Nietzsche e a inspiração

Recuperando linhas de pensamento neo-românticas, Nietzsche apresenta em Ecce Homo, “Also sprach Zarathustra” §3, a inspiração como a revelação que torna fulgurantemente algo visível ou audível. Sacode o sujeito no seu centro de gravidade, desarranja-o e fá-lo sofrer, mas ao mesmo tempo sopra uma felicidade extasiante. Esta experiência deve ser aceite sem questionar a origem, acolhê-la como um “clarão” (Blitz), sem análises, e abraçá-la como uma dádiva. A inspiração acontece no mais alto grau do involuntário, numa tormenta do sentimento de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade (“Alles geschieht im höchsten Grade unfreiwillig, aber wie in einem Sturme von Freiheits-Gefühl, von Unbedingtsein, von Macht, von Göttlichkeit...”). Resumindo, um clarão grávido de verdades que abalam e elevam fulmina um passageiro que ou abate ou imortaliza. Foi desta forma que, por exemplo, Nietzsche sentiu, em puro arrebatamento, a emergência do pensamento do Eterno Retorno do Mesmo.

Duas notas para a Praça da Galiza

1.
nesse velho prédio dos anos oitenta
caixote aparentemente desprovido de poética
humidade nos cantos
varandas fechadas
(elevador em manutenção
para sua segurança)

havia uma dor constante
para ti imperceptível

o peso do regresso iminente
misturava-se com a euforia
de sentir o universo ao nosso dispor

tingindo de chumbo o alfa pendular
tingindo de melancolia a vista sobre o douro

chovia na partida para esse fogo
o regresso era já o derradeiro abandono da esperança
o que tínhamos parecia tudo
a vida parecia a nossa determinação

mas as fachadas eram húmidas
carregadas de estoicismo

para sua segurança


2. 
no porto
a sofreguidão era sempre outonal
os fritos da rua escura sabiam a um passado por vir
um quarto de dose era barato
e trazia solidão que dava para três

era como se a nossa juventude
se estilhaçasse
em miseráveis fragmentos de perplexidade

Dois poemas de Raquel Gaio

vi outro dia
um cavalo semi-morto no meu nome
no corpo dele, a mensagem :
quanto tempo resistimos agonizando?

as unhas parecem cozer o tempo
e a fé é uma grande ressaca

uma longa crina nubla nossa visão
temos o olho doente da mesma paisagem

há um grande abandono por aqui
um terreno baldio uma rodovia abismo
artérias inchadas de barrancos

mas (quase) ninguém vê

sabes que nossos nomes são grande uma invenção
mas o corpo, o precipício de toda espera.


e pensar que também é destino essa convalescência, essa busca pelo olho aberto, o enigma desapiedado, saber que cada ida também é uma volta precária, a carne aberta enferma primata, penso nas migrações que não aconteceram, no útero devastado, o tempo oxidando um corpo, estou numa cova de palavras e tu não me ouves daqui, estamos sempre aterrorizados pelos gestos, pelas patas inflamadas de vaidade, lodo, desejo, o colo, já te disseram que os ossos apodrecem diante de toda espera? temos na boca o desamparo da busca, e nos encontros a porção de eternidade, de infinito, labirinto que rege as distâncias e os espantos, todo nome aduba um terreno baldio e sei que no escuro, tu sabes também, não há ruído sem pretensão, sabemos da cólera e imaginamos o paraíso, o leito, um deus, mesmo sabendo o quão é difícil viver no nosso tempo, esse vazio, essa besta que grunhe, esse chicote que nos devora, tenho tanta ilusão nas articulações que desmorono antes mesmo de toda chegada.


Arte poética de Yves Bonnefoy

ARTE DA POESIA[1]

Dragado foi o olhar fora desta noite,

Imobilizadas e enxugadas as mãos.

Reconciliámos a febre. Dissemos ao coração

Para ser o coração. Havia um demónio nas suas veias

Que fugiu gritando.

Havia na boca uma voz morna sangrenta

Que foi lavada e evocada.

Esta mise en abyme – contida, sem a habitual vertigem da desmultiplicação – desemboca nas duas últimas linhas, onde Yves Bonnefoy (amigo de Paul Celan, mas obrigado a uma tonalidade mais vital)[2] convida à purificação da língua para que a poesia possa renascer plenamente. Acreditando que aí está toda a arte da poesia. Lavada, primeiro, para depois ser evocada (a tradução que escolhi para “rappelée”), forma de ressuscitá-la. Uma ablução que extrai o supérfluo e reaviva algum do imaculado original, resgate iniciado nos gestos de dragar, curar e extirpar o demoníaco. Por outro lado, contra os malabarismos surrealistas (de que Bonnefoy se afastou depois de uma breve, mas intensa, militância), o coração deve ser o... coração. Relembre-se que Bonnefoy contrapôs aos jogos artísticos e estéticos que separam o significado do significante ou do referente, ao criacionismo revolucionário, a frase de Boileau “j’appelle un chat un chat” (chamo um gato um gato).[3]

Despedaçar e afirmar a poesia, atacá-la para a salvar de si mesma, do declínio que se auto-infligiu ao jogar com o epidérmico como se fosse a máxima profundidade da língua. Uma “arte da poesia” elaborada numa meta-poesia, a poesia a olhar criticamente para si sem recorrer a uma textualidade estranha ao seu campo de produção, santos da casa fazem milagres. Superando, porém, o experimento gasto da auto-referencialidade, Bonnefoy consegue um exterior a partir do interior, isto é, a sua meta-poesia não é pura circularidade, ela instala-se também na heterogeneidade, só que é um fora que vive no mesmo jogo de linguagem. Da soberania poética acompanhada por um pensamento da errância, o único que consegue observar o devir.

Além disso, numa duplicidade encantatória, este poema é ao mesmo tempo um gesto de avaliação e ele mesmo qualquer coisa que deve ser avaliada. Avaliada e não interpretada, porque se trata de arte poética.

 

 

[1] ART DE LA POÉSIE

Dragué fut le regard hors de cette nuit,

Immobilisées et séchées les mains.

On a réconcilié la fièvre. On a dit au cœur

D'être le cœur. Il y avait un démon dans ces veines

Qui s'est enfui en criant.

Il y avait dans la bouche une voix morne sanglante

Qui a été lavée et rappelée.

Yves Bonnefoy, Poèmes,  préface de Jean Starobinski, Paris, Gallimard, 1978 (« Pierre écrite », 1965), p. 249.

[2] Em 1975, escreve “[…] ‘Écrire’, une violence / Mais pour la paix qui a saveur d’eau pure.” (Dans le Leurre du seuil)

[3] “La poésie française et le principe d’identité”; de Boileau “J’appelle un chat un chat, et Rolet un fripon”.

Zozobra

Recuerdo que nunca he viajado a Europa.
Sin embargo mis ganas de huir son tan largas. 
Yo vengo de una ciudad que aún no nace en América. 
En el tiempo.
Estoy obligado a decir la verdad.
No sé escribir poemas. 
Dije que un día vendí mi cuerpo a Satán para escribir dramaturgia.
No poemas.
Mi padre escribió poemas como Emily Dickinson o Rimbaud.
Pienso que pudiese escribir un ensayo sobre él. 
Narré que un día leí como separaron Alemania.
Qué tuve miedo y me fui a leer otro tipo de historias cortas.
Explico que no conozco el significado del sexo o la poesía. 
Asumo el dolor como falta equiparable a mi destino.  
Quiero dar entender que nunca aprendí a escribir poemas.
Quizás círculos.
Manchas en el suelo.
Imagino que no salvaré al mundo. 
Lo repito constantemente en mis sueños.  
Quien me salve tendría que ser un poeta del movimiento Alt Lit.

Cortan los dedos de mi mano izquierda. 
Tiene color la mugre cuando se encuentra con la sangre.
Un musgo reverdece en mi pensamiento. 
Hay algo más que juntar las piezas de un rompecabezas.
Desarrollo un pensamiento crítico sobre un posible fin del mundo.
En la literatura. 
Hay un animal que se extingue por las noches.
Al nacer tuve un día infinito como el amor de mi madre. 
Cuando era niño supongo estaba muerto. 
Hablan de cortar las orejas.
Vuelvo a repetir.
Yo nunca aprendí a escribir poemas.
Quizás sea necesario cortar la garganta.