Livros a mais

Thomas Williams

Não há livros a mais, assim como não há amizade a mais ou beleza a mais. Thomas Williams, escritor norte-americano, ajuda-nos a dar sentido ao que muitos consideram a loucura da desmesura livresca: uma boa ou má húbris, a hipertrofia de uma biblioteca composta por parcelas cada vez mais vastas de porler (neologismo que creio ter forjado há algum tempo para um artigo da Enfermaria 6). A «antibiblioteca», como lhe chama Nassim Taleb, é mais importante do que a própria biblioteca. Mudar de paradigma axiológico acerca do valor do que ainda não foi lido talvez implique começar por conjurar linguisticamente o que parece supérfluo ou inútil — como fizeram os japoneses com o termo tsundoku.

Vejamos o que Williams tem para nos dizer na entrevista abaixo, traduzido por Victor Gonçalves do jornal Le Monde (publicada a 22 de agosto de 2025).

«Quando eu tinha 22 anos e morava em Lille, pedi um dia à minha mãe que me enviasse a edição em seis volumes da gigantesca obra Em Busca do Tempo Perdido. Todas as tardes ou noites chuvosas eram então dedicadas ao projeto de terminar aqueles milhares de páginas. Para minha grande tristeza, essa empreitada permanece inacabada — na verdade, ainda não consegui ir além de A l’ombre des jeunes filles en fleurs. Mas o simples facto de ler Proust transformou-me e deu-me confiança em mim mesmo: tornei-me alguém que lê Proust, ou seja, um homem novo. Aliás, continuo a considerar-me alguém que, um belo dia, terá lido Proust, ou mesmo alguém que relerá Proust (ficamos com isso para o próximo verão, ou talvez para o seguinte!). Os bibliófilos experientes reconhecer-se-ão facilmente nestas linhas.

Tal como vestir-se ou viajar, ler é uma atividade que, em última análise, pode estar ao serviço de uma ambição. Trata-se de nos reinventarmos, de nos imaginarmos mais fortes, mais autênticos, capazes de se nos elevar acima das circunstâncias e de ganhar um novo impulso para enfrentar o mundo. Assim, surge uma outra versão de nós mesmos: parecida connosco, mas um pouco mais sofisticada, mais interessante, mais próxima daquilo que gostaríamos de ser... E então esforçamo-nos para moldar a vida real a esse ideal. É assim que começamos a assemelhar-nos com o que o poder indomável da imaginação nos permitiu vislumbrar.

Este verão, parece que, sem dar por isso, adquiri algumas dezenas de livros novos. Uma biografia de James Baldwin com 600 páginas, outra de William F. Buckley Jr. com quase 1000 páginas, poesia com Henri Cole e Ishion Hutchinson, ficção com Joyce Carol Oates, história da arte com livros sobre Max Beckmann ou Hieronymus Bosch, a coleção de relatos de viagem de um amigo que se aventurou da Turquia ao México... e muitos outros, demasiados para citar.

Comprei alguns e outros foram-me enviados para recensear na revista The Atlantic. Todos, sem exceção, despertaram em mim um desejo irreprimível de leitura. Mas esse desejo choca com a realidade matemática do meu quotidiano: é simples, não tenho tempo suficiente para ler todos esses livros. Não agora, pelo menos. É a desculpa a que me agarro à medida que as minhas paredes se cobrem de estantes adicionais e as minhas pilhas de livros continuam a crescer. Quando era mais jovem, sentia-me culpado por não conseguir ler tanto quanto gostaria. Mas, com o passar dos anos, passei a ver uma certa beleza, e até mesmo uma forma de nobreza, em acumular à minha volta mais escritos — mais pensamentos — do que se pode consumir numa vida inteira.

Tarefa hercúlea

O criador de moda Karl Lagerfeld (1933-2019) frequentava a minha livraria parisiense favorita, a Galignani, na rue de Rivoli, e a sua casa, nas proximidades, abrigava uma biblioteca absolutamente lendária, com 250 000 títulos no momento da sua morte, em 2019. O escritor italiano Umberto Eco tinha «apenas» 30 000 a 50 000 livros, mas, segundo os seus cálculos, esse número representava ainda assim um volume de leitura impossível de alcançar numa só vida. Ler um livro por dia durante setenta anos seguidos perfaz apenas um total de 25 000 títulos. Existe um vídeo no YouTube que nos permite acompanhar o escritor pela sua biblioteca labiríntica — um passeio tão exaustivo quanto fascinante.

Há quinze anos, publiquei Losing My Cool [Une soudaine liberté, traduzido do inglês (EUA) por Colin Reingewirtz, Grasset, 2019], que narra em parte a minha infância num subúrbio residencial de Nova Jérsia, onde o meu pai formara uma biblioteca com pelo menos 15 000 títulos. Os livros empilhavam-se nas paredes, em todas as superfícies, em todos os cantos disponíveis, e até na casa de banho, na cozinha, na garagem, na lavandaria e no sótão. É possível ler 15 000 livros numa vida — e o meu pai tenta (ainda e sempre, o que me encanta) corajosamente alcançar esse objetivo —, mas a tarefa é hercúlea.

«É irracional pensar que é preciso ler todos os livros que se compram, assim como é irracional criticar aqueles que compram mais livros do que podem ler», disse Umberto Eco. Na vida, há coisas das quais é preciso ter sempre uma reserva abundante, mesmo que, no fim, só se use uma parte.»

Ao longo das décadas, eu próprio acumulei alguns milhares de livros; eles têm valor suficiente para mim para que eu me esforce ao máximo para os enviar para o outro lado do oceano quando tenho de me mudar – mesmo aqueles que não li, mas cuja presença me tranquiliza sempre que o olhar se detém na sua lombada familiar. Acabei por compreender que não são tanto um fardo, mas sim uma forma de riqueza, no sentido literal da palavra.

Em The Black Swan [Le Cygne noir. La puissance de l’imprévisible, traduzido do inglês (EUA) por Christine Rimoldy, Les Belles Lettres, 2021], Nassim Nicholas Taleb vai mais longe, afirmando que os livros que já lemos têm menos valor do que os ainda não abertos: «[…] À medida que envelhecemos, acumulamos mais conhecimento e obras, e o número crescente de livros não lidos que povoam as prateleiras da nossa biblioteca fita-nos de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, mais aumentam as filas de livros não lidos. Chamemos “antibiblioteca” a esse conjunto de livros não lidos.»

Milagre temporal

A palavra «antibiblioteca» soa um pouco estranha, mas talvez haja uma opção melhor na língua japonesa com tsundoku, ou seja, «uma pilha de livros comprados, mas ainda não lidos». O fenómeno tem uma dimensão bastante positiva, sobretudo se concordarmos com o que explica um artigo memorável do The New York Times, assinado por Kevin Mims, de 2018: «A biblioteca de uma pessoa é muitas vezes uma representação simbólica da sua mente. Uma pessoa que deixou de aumentar a sua biblioteca pessoal talvez tenha chegado a um ponto em que pensa que sabe tudo o que precisa saber e que nada do que não sabe a pode prejudicar. Já não tem o desejo de crescer intelectualmente. A pessoa cuja biblioteca está sempre a crescer compreende a importância de manter uma mente curiosa, aberta a novas vozes e ideias.»

É isso que me parece tão crucial — até transcendente — na aquisição quase perpétua de livros em formato físico, erigida como um modo de vida. Mesmo e talvez especialmente na era dos livros eletrónicos e dos recursos digitais ilimitados. E nunca qualquer apelo à frugalidade ou ao pragmatismo me convencerá de que não vale a pena.

Os livros não são apenas uma forma de informação ou comunicação entre outras, num mundo onde estas duas grandes fontes de distração abundam. São antes uma tecnologia extraordinária, capaz de realizar uma espécie de milagre temporal. O próprio tempo contrai-se entre o autor e o leitor, e anos de reflexão conseguem ser articulados, afinados e transmitidos num formato que pode ser absorvido em apenas algumas horas.

O meu terceiro livro, Summer of Our Discontent, acaba de ser publicado em inglês, comecei a escrevê-lo na primavera de 2021, mas só terminei as revisões no outono de 2024, revendo minuciosamente ideias e frases já lidas centenas de vezes, na esperança de alcançar a expressão mais pura. No entanto, em não mais de oito horas qualquer pessoa o pode ler. Escrever e ler são atividades fundamentalmente diferentes deste ponto de vista. Por isso, parece-me útil considerar os livros que nos rodeiam — e, em particular, todos os tesouros que ainda esperam ser descobertos — não em função do espaço que ocupam nas nossas estantes, mas sim pela imensa extensão de tempo que nos permitem explorar.

Tudo o que a mente humana pode produzir de melhor e mais completo num século pode caber num metro de livros. Para mim, é mesmo a oportunidade [affaire] perfeita.»

Platão e a expulsão dos poetas

Tradução, por Victor Gonçalves, do artigo de Frédéric Manzini, «Platon, chasseur de poètes?» publicado a 2 de julho de 2025 na revista Philosophie magazine.

Qual é o lugar dos artistas na sociedade? São essenciais ou marginais? Reler Platão sobre este tema é desconcertante: extremista, o filósofo quer excluir os poetas da sua Cidade ideal. Faz disso mesmo a sua prioridade. Medida digna dos regimes mais totalitários ou projeto político destinado a preservar a juventude destes «influenciadores» antes do tempo?

Quando se pergunta aos candidatos à eleição presidencial qual seria a primeira medida que tomariam se fossem eleitos, é raro que a resposta tenha que ver com poetas. No entanto, é isso que Platão faz na República, antes mesmo de esboçar os princípios fundadores da sua Cidade ideal, ou seja, do vasto projeto de reorganização política que empreende. Mas por que atacar poetas inofensivos em vez de criminosos ou ladrões? De que podem eles ser culpados, senão de escrever maus versos? E haverá realmente urgência em começar por querer expulsá-los, quando há toda uma organização política a repensar e uma sociedade a construir?

Que vão cantar para outro lado!
Para compreender melhor o que levou Platão
a adotar uma posição tão severa no seu diálogo A República, é indispensável situar-se no contexto geral desta obra. A questão do lugar dos poetas parece suficientemente importante para ser abordada de forma recorrente: é mencionada pela primeira vez no livro II, depois mais longamente no livro III e, finalmente, no último livro, o livro X. Isso mostra a importância que ela tem para o filósofo!

Após um livro I dedicado a trocas entre Sócrates e alguns interlocutores sobre certas ideias recebidas acerca da natureza da justiça e da vida individual bem-sucedida, Platão começa, de facto, a atacar os poetas no livro II, antes mesmo de a discussão sobre a justiça ser transposta para uma escala maior, ou seja, para o nível político, como será na maior parte do que se segue. O seu interlocutor é então um certo Adimanto... de quem não se sabe muito, exceto que é provavelmente um dos irmãos de Platão! A situação é, portanto, no mínimo perturbadora, uma vez que o filósofo relata um diálogo entre o seu mestre e o seu próprio irmão, como se ele próprio estivesse dividido em dois. Seja como for, Sócrates explica a Adimanto que os poetas são prejudiciais quando dão uma imagem deplorável e enganosa dos deuses e fazem crer que é possível ser feliz sendo injusto e comportando-se mal: por exemplo, «que os deuses guerreiam entre si, que armam ciladas, que lutam — nada disso é verdade», lamenta ele. «Contar que Hera foi acorrentada pelo seu filho, que Hefesto foi atirado num precipício pelo seu pai porque quis proteger a sua mãe agredida, e todas essas lutas entre deuses que Homero colocou nos seus poemas, isso não deve ser admitido na cidade, tenham esses poemas sido compostos ou não com uma intenção alegórica» (República, II, 378b-d).

Um desafio para a política educativa
Não é o facto de a poesia recorrer à ficção
que Platão condena, mas o tipo de histórias que ela conta. A diferença entre as que são enunciadas de forma poética ou metafórica — o que ele chama de «intenção alegórica» — e os discursos que procuram expressamente dizer a verdade (conforme à realidade) parece secundária. É bom recordar que o próprio Platão recorre de bom grado aos mitos. Na juventude, dizem, compôs ditirambos, versos líricos, tragédias e, mesmo que o seu encontro com Sócrates tenha posto fim à vocação poética, a qualidade literária da sua escrita é absolutamente notável, cheia de estilo e rica em imagens, a ponto de ser erigida em modelo por todos os professores de língua grega ainda hoje. Platão é o mais poético dos filósofos.

Mas antes de ser poeta, ele é filósofo e legislador, e sua luta não se situa no campo estético, mas inteiramente no campo educativo e político. A desconfiança que manifesta em relação aos poetas obedece, em primeiro lugar, a um desejo de proteger as crianças da pressão que eles exercem sobre elas, conscientemente ou não, quando divulgam preconceitos — por exemplo, sobre os deuses. Ao refletir sobre a forma como se deve educar a juventude, Platão teme a influência nefasta que os poetas podem exercer sobre as almas mais vulneráveis ou influenciáveis. Ao ponto de instituir uma forma de censura? Sim, porque a educação é um assunto demasiado sério para ser confiado, sem controlo, aos artistas, nem eles próprios medem as consequências políticas da sua arte! É preciso compreender que, na Atenas de Platão, era através da convivência com os poetas que os mais jovens se formavam. A «poesia» em questão é, em primeiro lugar, muito mais do que aquilo a que hoje chamamos, em sentido estrito, «poesia», como confirmam os exemplos dos poetas que ele menciona na República: Homero, Hesíodo, Ésquilo, Píndaro... É todo o teatro e toda a literatura que o termo abrange. Todos eles detêm uma espécie de soft power que pode parecer inofensivo, mas que, aos olhos do filósofo, é formidável. «Começamos por contar histórias às crianças», escreve ele, acrescentando que «em qualquer tarefa, o mais importante é o começo».

O poder subversivo da arte
Os bons poetas são bons educadores?
Nada é menos certo, pois a sua preocupação é agradar e emocionar, e não instruir ou tornar melhor. Será que eles se preocupam minimamente com o bem? Terão pensado no significado do que representam? Quando os mitos, lendas e outros relatos das proezas de heróis e deuses os mostram como indivíduos impulsivos, egoístas, vingativos – ou seja, feios e viciosos –, os poetas erigem-nos em modelos de maus exemplos. O episódio da fúria de Aquiles, na Ilíada, valoriza assim a raiva e pode levar a crer que se trata de um sentimento legítimo e nobre: aos olhos de Platão, Homero não é, portanto, recomendável. O talento dos poetas não está em causa, pelo contrário. Quanto mais talentosos, mais perigosos são e mais poderoso será o efeito que podem ter sobre as almas influenciáveis que se identificam facilmente com as personagens de ficção que lhes são apresentadas. O prazer que proporcionam é ainda mais indigno e pernicioso, pois habitua os jovens a ceder às paixões, não os preparando para serem adultos e cidadãos virtuosos.

Platão teme, de facto, que o imaginário criado pelos poetas veicule valores contra os quais será difícil lutar, como uma doutrinação que talvez seja impossível desfazer quando esses valores entrem em conflito com aqueles filósofos no poder considerem bons. Quem, hoje, criticaria o governo por fazer o que está ao seu alcance para impedir que as crianças sejam expostas à violência, à pornografia, a discursos ou ações sexistas e racistas? Noutras palavras, por legislar para bloquear o acesso a determinados programas de televisão, sites ou redes sociais? É da mesma forma, como defensor das crianças em perigo, que Platão intervém: expulsar um certo número de poetas da Cidade parece-lhe ser o meio de erradicar o mal — ou mesmo a simples possibilidade do mal — pela raiz, antes que ele tenha a oportunidade de se instalar na mente dos futuros cidadãos.

Compreende-se melhor que o filósofo considere este assunto prioritário e que opte por abordá-lo no momento preciso em que se prepara para lançar as bases do seu novo Estado. Como dar bases sólidas a uma sociedade se o espírito corrupto dos seus membros não tem gosto pelo belo, pelo verdadeiro, pelo bem? Muito crítico em relação ao funcionamento de Atenas tal como a conhece, Platão considera que ela precisa de medidas fortes. Repensa todo o currículo educativo e reforma toda a política cultural, ordenando-a pela lei da razão e colocando, assim, a «educação artística e cultural», como agora se diria, sob uma vigilância muito estreita. Vinte séculos mais tarde, Rousseau será animado por uma preocupação semelhante em Émile, o seu tratado de pedagogia que redefine a educação a partir do zero: aí qualificará a leitura como «flagelo», fará esperar o aluno até os doze anos antes de lhe dar livros e desaconselhará até mesmo uma fábula como «O Corvo e a Raposa», de La Fontaine, porque a moral que ela contém é profundamente cínica, valoriza o sucesso da duplicidade e apresenta como modelo um mentiroso. Tudo isso não é adequado para crianças, mas apenas — e eventualmente — para mentes mais maduras, mais experientes e suficientemente críticas para compreender os diferentes níveis de significado e distinguir o que é importante do que não é. Deveria ser proibido para menores de dezasseis anos!

Poetas censurados, poetas autorizados
Cabe ao legislador
dotar-se dos meios para preservar os futuros cidadãos de qualquer forma de corrupção moral e afastá-los de maus educadores – atualmente, falaríamos de influenciadores tóxicos. Uma vez que não é possível afastar as crianças da cidade, a solução menos má consiste, portanto, em mandar embora os poetas. É claro que se pode argumentar que não era necessário chegar ao ponto de exilar os poetas e que bastaria regulamentar a sua prática por meio de algumas leis bem direcionadas. Por que levar a radicalidade ao ponto de exigir a sua partida? Será porque os respeita demais para lhes pedir que se submetam e obedeçam ao Estado? Não exatamente, e é a este ponto que o livro III volta. O diálogo, novamente entre Sócrates e Adimanto, evoca a formação daqueles que são chamados «guardas», que têm a vocação de se tornar a futura elite intelectual, física e moral dos cidadãos e, portanto, de desempenhar um papel crucial na nova Cidade. O que aconteceria se a poesia conseguisse seduzi-los, ou seja, desviá-los do seu caminho correto, se os colocasse num estado de transe, fora de si mesmos, onde já não se controlariam? A sociedade como um todo estaria em perigo. Os guardiões devem ser apenas guardiões, inteiramente dedicados a essa função, explica Platão, da mesma forma que os sapateiros devem ser sapateiros; os camponeses, autênticos camponeses e os soldados, verdadeiros soldados: cada um cumprindo precisamente o seu dever ao serviço da comunidade. Com o seu domínio da imitação e do jogo, os poetas são certamente artistas transformistas com um talento extraordinário, mas não têm um lugar fixo na Cidade, e o filósofo conclui que é imperativo que exerçam a sua arte noutro lugar. Trata-se de uma forma de censura? Os poetas excluídos são, como diríamos hoje, «cancelados»? Cuidado com o anacronismo, pois Platão insiste, ao mesmo tempo, que eles devem ser venerados e glorificados: é apenas no plano político que os condena, sem que isso diminua em nada a estima que tem por eles!

No entanto, nem todos os poetas serão expulsos, mas apenas uma parte. Serão bem-vindos e autorizados a permanecer aqueles que, embora «menos agradáveis», produzirem obras consideradas «úteis», ou seja, aqueles que imitam o discurso dos homens virtuosos. O leitor de A República é então tomado por uma dúvida: não haverá o risco de se chegar a uma arte moralizante e ingénua, onde os «bons» triunfam sempre no final, como nas histórias simples, previsíveis e padronizadas que hoje se servem às crianças? A um resultado servil como era a arte soviética, supostamente realista e conforme aos princípios da ideologia estalinista? A menos que Platão esteja aqui a evocar a sua própria prática, na medida em que os textos que escreve, sem procurar a poesia por si mesma, são reproduções das palavras de Sócrates redigidas com um objetivo educativo e edificante...

A ambiguidade de Sócrates e o antídoto para os happy few
O princípio da «rejeição absoluta da parte da poesia que é imitativa»
é reiterado com veemência no início do livro X, o último da República, no qual Sócrates critica repetidamente Homero, embora confesse que sente por ele uma afeição tão profunda e um respeito tão grande que lhe custa expressar-se livremente. Mas os factos estão aí: na prática, Homero foi de alguma ajuda para os legisladores? Ele «foi realmente capaz de formar homens e torná-los melhores»? É preciso reconhecer que, apesar da sua aparência maravilhosa, a sua poesia não é virtuosa e que «o mal que ela pode causar às pessoas de valor – e apenas um pequeno número é exceção – [...] é, por assim dizer, o mais terrível». Esta fórmula é intrigante: é possível resistir à influência negativa da poesia? Platão evoca, de facto, a existência de um certo «antídoto» (595b) que não é outra coisa senão «o conhecimento do que as coisas realmente são». Por outras palavras, e no contexto platónico, é preciso já ser filósofo e saber distinguir bem a realidade da ficção para poder apreciar a poesia como se deve e sem risco de danos!

Com tal elitismo, a conceção de Platão está nos antípodas dos nossos ideais democráticos atuais, que promovem a acessibilidade da arte para todos, incluindo o público jovem, com o objetivo de despertar a sua sensibilidade. O mesmo se aplica à sua decisão de banir os poetas, o que é desconcertante do ponto de vista de uma sociedade como a nossa, que promove a abertura, a tolerância e a criatividade artística. Sacrificando a arte à política e à moral, Platão prefere tratar todos os cidadãos como crianças imaturas e protegê-los contra qualquer forma de subversão que possa prejudicar o desenvolvimento da sua racionalidade, que corresponde à sua parte nobre, destinada a comandar a parte sensível. É legítimo questionar, no entanto, se o remédio que propõe não é pior do que o mal e se a exclusão da Cidade não é também o reconhecimento de um fracasso em fazer coexistir, ou mesmo dialogar, diferentes faculdades dentro da alma.

Os poetas e os artistas não dão também a pensar, despertam o gosto pelo belo, não são guias no caminho do bem, como Homero foi para Sócrates? E quem aceitaria viver numa sociedade que só admitisse como poetas funcionários públicos ao serviço de um discurso moralista e de sentido único? Ao querer monopolizar o pensamento e governar tudo na sua Cidade, Platão corre o risco de ficar sozinho.

Revisão

Quando revemos, é como se reescrevêssemos um texto ad infinitum. Desejamos encontrar sempre mais uma falha, sendo que por vezes ela é apenas um traço muito próprio de ser texto. O revisor, autor-revisor, quer alcançar a perfeição, a exacta perfeição. Em vão (mas é um «em vão» que não desmobiliza), trata-se de um projecto assintótico. A aproximação conserva uma distância incomensurável (ia dizer «sagrada») entre o que está escrito (que pode ser muito bom, até excelente, merecer louvores e tudo) e a perfeição. Trata-se, então, de um movimento, intelectual e espiritual, que conhece o fracasso por antecipação (esforço sisífico). Não porque a perfeição seja uma palavra-miragem. Não! Mas porque não se deixa capturar, está para lá do rigor mortis e dos jogos de interpretação, para lá de qualquer armadilha taxonómica. Existe num plano que desconhecemos, mas desejamos. É totémica.

De todo o modo, perseveramos. Às vezes por capricho, outras por pretensiosismo, mas também por um ímpeto sacrificial: querer morrer o mais tarde possível para alcançar a sintaxe correta que não obnubile a leveza do estilo, para descobrir a palavra justa de uma demonstração, para compor a melodia fonética de um parágrafo digna dos primeiros aedos (aqueles que só contavam histórias aos deuses).

Philip Roth, uma vítima do sucesso, deixou de escrever porque o processo de revisão era demasiado extenuante, demorava o dobro do já longo tempo da escrita. Mas talvez possamos escrever apenas para poder rever, custe o que custar. O esboço é a matéria a que nos atiramos com alguma impaciência, para alimentar o nosso desejo incandescente de aperfeiçoar, reordenar os detritos verbais. Assim, talvez escrevamos não para comunicar (haverá coisa mais banal?), mas sim para instaurar a possibilidade da revisão, angustiante e entusiasmante (como uma amante que parece não nos amar), em direcção à perfeição, mas um caminho sem Ítaca. Contudo, esse impulso não contraria o direito à imperfeição e ao erro; combate, sobretudo, a trivialidade.

Até porque, como diz Italo Calvino, “A mentira não está no discurso, está nas coisas.” Ou seja: o discurso, a escrita serve para criar mundos, não para nos submetermos às leis e aos factos do que foi sendo reificado; primeiro pelos mitos, depois pelas religiões absolutistas, em seguida pela ciência e agora pela política construtivista e pelo marketing. Sem o critério da verdade, o discurso em si, antes de se referir ao mundo, deve ser codificado segundo um elevado grau de necessidade, respeitando e superando as leis, respeitando e superando a própria linguagem (o mesmo é dizer: o homem e Deus).

Claro que isso implica riscos. Os charlatães também se aproveitam da repoetização do mundo, fabricando paralogismos grosseiros. Mas os homens deixarão de acreditar neles, prevê-se uma repulsa generalizada contra a vulgaridade das pequenas mentiras, das ilusões interesseiras, das facécias que retraem o riso. Quando isso acontecer (não será de uma só vez), teremos o reino dos autores-revisores, no qual, como desejava Georges Bataille, se poderá matar, sem sangue, por uma vírgula.

Israel, memória anti-vitimização

Para compreendermos melhor a necessidade de uma guerra que parece desnecessária, é bom lembrar que o «necessário» em geopolítica é sempre um exagero: as alternativas abundam para uns e são impensáveis para outros. Victor Gonçalves foi o tradutor desta entrevista que nos convida à reflexão — se estivermos dispostos a sair da nossa caixa ideológica, fortificada pelo senso comum onde coexistimos.

Denis Charbit, entrevista realizada por Charles Perragin publicada a 3 de junho de 2025, na Philosophie magazine

Como é que a guerra de legítima defesa contra o Hamas e para recuperar os reféns se tornou uma guerra de destruição dos palestinianos? Para compreender o sentido desta terrível reviravolta, o politólogo Denis Charbit, autor de Israël, l’impossible État normal (Calmann-Lévy, 2024), remonta às origens existenciais de Israel e à memória anti-vitimização herdada do Holocausto.

Denis Charbit

«Atravessamos uma catástrofe ética que marcará os israelitas por muito tempo com um signo de Caim» Denis Charbit

O que quer o primeiro-ministro israelita Benjam Netanyahu e como chegámos a este ponto?
Denis Charbit: As operações militares conduzidas por Israel desde a sua criação foram, na sua maioria, represálias a agressões ou ataques terroristas de grande envergadura, em conformidade com o princípio da legítima defesa. Dentro do país, essa preocupação com a legitimidade é indispensável para obter o apoio da opinião pública, na medida em que é necessária a mobilização de reservistas. É também por isso que este tipo de intervenções sempre foi concebido para ser de curta duração, a fim de não provocar movimentos de protesto. À escala da comunidade internacional, o Estado de Israel procura demonstrar que não foi o primeiro a disparar: defende-se, mesmo que de forma excessiva e desproporcionada, para proteger o seu território soberano e a sua segurança. A guerra declarada no dia seguinte ao 7 de outubro segue a mesma lógica. E, desta vez, a magnitude do massacre justificava, aos olhos dos israelitas, a magnitude das represálias e do objetivo: erradicar o Hamas.

«Ao contrário de todas as guerras anteriores que Israel conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo. A catástrofe de 7 de outubro ofereceu uma oportunidade de ouro a esta fação política para impor o seu projeto.» Denis Charbit

Implicitamente, os israelitas admitiram desta vez que a tarefa poderia ser longa?
Sim, e ao contrário de todas as outras guerras que o país conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo e participa nas decisões. Numa primeira fase, de outubro de 2023 a junho de 2024, dois membros da oposição, ambos chefes do Estado-Maior na década de 2010, entraram no gabinete de guerra com a condição de que fosse excluído qualquer representante da extrema-direita. Quando perceberam que as negociações sobre os reféns tinham fracassado por culpa do governo israelita, abandonaram o gabinete de guerra e foram imediatamente substituídos por dois ministros da extrema-direita, Bezalel Smotritch e Itamar Ben-Gvir. A extrema direita tinha agora campo livre. Já não se tratava apenas de acelerar o movimento de colonização na Cisjordânia, ganhar terreno, deixar as milícias intimidarem os palestinianos pela força, mas submeter a guerra travada na Faixa de Gaza a um projeto de destruição total. Assim, a legítima defesa serviu de fachada para uma ambição anexionista e destrutiva que, aliás, nunca esconderam, mas cujo momento oportuno para concretizar esperavam. Já não estamos na época de Ariel Sharon, durante a primeira guerra do Líbano, quando a hubris israelita – para consolidar a sua segurança – consistia em ser o fazedor de reis no Líbano, colocando à frente do país dos Cedros um aliado, Bachir Gemayel (assassinado um mês depois pela Síria). Para Ben-Gvir e Smotritch, a hora é divina: a história não se repete. A catástrofe de 7 de outubro, vista como um ataque existencial, ofereceu uma oportunidade de ouro a essa fação política, que tem a vantagem sinistra sobre os seus adversários de esquerda e do centro de saber exatamente o que quer e não se preocupa com nenhuma norma, nenhuma contingência: que valem as relações internacionais, os acordos regionais, as oposições locais, que vale a moral judaica e universal quando se está imbuído da certeza de que o que se quer, Deus quer?

A eleição de Donald Trump facilitou essa entrada em ação?
Foi decisiva, na medida em que acelerou o colapso do sistema internacional. Além disso, as capacidades militares israelitas decuplicaram nos últimos anos, nomeadamente na vertente defensiva com o Domo de Ferro. Por todas estas razões, o governo já não tinha restrições, nem internas nem externas, para responder ao Hamas, cuja rendição não foi alcançada. Será que ela é sequer alcançável? Podemos perguntar-nos quando se tem um ator cujo principal horizonte é a fé absoluta. Resultado: a legítima defesa inicial, explorada por forças políticas que querem o caos, gerou devastação, a ruína de edifícios e de infraestruturas sociais, económicas, médicas e escolares. Os limites foram ultrapassados muito para lá das operações militares anteriores, muito mais curtas e nunca tão destrutivas, realizadas nas últimas duas décadas, nomeadamente em 2006, 2009 e 2014.

«A legítima defesa inicial, com Israel sempre a ter o cuidado de travar guerras curtas e nunca disparar primeiro, foi desta vez explorada por forças políticas que desejam o caos e a devastação.» Denis Charbit

Ultrapassadas do ponto de vista do direito internacional?
Atenho-me à frase do personagem de Henri Cormery, ao descobrir os soldados franceses massacrados e castrados em O Primeiro Homem, de Albert Camus: «Um homem, impede-se [Un homme, ça s’empêche»] A guerra é aquele momento na história coletiva em que se considera poder e dever libertar-se dos códigos e das regras. No entanto, é preciso recordá-los, restaurá-los e «impedir-se», independentemente da existência de restrições formuladas pelo direito internacional. O que é a moral, senão a reiteração permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade tanto para a moral judaica como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal. O que nos impedimos? Aqueles que acreditam que os judeus são o povo eleito devem compreender que esta noção não é um cheque em branco. Pelo contrário, acrescenta à lista de deveres o peso de um fardo adicional, o imperativo de uma ética exemplar. Da mesma forma, aqueles que se gabam de que Israel é a única democracia do Médio Oriente deveriam compreender que o rótulo democrático não é uma dispensa que autoriza qualquer forma de violência. Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, em tal grau, a confusão entre combatentes e civis, mesmo que seja para eliminar os primeiros. Digo isto com gravidade e o coração pesado: estamos a atravessar uma catástrofe ética que marcará os israelitas com um signo de Caim que nos perseguirá por muito tempo...

«Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, a tal ponto, a confusão entre combatentes e civis.» Denis Charbit

Em que medida essa ausência de limites na resposta militar de Israel está relacionada com o facto de este país não poder ser, segundo a sua tese, um «Estado normal»?
A palavra «normal» é ambígua. Interpretei-a como indicativa das normas a que se submete qualquer regime democrático, mesmo quando está em guerra, como é o caso de Israel de forma quase permanente. O 7 de outubro foi sentido como uma morte coletiva que fez ressurgir o sentimento de estar a mais. Ora, a razão de ser do Estado de Israel foi e continua a ser a capacidade de ser um refúgio capaz de proporcionar segurança a um povo que enfrenta hostilidade permanente, e até mesmo a vontade de ser exterminado. Isso não significa impedir todos os atentados e agressões, mas ter a certeza de que a violência sofrida provocará uma reação imediata e a mobilização das instituições. O trauma não é apenas o facto de a violência ter sido desencadeada, mas de ter podido ocorrer sem entraves, durante horas, sem contra-ataque para impedir um massacre que eliminou mais de 1100 pessoas em 24 horas. No fundo, está a memória do Holocausto e esse mantra, «nunca mais», que se tornou para o povo israelita um «nunca mais para nós», como salientou a historiadora americana Diana Pinto. Esta frase remete para a necessidade de solidariedade face à violência que não faz distinções, uma vez que visa os israelitas, em particular os judeus, sejam eles de extrema-esquerda ou de extrema-direita, ateus ou crentes. Mas o «nunca mais» também tem outro significado além da solidariedade cívica e nacional. É uma forma de dizer: «Nunca mais fracos. Nunca mais vítimas». Este surto – chamado sionismo e que assumiu a forma do Estado de Israel – é uma reação legítima após tantas perseguições, um extermínio e, desde 1945, múltiplos e regulares apelos à destruição do Estado de Israel. A recusa em ser vítimas implica implicitamente que, se for preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. No entanto, quando este despertar legítimo transforma-se numa guerra de destruição, alimentando uma hubris israelita que visa arrasar tudo, eliminar tudo, deslocar a população e reocupar a Faixa de Gaza para sempre, a memória do Holocausto, na sua dimensão anti-vitimizante, atinge um paroxismo que a faz balançar para um extremo que exige o restabelecimento imediato deste pensamento dos limites: «Uma nação, um Estado, impedem-se mutuamente.» Não vejo, não ouço este reflexo moral. As declarações oficiais vão apenas numa direção: tudo é permitido.

«A recusa em ser vítimas sugere implicitamente que, se é preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. Mas afirmar que Israel é a única democracia do Médio Oriente não é um cheque em branco para qualquer forma de violência.» Denis Charbit

Se a razão de ser de um Estado assenta essencialmente na sua capacidade de proteger uma população contra um exterior hostil, não é natural que tenha uma propensão para a violência excessiva?
Nem toda a preocupação com a segurança leva necessariamente à sua radicalização. É claro que a postura do sionismo nacionalista, numa região onde a existência do Estado de Israel não é óbvia e é regularmente questionada, abre um potencial para a violência extrema. Mas é perfeitamente possível evitar essa escalada sem se tornar um país pacifista ou neutro. Proclamar o desmantelamento das nossas capacidades militares aguçaria o apetite de todos aqueles que fantasiam com o nosso desaparecimento: Irão, Hamas, Hezbollah e Houtis. A questão em aberto é: qual será o efeito desta última ação? Esperemos que, mais cedo ou mais tarde, voltemos a colocar-nos sob o imperativo de um princípio de realidade [no sentido freudiano: o mal também vem do interior]. A confissão será dolorosa, parcial e acompanhada pela derrota eleitoral da coligação no poder, se ela ocorrer. Perceberemos então que o governo nos levou muito além da legítima defesa e que, por sua culpa e pelo efeito do nosso trauma, nos tornámos carrascos.

«O que é a moral senão a repetição permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade para a moral judaica, como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal» Denis Charbit

Por que razão a oposição israelita não consegue fazer da condução da guerra uma questão política?
Porque a oposição concentra-se exclusivamente no imperativo categórico da libertação dos reféns. Exige que isso seja uma prioridade, uma vez que o governo se opõe e porque, no fundo, denunciar abertamente as violações do direito é arriscar alienar a opinião pública, que veria nisso uma admissão que favorece o Hamas e os adversários de Israel. Num conflito, não se cede nada ao inimigo. No entanto, o líder do Partido Trabalhista, Yaïr Golan, declarou recentemente que um Estado normal não deve travar combates contra civis, matar crianças «como passatempo» e ter como objetivo a expulsão de uma população. Mesmo que a expressão «passatempo» seja enganosa, ele ousou quebrar esse silêncio após 600 dias de guerra, durante os quais a oposição só se manifestou contra o governo sobre a questão dos reféns.

«É preciso desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças.» Denis Charbit

Por que motivo o governo recusa a troca de reféns?
Recusa porque isso implicaria uma negociação que, para o Hamas, só pode ser bem-sucedida se significar o fim da guerra. Netanyahu também se recusa a negociar, menos para se manter no poder do que para adiar o momento em que, uma vez libertados os reféns, será obrigado a decidir o destino de Gaza após a batalha. Há duas opções: ou uma coligação egípcio-saudita assume o poder, com a Autoridade Palestiniana no centro do dispositivo e, nesse caso, será necessário regressar ao processo de paz do qual Netanyahu se livrou em 2014; ou a manutenção no terreno do Tsahal (o exército israelita). Ora, essa permanência não é apenas uma questão de segurança. Implica também a assunção de todas as funções administrativas, o que os israelitas não tolerarão devido à mobilização de reservistas que essa permanência implica. Seja como for, constato que a opinião pública começa a questionar-se.

Qual foi o elemento espoletador dessa interrogação?
Uma parte da sociedade israelita começa a compreender que é preciso parar de considerar os líderes de extrema-direita como fanáticos. Estamos a chegar a um ponto em que nada é inconcebível, nem mesmo o plano Gaza-Riviera de Donald Trump. Há vinte anos, se um político tivesse considerado oportuno arrasar Gaza, ninguém o teria levado a sério, julgando que o exército não o deixaria fazer. O crescente isolamento diplomático também abalou parte da opinião pública israelita. Perante as ameaças de sanções expressas pela França, Grã-Bretanha e Canadá, há quem anuncie o regresso do Ocidente ao seu antissemitismo latente; os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo que nos afasta das potências que não nos desejam mal.

«Os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo israelita que nos afasta das potências que não nos desejam mal.» Denis Charbit

Quais são os motivos de esperança para os israelitas que continuam a opor-se aos planos do primeiro-ministro Netanyahu?
Para vencer, uma ideia deve ser encarnada por um líder. Desde Yitzhak Rabin, há já trinta anos, não vimos surgir nenhuma figura política que consiga unir. Houve Ehud Barak, mas ele foi derrotado após o fracasso das negociações com Yasser Arafat. Yaïr Golan é talvez o líder de que a oposição precisa. Ele foi vaiado e apelidado de traidor durante um colóquio em Sderot, mas não se acobardou. Não saiu do palco. Respondeu aos seus detratores com veemência, dizendo-lhes que só conheciam o ódio e que era por causa de pessoas como eles que Rabin tinha sido assassinado em 1995. Esta referência é forte. Trinta anos após a morte daquele que assinou os acordos de Oslo, percebemos que Israel não negocia nada há mais de dez anos. Os palestinianos têm uma parte da responsabilidade e nós também. É preciso agora desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças. Caso contrário, esta região deixará de ser habitável para os seres humanos. Em Gaza, devido aos massacres e à destruição, e em Israel, devido ao clima apocalíptico gerado pelo governo – que, à sombra da guerra, prossegue a liquidação progressiva do Estado de direito. 100 000 israelitas já abandonaram o seu país...

Florzinhas de Estufa

São tudo saudades, portugal, ou memória curta,

Esse ódio carunchoso a tudo o que é outro,

Mais frágil quando na verdade igual, porque há estrangeiros

E estrangeiros, a uns beija-se o cu de bom grado,

Com olho no que brilha, tentam espremer-se ao máximo

Os barracos e as ruínas, o very typical, o provincianismo

Urbano como autenticidade, sempre orgulhosos

Do grandioso passado de descobridores do descoberto,

Sem nos dignarmos a esconder os nomes das ruas

Da vergonha, esclavagistas que detestamos quem

Nos alimenta a preguiça e a boa vida,

Adoradores de chico-espertismo e chauvinismo,

Racistas por ódio ao próprio sangue, machistas por sensibilidade

E tradição, não há maior florzinha de estufa que um fascista,

Tudo o incomoda, o pior é a paz dos outros, a felicidade então,

Deixa-o cego de raiva, só o eu está certo, cego, virado para dentro,

Se pudesse enrababa-se a ele mesmo e tinha pequenos

Clones fascistas, o outro é tudo o que está mal na sua vidinha,

Para quem só vê o próprio umbigo, esquece-se de olhar o espelho

E ver que o problema, na verdade, está nele, fechado

Na saudadezinha com cheiro a mofo, criando a realidade

Mentira a mentira, esfolando um pobre bode de cada vez,

Até que, sem se dar conta, no fim, só sobra ele e a faca na mão

Do adorado líder, o tal que dizia as verdades ou o que se queria ouvir,

Até ser a hora de se tornar, inevitavelmente, também ele no outro,

E afinal, a falange que julgava ser, apenas mais carne para canhão.

 

11.06.2025

 

Turku