador que não é ditador quer que um grande número de pessoas, pelo menos mais de duas mil, pense que ninguém pode contar os grãos de um metro quadrado de areia, sugere que se conte uma praia inteira. Se a alguém não interessar a questão, melhor. Se alguém defende que um metro quadrado de areia até pode ser eventualmente contável, a praia sempre foi o sítio de eleição para cadáveres que dão à costa. Pensando bem, “dar à costa” é uma expressão demasiado abusiva, uma vez que quem já está morto não pode dar coisíssima nenhuma. Há expressões infelizes. O que nos leva à seguinte questão (aqui faço um parágrafo ridículo, mas que me permite manter o ritmo do texto).

Um ditador que não é ditador pode morrer. Os ditadores mesmo ditadores não morrem. Também não caem da cadeira. Também não morrem de doença prolongada. Também não morrem de velhice. São fuzilados, incinerados, decapitados, empalados, desmembrados, envenenados ou asfixiados. Entretanto ocorreu-me que não sei de nenhum ditador que tenha sido crucificado: são ditadores, não são mártires, e há uma espécie de acordo tácito acerca de como uma morte excruciante deve ocorrer entre os ditadores, a crucificação seria demasiado simbólica para seres desta natureza. Aliás, no caso dos ditadores mesmo ditadores, nem a história os absolveu ou há-de absolver, no sentido em que a história ainda vive no século passado, e aceita a pena de morte. Alguém devia ter uma conversa com ela, explicando-lhe que isto da morte já é uma coisa demasiado batida, já se fez muitas vezes, já está feita, já chega. Se alguém tem o poder de acabar com este desagradável hábito é a história, uma vez que ela é uma construção inteiramente humana, e não sendo capaz de alterar a realidade pode deixar pistas para um mundo pós-nuclear em que extra-terrestres descobririam nos nossos anais que éramos imortais. Só temos todos de morrer entretanto e não deixar vestígio disso, mas isso faz-se, é fazível, é exequível.

            Um ditador que não é ditador tem um ideal, mas não uma utopia. As utopias são irrealizáveis, como por exemplo a de um certo indivíduo que decidiu escrever em latim quando dominava perfeitamente o inglês (que palerma!). Escreveu ele que seria possível que mulheres e homens tivessem os mesmos direitos. Que absurdo. Paspalho utópico. Ou aquele outro – lembras-te da minha última carta, meu amor? – que ousou falar em parábolas: “amem-se uns aos outros”. Um ditador que não é ditador não tem utopias. Tem i-d-e-a-i-s. Ideais são ideias muito vincadas que todos devem partilhar, mesmo que não queiram, porque são os que um determinado conjunto de indivíduos estipulou como correctos e revolucionários. Um ditador que não é ditador também sabe que os ideais facilmente se tornam em ideias, e que as ideias são mais fáceis de manter do que os ideais. No fundo, é como um cheque ou uma mala cheia de dinheiro. Eu prefiro a mala. Mas sou notoriamente conhecido pela minha pouca motivação para o idealismo. Estou a brincar. Não sou notoriamente conhecido por nada. Até porque me irritam os pleonasmos.

            Uma coisa em que um ditador que não é ditador é muito bom é em pensar, de uma forma geral, muito melhor do que os outros. Por isso é que se pode dar ao luxo de matar uns quantos, porque estão a pensar mal. Convenhamos que quem pensa mal pode prejudicar os ideais, e por isso mais vale um fuzilamento provisório, algo reversível após a morte. A opção por fuzilamentos definitivos é típica dos ditadores efectivos, e não dos que não são ditadores. Um fuzilamento definitivo é típico de uma ditadura; um fuzilamento provisório é típico de uma não-ditadura. Se virmos bem, dói muito menos morrer provisoriamente do que definitivamente. Que o digam as encarnações todas de Vishnu, que provavelmente nunca se poderão ter conhecido do ponto de vista teológico, não pelo menos na nossa concepção de tempo, que continua a ser demasiado humana. Uma nova ideia para mudar na história.

            Um ditador que não é ditador também tem um amor geral pelo “povo”. Aqui contrasta flagrantemente com um ditador de facto, que tem um amor geral pelo “povo”. A diferença está em que enquanto um ama o povo na sua generalidade e não sua particularidade, o outro também. Apenas uma coisa partilham, o ditador e o não ditador, é que quando alguém prova que não é do povo, mesmo que seja, é porque está contra o povo, e pode ser desmembrado ou electrocutado. Por exemplo: o “povo” gosta de batatas. Mesmo que nunca ninguém tenha conhecido alguém chamado Povo (e só uma pessoa tomada individualmente é que têm esta estúpida tendência para a identidade de gosto, e mesmo isso é discutível), sabemos que o “povo” gosta de batatas. Fulano de tal é do povo. Talvez porque comesse batatas, porque não havia outra coisa para comer. Entretanto, descobre que adora inhames, e tenta convencer os outros que as batatas são uma merda, mesmo que de facto as batatas sejam melhores. Não pode. Já não é do povo. Pode-se fuzilar, limitar ou eventualmente sodomizar, em casos extremos. Um não ditador fará tudo isso provisoriamente, claro está.

Uma última palavra acerca dos círculos. Cuidado com eles. Eles nunca saem do mesmo lugar. Isso, quer um ditador, quer um não ditador, sabem bem.    

Sete poemas de Daniel Ferreira

Condenados pelo Arco-Íris

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud

Já dizia aquele rapaz, o do negócio de armas.
Enquanto eu sorria sem contar até três
talvez dos tomates do meu bisavô.
Vivemos condenados pela cor (pelo pote escondido
atrás das cores) pela semântica corrosiva
que nos aplaina teimosa o corpo.
E esta inocência, esta falsa liberdade
na procura de expiações maiores;
estes bodes gigantes controlados por andas.



Economia de Mercado

Desde cedo percebi
que essa coisa de não riscar
os livros, como nos ensinam
na escola, é preocupação
primordial de alfarrabista.

Sempre que passo num
ou é para comprar – mesmo
riscado – ou é porque tenho livros
com potencial para o desprezo.

Nunca vendo aqueles
que sublinho – e não é puro acaso.
Prefiro deturpar
tudo aquilo que aprendi.


Café Varandas

Fizesse sol na tarde e nada disto faria
sentido. Duas aprendizes guitarras
e cartas. A televisão acesa a perceber –
pois também tem direito – o que é isso
afinal a que chamamos solidão.
As vozes, confundidas, a raiar sob um tecto
de fumo e outro de verosimilhança.

Por momentos, a vida faz todo
e mais algum sentido.

Olho de relanço para o ecrã enquanto espero.


Metafísica do Sonho

Nascer num berço de ouro.
Querer, depressa e cinicamente,
atingir a perfeição pela indiferença.
Esquecer, de uma vez
por todas, os meus admiráveis dissemelhantes.

Com gosto e requinte
afinar a voz,
limar as unhas e pintá-las,
comprar uns óculos
para melhor ignorar as distopias.

Listagem de uma vida
que morreu
possível logo à nascença.
A questão é essa.

Nunca me derrotando
a tristeza por saber
que não me falta nada.

Eles já sabem que o sonho.


Fonte da rija

ao Pata Descalça

Atravessavas o bairro descalço
enquanto o teu irmão, iludido pela promessa
de um circo espanhol,
fugia já pela fronteira. Nos pés –
calejados – a certeza de que nunca,
nem mesmo no natal, os calçarias.
Achavas, na pequena altura, que os pés
para cheirarem mal
precisariam de uma prisão de cordões
semelhante às grades da fábrica do tio
de A., filho do PJ do qual a tua
avó (com pó de talco suspeito
nos sovacos) fugia a sete olhos.

Não éramos de todo inocentes,
sabíamos que a água da Fonte da Rija
era imprópria para consumo
e no entanto aqui prosseguimos:
longe do bairro onde dois
laços se perderam a partir
do momento em que decidiste
calçar, pela primeira vez, um par
de sapatilhas de corrida.


O Teu Lugar no Mundo

para Lawrence: para não pensares que é para ti

 

Quando te entendi pela primeira
vez, como uma aparição terrena
manifesto-espelho
do quão reveladora é a realidade.
Quando percebi que de ti
uma força evidente me puxava
e agitava, fazendo-me tremer
como um berbere no pólo norte despido
a atravessar o céu
poeirento da noite, maravilhado
de galáxias pressentidas.
Quando neste momento
em que me escrevo, sei de ti
o teu lugar no mundo, a tua bondade
árvore de frutos
composto sobre a raiz do problema.
Quando sozinho sinto
e reconheço, o olhar fremente
um peso, no lugar da maçã de Adão,
um vazio por ocupar. Quando
me escorre música pelos ouvidos
e desço a cidade até à longitude dos
areais, cantando-me outros
a ti, a maresia em sal crescente.
Quando o mar me subir então
até à cintura; pouco depois
até ao pescoço; até ao bailado
dos meus cabelos; hei-de viver
abraçado a um polvo.
Faço também o pino e sei que nunca
é demasiado tarde: espero
humilde ajudar-te a salvar o mundo.


Gaivotas

Passam estúpidas
como o tempo, gritam sôfregas
como crianças. E violentam, muitas, o céu
e o final de tarde nesta cidade.
Migração suburbana,
só lhe posso chamar isso.

Da fome, que nem todos
compreendemos, crescem outros tipos
de sobrevivência.

Voltam da lixeira
municipal, e amanhã
é outro dia.
Até que a morte me separe.

Dois poemas de INCÊNDIOS, o novo livro de João Miguel Henriques

João Miguel Henriques, Incêndios
não edições, dezembro 2016
Encomendas: nao.edicoes@gmail.com

As feridas, com a nossa idade

saram lentas as feridas com a nossa idade
os golpes todos fecham só a custo
e devagar cresce a crosta sobre a carne
e como tarda a cair com a nossa idade
os meses que demora, são esperas longas
e a pele com a nossa idade após a crosta
já não é pele como dantes renovada
mas cicatriz dos nossos anos, da nossa idade
marcação de ferida lenta e pena funda
de funda ferida que a idade já não cura


Canção de infância

já noite dentro vimos então um sapo
um vulto escuro e lento
destacado contra o murete caiado
à luz mortiça de uma lua nova

só dias mais tarde, semanas
lembrados do sapo gordo e nocturno
nos veio à cabeça a tal cançoneta de infância

e o batráquio animal, de boca torta
pareceu-nos já outra coisa

o tempo

aquele olhar
a existência

tudo comeu
nem ofereceu


Lançamento do livro terá lugar no dia 20 de Dezembro pelas 21:00, no Bar A Barraca, Lisboa. Ver mais informação aqui.


Dois poemas de Juan Carlos de León

SE ABRE EL PARÉNTESIS:

el poema aflora y sangra
      sangra
(( crece ))
      y nuevamente
      sangra
al punto que
la uva
puede traducirnos el lenguaje
de la vid


REDENCIÓN

El pez
dispone su boca
al silencio 

filamentos de tiempo como arcos
resumen la curvatura de la vida

resonancia en círculos
voces y encanto 

Ha quedado mudo el río

Por la mañana
las mujeres
desnudan su carne redentora