Revista Fluir 14, Aventura

Acabou de nascer mais um número da importante e belíssima Fluir, uma forma de percorrer o mundo sem erodir as alteridades nem inundar os territórios dos pirilampos. Fluir é estar com, numa época em que parece que tudo está contra.
Um dos textos é o meu ensaio (continuo a inspirar-me no estilo de Montaigne) sobre a aventura do pensamento vivo, que talvez valha, sobretudo, pela magnífica epígrafe de Ruy Belo.

A aventura do pensamento vivo

«É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.»

Ruy Belo, verso do poema «A Mão no Arado», in Todos os poemas

 

Sempre que alguém me diz que «falta rigor» ou «é preciso rigor», respondo, com uma piada que contém uma teoria: «certamente, mas evitando o rigor mortis». Este último tipo de rigor não se afasta um milímetro do já conhecido, testado, consolidado, esgotado. É exercido com a rigidez intransigente de uma verdade que olha apenas para o passado, não para renová-lo, mas para venerá-lo. Venerar o que foi, como foi e porque foi. Contudo, o passado vivo não se deixa aprisionar tão facilmente, embora o clube dos rigorosos acredita que sim.
Se julgam que estamos a jogar o jogo das dicotomias fáceis — de um lado os hermeneutas maus (veneram um passado simplificado), do outro os hermeneutas bons (revolvem o passado e  projetam-se no futuro) —, desenganem-se. Aliás, talvez devêssemos viver assim: desenganando-nos, enganando-nos e desenganando-nos de novo. O incandescente George Steiner (iluminou tantos dos meus pensamentos com a sua benigna erudição rebelde!) guia-nos no In Bluebeard’s Castle (No Castelo do Barba Azul, Relógio D’Água) para algumas interpretações claramente conservadoras — ele que se assumia, à semelhança de Peter Sloterdijk, como um «conservador vanguardista». Para Steiner, trata-se de conservar o mistério do humano, de manter fechada a última porta do castelo. Não porque dê acesso às anteriores esposas sequestradas do Barba Azul (na interpretação de Béla Bartók), fruto de uma libido insaciável que desbarata e consome sistematicamente os compromissos nupciais, mas porque, neste caso, essa porta pode abrir para o quarto onde o genoma humano se mantém conservado e irreconhecível (o livro é de 1971). Contudo, será apenas uma questão de tempo. A nossa «obsessão heurística», como lhe chama Steiner, acabará por escancarar tudo. Abriremos essas portas «porque é o mérito trágico da nossa condição abrir portas.» Mesmo vivendo, ainda segundo este autor, numa «pós-cultura», em que não se lê, ou se lê mal, em que a música erudita deixou de ser ouvida ou em que o pathos matemático se reduziu ao mínimo. Bem sei que o conservadorismo de Steiner é composto de forças inovadoras, mas isso não o impede de criticar a curiosidade invasiva, talvez a mesma que constituiu a húbris de Édipo, e certamente a que hoje elevou a transparência a valor de referência (e que Byung-Chul Han tão bem critica n’A Sociedade da Transparência). Transformamo-nos, lenta mas inexoravelmente, em seres sem mistério.
Na primavera de 2021, a revista Electra dedicou o seu dossier à curiosidade. São páginas instrutivas e fulgurantes. Primeiro, o clássico: a filosofia, momento originário do livre pensamento — quase ainda sem espíritos livres —, para Platão e Aristóteles, nasceu do espanto, do assombro. É essa a lição que nos trazem o Teeteto e a Metafísica. Mas há também um clássico oposto: «Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se nos espetáculos as coisas mais prodigiosas. Daqui passa-se à indagação dos segredos da natureza, que estão fora do nosso alcance e que não há nenhum proveito em conhecer.» (Santo Agostinho, Confissões) Nada de novo em Santo Agostinho: do final do Império Romano até ao Renascimento, a curiosidade foi invariavelmente malvista. E mesmo em pleno Iluminismo, a entrada da Encyclopédie considera a curiosidade como louvável ou condenável, dependendo dos objetos e das finalidades a que se dirige. Ainda hoje, aliás, the curiosity killed the cat.
Interessou-nos trazer aqui duas notas sobre a curiosidade, pois ela é o ponto de partida para a aventura, um começo que nos permite saltar para as margens da normalidade e, no fundo, goste-se ou não da palavra, para a marginalidade. A aventura que daí pode (realço o condicional) advir, usando o impulso inicial da curiosidade, consegue, depois, sobreviver sozinha, percorrendo caminhos de descoberta de si, de outrem e do mundo.  A partir de agora, quando falarmos de aventura, saberão que é ontologicamente composta por uma parcela de curiosidade, condição necessária, mas não suficiente da aventura. Saberão também que temos em mente aquilo que Gilles Deleuze disse a Claire Parnet nos Dialogues: «o interessente é o meio, não o início ou o fim». E aquilo que Marcos Foz declara, prolongando a ontologia aberta de Deleuze, ao discorrer sobre os limites de um diário: «e sim, cartografar o futuro, mas entra-se sempre a meio de um caminho.» (Enublado Dizes, p. 44). E, para finalizar com uma inquietação pessoal: a devoção que prestamos à vertigem horizontal.
Mas, no meio das tendências, observadas e catalogadas — seja pela história, sociologia ou psicologia —, há os eletrões livres, os cometas, os foras-da-lei. Recordemo-los para os homenagear, pois foram eles, aventureiros do pensamento vivo, que evitaram a petrificação do mundo. Para René Descartes (injustamente e redutoramente preso na cartilha do racionalismo), como ele próprio declara logo no início do magnífico Discurso do Método: havia chegado a hora de ler «no grande livro do mundo», tornando-se um viajante prolífico. Encontrar exércitos, frequentar homens de diferentes humores e condições, recolher as experiências que pudesse. Descartes aventurou-se no desconhecido porque não lhe bastava o que conhecia, nem o modo como conhecia. É verdade que as viagens não lhe trouxeram nenhuma ideia clara e distinta, mas foi essa aventura intelectual que lhe permitiu, mais tarde, focar-se no conhecimento das capacidades da razão; uma outra forma de aventura.
Para Blaise Pascal, «Nada é tão insuportável para o homem como estar em pleno repouso, sem paixões, sem ocupações, sem divertimentos, sem incumbências.» (Pensées) Mais próximo de nós, Vladimir Jankélévitch em L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux, explica bem o que nos impele, o que o levou à aventura: «Por um lado, o terror do risco desconfortável ameaça a economia das nossas rotinas diárias; por outro, há um desejo louco de profanar um segredo, decifrar o mistério do futuro.» Esta ambivalência inebria. A liberdade vence a determinação, o novo vence o velho, a desconstrução vence a repetição. A conclusão a que podemos chegar é que devemos viver de forma a que haja sempre um pouco de vertigem, de aventura na nossa vida. E também aqui, em primeiro lugar, uma aventura do pensamento, mas um pensamento cheio de mundo. Cheio de caminhos sem Ítacas.
Tudo isto para chegarmos a Friedrich Nietzsche, que só pode ser considerado um ponto de partida. Chegarmos como se chega a um começo. Nietzsche não fechou nada, não fez mais do que distribuir verdades-relâmpago, por isso continua vivo, ao nosso lado, para nos ajudar a interpretar o humano, mas também a experimentar formas de sobre-humano.
Nietzsche viajou sempre pelo corredor central da Europa que liga o Norte (Alemanha) ao Sul (Itália). Naumburg, Bona, Leipzig, Bayreuth (circuito da sua proveniência cultural); Basileia, Lucerna (Tribschen) e a Alta Engadina alpina (sobretudo a adorada Sils‑Maria, no Cantão de Graubünden) na Suíça; Nápoles / Sorrento, Roma, Génova, Veneza, Turim, a Sicília (apenas uma vez), em Itália; Nice em França. No entanto, fez projetos bem mais aventureiros que nunca foram realizados: Paris, Córsega, México, Espanha, Polónia... Por curiosidade e necessidade, viveu uma parcela importante da sua existência imerso em paisagens naturais, percorreu-as e mergulhou o seu corpo, uma «grande razão», no seio desses corpos paisageiros. Caminhante compulsivo, deambulava várias horas por dia nas montanhas da Alta Engadina, ou nas cidades do sul da Europa. Essa disposição refletia também o desejo de romper com o velho estilo lógico-racional da filosofia, inventando uma nova escola peripatética, na qual o pensar seguisse ritmos e tópicos mais próximos de fluxos vitais originários. Durante as suas caminhadas, parava bruscamente, e com o joelho no chão grafitava um ou outro enunciado no caderno de notas.
Nietzsche contribuiu para a reabilitação filosófica do corpo, opondo-se ao «corpo-alienação» de Platão, «corpo-erro» de Descartes e Pascal ou ao «corpo-pecado» do Cristianismo. Com o auxílio de alguns lampejos de outros pensadores (Espinosa, com certeza, talvez um pouco de Rousseau), iniciou a aventura de abandonar o cogito, o solipsismo megalómano da razão, e regressar à Terra, pensando com ela, sobre ela e por ela. Um regresso que, verdade seja dita, ainda não foi totalmente consumado. Encontramos, criamos outras alienações, amamos outras intangibilidades. Vivemos agora mais para produzir e consumir, do que para pensar, sentir e passear. Contemplamos mais facilmente a nossa conta bancária do que uma paisagem. Frequentamos os gabinetes dos psicólogos como antes frequentávamos os confessionários. E quando viajamos vamos ver postais.
É por isso que o ouvimos dizer no «Prefácio» de Humano, Demasiado Humano I, § 4, enquanto discute a doutrina da grande saúde: «é precisamente o sinal de uma grande saúde [grossen Gesundheit], aquele excedente que dá ao espírito livre [freien Geist] o perigoso privilégio de poder viver por tentativas [Versuch] e de se entregar à aventura [Abenteuer]: a prerrogativa da mestria do espírito livre!» (a tradução é nossa, disponível nas Edições 70 no verão de 2025). Este «Prefácio» foi escrito em 1886 e integra a reedição do livro de 1878, início da sua segunda grande linha de aventura, depois dos anos d’O Nascimento da Tragédia (1872), da docência na Universidade de Basileia, da amizade com Richard Wagner e do patrocínio intelectual de Schopenhauer. Virão outras: as de Assim Falou Zaratustra, da Genealogia da Moral, de Ecce Homo. Mas não foi uma aventura de aperfeiçoamento (como queriam Kant ou Montaigne), antes uma traição. Trair-se para experimentar, tentar outra coisa, sem vislumbrar uma meta. Haverá maior princípio de aventura do que este? Uma traição que deve continuar, não faz sentido colocarmos Nietzsche no congelador académico. Cada leitor do filósofo errante deve traí-lo, experimentar plantá-lo, de estaca, noutros solos. A sua obra é um começo, ainda que não se descortinem os alicerces, um impulso, um trampolim, não um fecho ou um fim. Porque, como declara nesse mesmo «Prefácio»: «é o futuro que dá as regras ao nosso presente.» (§ 7)
E se a aventura se medir, como acreditamos, por essa abertura ao que está por vir, incógnita perfeita e poderosa, tomemos novamente as palavras do nosso autor e façamos delas, com o peso de um determinismo que, ainda assim, exige escolha, o nosso lema de vida: «Quem alcançou, mesmo que só num certo grau, a liberdade da razão não pode sentir-se senão um viajante na Terra — uma viagem, contudo, que não tende para uma meta: porque não as há.» (Humano, Demasiado Humano I, § 638).
Aconselhamos apenas, indo de Wilhelm von Humbolt a Robert Musil, passando, naturalmente, por Nietzsche, que assumam «a grande individualidade como força espiritual». Que saibam, assim, manter viva uma relação produtiva com o caos, conjurando-o e aproveitando-o. Vivendo, talvez, como sugerem bons leitores nietzschianos (Joyce, Deleuze e Guattari) num caosmos. Ou, para dar um toque contemporâneo à nossa análise, no work in progress de que fala James Joyce em Finnegans Wake.  

Victor Gonçalves

19/10/2024

Gonçalo M. Tavares, entrevista ao Le Monde

Entrevista de Gonçalo M. Tavares ao jornal Le Monde, publicada no dia 30 de novembro de 2024 (https://www.lemonde.fr/livres/article/2024/11/30/goncalo-m-tavares-ce-qui-m-interesse-est-l-idee-d-ecrire-comme-verbe-intransitif_6421753_3260.html). Tradução de Victor Gonçalves.
Um ângulo hermenêutico que se desvia ligeiramente da nossa oligarquia intelectual.

Com um ouvido atento, escuta as nossas perguntas, depois a interpretação do seu tradutor, Dominique Nédellec. Com gestos rápidos, desenha palavras numa folha de papel — «Bíblia», «Biologia», «Talho» — circunda-as e traça linhas para ligar os termos entre si ou a símbolos obscuros. Ao sairmos do encontro com Gonçalo M. Tavares nos escritórios parisienses da sua editora, Viviane Hamy, lamentámos não ter roubado os esquemas que resumiam a conversa numa espécie de linguagem científica. Mas esse sentimento dissipa-se. Diferentemente do escritor português, filho de uma professora de matemática e de um engenheiro, nós não temos o condão matemático. É melhor ficarmo-nos pelas suas palavras e pelos seus livros, cujo poder evocativo e clareza profunda se assemelham a fábulas que atravessam os séculos.
Ao longo de cerca de vinte anos, este professor de epistemologia da Universidade de Lisboa construiu uma obra prolífica e multifacetada, estruturada em torno de dois ciclos: O Reino, uma exploração do mal no século XX, inaugurada com Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser (2003 e 2004; ed. Viviane Hamy, 2014), e O Bairro, iniciado com O Senhor Valéry e a lógica (2002; reedição de Viviane Hamy, 2008), a que se juntou uma dezena de habitantes — entre os quais O Senhor Brecht e O Senhor Calvino (2004 e 2005; ed. Viviane Hamy, 2009 e 2010). Cansado de constatar, no animado café lisboeta onde trabalha, como «todos pensam da mesma maneira, mesmo em cidades democráticas onde existe liberdade de pensamento», Tavares quis criar uma cidade imaginária habitada por «verdadeiros indivíduos». Em 2021, foram reunidos numa obra de 800 páginas (Le Quartier, editado por Viviane Hamy).

À volta destes dois ciclos romanescos gravitam contos, poesia, teatro e publicações que o antigo estudante de física, desporto e arte não associa a qualquer género literário. «O que me interessa, e Roland Barthes falava muito sobre isso, é a ideia de escrever como verbo intransitivo», confessa. A resposta à pergunta «O que é que escreves?» é uma redução da linguagem. Muitas vezes, agarra-se ao mesmo tempo a um livro científico, um livro de arte ou uma coleção de contos. «Neste momento, leciono “corpo, cultura e pensamento contemporâneo”. Avanço aos saltos e ao acaso, admite. Tenho uma relação perversa com a epistemologia, porque gosto muito da contradição, da ambiguidade. É aí que reside a força do pensamento».
A dos seus livros baseia-se no facto de não buscarem a verdade, mas em «aumentar as interpretações possíveis». É o caso de O Osso do Meio, o seu novo livro, que completa o ciclo de O Reino. Tal como em Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica (2004 e 2007; publicados por Viviane Hamy, 2008 e 2010), encontramos nele um mundo em guerra, habitado por indivíduos rebeldes ou consumidos pela loucura, pelo medo, pela sede de controlo; um exame do mecanismo das suas almas. Escritos há muito tempo, os livros que compõem O Reino foram revisitados pelo autor «de forma infinita» antes da publicação, o que explica a sua dimensão, nomeadamente o último, que passou muitos anos a reduzir. «Queria fazer um livro no osso, explica Gonçalo M. Tavares. Escrever como se tivesse uma faca, como se fosse o talhante a escrever. Como se esses cortes servissem para abrir a pele, para a levantar, para ver o essencial».
No início, Gonçalo M. Tavares não fazia ideia do que significava o “osso do meio”. O que sabe é que, como sempre, este texto nasceu de uma imagem, que acabou por ausente do livro. «Há alguns anos, em Lisboa, ouvi um russo a cantar no metro, recorda. Sem perceber uma palavra de russo, comecei a chorar. Havia uma tristeza incomensurável nas suas canções». Essa tristeza persegue-o no desenvolvimento da cidade de O Osso do Meio. Os ricos vivem nas alturas; os pobres, na cidade baixa. Restam-lhe quatro personagens nos braços: um assassino, uma adúltera, um voyeur e um carniceiro. O traço comum: carregam dentro de si «uma espécie de tristeza inicial».
O escritor está convencido de que nascemos tristes, o choro do bebé que sai do ventre da mãe não tem que ver com o choque do ar nos pulmões. Nascemos tristes e depois esquecemo-nos. «Mas, por vezes, como nas minhas personagens, lembramo-nos», diz. Gonçalo M. Tavares segue-os, curioso com essa «tristeza inicial», sem causa aparente, próxima da malignidade.

Por que razão a personagem Kahnnak mata em O Osso do Meio? Decidir que é por causa da sua origem social ou dos maus-tratos sofridos na infância seria «dizer que ela não é como nós», ignorar que um empregado normal pode, um dia, esfaquear o seu patrão. Pois «trabalhar atrás de uma secretária das 9h00 às 17h00 não nos torna menos instintivos», acrescenta o professor.

Como prova, partilha uma cena estranha observada ao pequeno-almoço num hotel confortável. Muito rapidamente, o pão acabou. «Eram talvez vinte pessoas para três pães», explica, já divertido com a anedota. Quando chegaram mais dois pães, os clientes lançaram-se sobre a comida, ignorando os mais velhos. «É em situações como esta que o ser humano se revela, quando falta o essencial. Não se trata de uma questão de classe social, de força ou de fraqueza. Trata-se de manter uma forma de delicadeza, mesmo em situações extremas. A delicadeza é, sem dúvida, a caraterística humana mais extraordinária». E a mais misteriosa.
«O Osso do Meio reenvia para aquilo que nos resiste, mas...», começa a dizer o romancista. A frase do tradutor fica suspensa. Tavares volta a pegar na caneta e desenha o esquema de um corpo. De seguida, os seus olhos castanhos fitam-nos por detrás dos óculos. Continua. «O Osso do Meio é um pouco o que todos procuramos. É o que nos daria a nossa estabilidade, o que seria também a causa do que nos acontece. Para um freudiano, o osso do meio talvez fosse a infância». Falemos da sua, em Luanda. Nos anos 60, o pai foi chamado a Angola, então colónia portuguesa, para construir uma ponte. Tem «memórias orgânicas» do país que deixou com a família aos 5 anos. Tavares recusou dois convites do governo angolano por discordar da sua política. «Agora penso em voltar, confidencia. Vai ser um regresso emotivo e acredito que vou chorar muito». As lágrimas sufocam-lhe a voz. Fala das imagens que os pais lhe transmitiram, dele, muito jovem, dançando. «Há qualquer coisa de não-racional em Angola», acrescenta. Algo que toca o autor, que se interessa pela «parte não burguesa do cérebro, essa que não se senta num sofá. A parte que anda, salta e às vezes cai». A parte imprevisível.
Habitualmente, Gonçalo M. Tavares não fala da sua família, diz, mas faz questão de nos contar, para terminar, como o seu pai, nascido em Portugal no seio de uma família muito pobre, pôde prosseguir os estudos graças à insistência dos seus professores. Sem eles, ele próprio não teria começado a escrever, aos 14 anos, na «enorme biblioteca» do pai. Sem este «momento decisivo», tema preponderante na sua obra, as suas filhas, que estudam matemática no Reino Unido, nunca teriam dado «esse salto».

Crítica a O Osso do Meio (L’Os du milieu, trad. francesa Dominique Nédellec, ed. Viviane Hamy, 160 p., 19 €).

Quatro personagens — Kahnnak, Maria Llurbai, Albert Mulder e Vassliss Rânia — e Klaus Klump, que faz uma aparição, vivem numa cidade nunca nomeada, assolada pela guerra e pela fome. Um deles é um assassino; o outro uma adúltera, «demasiado bela» e sem dúvida amaldiçoada; Albert é um médico que observa secretamente os seus jovens pacientes; o último é um talhante. Enquanto percorrem a cidade, o romance atravessa as suas biografias, disseca os seus pensamentos, ausculta as suas pulsões e instintos.
Porque é que matamos? Como é que resistimos às nossas piores inclinações? Qual é o custo da sobrevivência? O Osso do Meio sobrepõe esta escala humana à da cidade, observada como um organismo vivo. Na parte superior, os nobres bridam com champanhe; na parte inferior, os pobres vivem de restos.
Vinte anos após a publicação em Portugal de Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser, Gonçalo M. Tavares encerra o ciclo de O Reino com O Osso do Meio. Num estilo depurado, o autor desenha, com a precisão de um biólogo, o funcionamento de uma sociedade ordenada, minada pela guerra.
Mas a ciência não sabe tudo — pelo menos, ainda não. Não explica porque é que esta música, difundida nos cafés, entristece tanto as personagens, o que é que ela reaviva nelas. Este mistério essencial leva o autor a escrever — e nós a lê-lo, sempre com a mesma intensidade.

Um excerto em francês

«Kahnnak à présent se souvient, vaguement, d’avoir lu un récit de voyage dans un pays pauvre, en d’autres temps : le mendiant loqueteux s’approchant du visiteur qui écrit ; il boite, ce mendiant, il marche comme mû par une audace terrible, un courage musculaire, il se traîne, tend sa main décharnée et dit : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose !”
“Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” ; voilà la phrase qui définit les hommes, leur essence, ce qui reste une fois qu’on a tout retiré, ce qui reste de ce qui est instinctivement humain, jusqu’au dernier moment, une fois que toutes les couches sont tombées – les phrases et les gestes élégants –, quand la faim surgit et que la survie devient la seule urgence des hommes qui, dès que le premier danger se manifeste, oublient leurs belles intentions : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” (…). » p. 26

Podcast Café Filosófico sobre a pós-verdade

Texto de divulgação: «No próximo café filosófico, discutiremos o problema da verdade. É um problema porque não é evidente que a verdade exista, o seu valor não é unívoco e, entre outras coisas, parece ter perdido o poder de cativar.

Recordaremos as críticas de Platão aos sofistas: um idealismo fundamentado na ideia de verdade — ainda que apenas acessível para alguns — contra o relativismo e a eloquência de um pragmatismo sofístico avant la lettre. Passaremos por Nietzsche e o seu perspetivismo, orientado por um desejo de veracidade que relativiza a verdade universal, incluindo a verdade científica. Continuaremos com os jogos de verdade e a parrésia — retomada dos cínicos gregos e de Sócrates — de Michel Foucault. Terminaremos com Claudine Tiercelin, uma filósofa francesa a meio caminho entre a filosofia continente e a filosofia analítica, e o seu último livro La Post-vérité, ou le dégoût du vrai (A Pós-verdade, ou o nojo do verdadeiro).
Nesse trabalho, Tiercelin apresenta algumas razões pelas quais muitos, atualmente, sentam repulsa pelo verdadeiro e indiferença pela verdade. Preferimos, diz a autora, acomodar a realidade (que é mais do que um conjunto de factos objetivos acessíveis individualmente) às nossas crenças, em vez do contrário. Por isso, negamos ou desvalorizamos a ciência, preferimos factos alternativos, consumimos fake news, tememos o que é sério, tornamo-nos impostores ou vítimas de imposturas. Em muitos aspetos, o mundo da pós-verdade difere do mundo orwelliano, mas, em ambos, rompe-se com as relações entre linguagem e realidade.
Para regressarmos ao reino da verdade, devemos, então, aceitar que há valores éticos nos valores epistémicos. Devemos reconhecer a importância de cultivarmos as virtudes epistémicas e, com Bertrand Russell, a necessidade de basear a política na verdade. Reanimar uma vontade de metafísica para esclarecer o sentido de realidade e enfraquecer o poder dos factos alternativos.»

Caminhar na floresta

Pombares, trás-os-montes, 2 de novembro de 2024

Caminhar. Imaginar uma República dos Viventes. Ter a noção e a coragem de nos sacrificarmos para nos igualarmos a um carvalho. Não basta abraça-lo. Muito menos cortá-lo e, depois, elogiar as brasas portentosas da lareira. É preciso respeitá-lo, como se respeita o vizinho da frente de quem gostamos. Ser um transfuga de espécie. Superar o humanismo, um dos poucos «ismos» imune à razão crítica, kantiana e pós-kantiana. Ninguém se preocupa com o seu grau de impostura.
«Obedece aos sentidos», dizia Feuerbach. Mais atual do que a atualidade, após um século e meio a venderem-nos a ideia de um progresso imparável. Há até quem se diga, sem qualquer sombra de dúvida, «progressista». Mais atual, dizia, do que a «exaltação do banal». Democratizar por baixo.
Numa floresta, depois da adaptação à potência da vida, experimenta-se uma vertigem horizontal. Sem esperança, sem receio. Um instante prolífico, mais vibrante do que perfurante. Um clarão, sim, mas um clarão lento.
A biodiversidade é quase só um conceito. «Meninos, vamos falar de biodiversidade». Como se fala da descoberta do fogo. Sabemos, desde sempre, que «Não é meia noite quem quer», mas por que razão amar os outros seres vivos como nos amamos ao espelho, aos espelhos, deve ser algo demasiado grande para nós?
Estamos obcecados pela economia da atenção: business, com certeza. Mas também uma forma de escapar ao apocalipse do vazio (À Espera de Godot). Em ambos os casos: «preparar-se para futuro nenhum».
Caminhar numa floresta, sem esperar alcançar uma clareira, ter a certeza de que o finito contém o infinito. Os anjos não descem do céu, emergem da Terra.
Esqueçamos a ode ao homem de Sófocles. Levemos às últimas consequências o evangelho negativo de Bartleby («I would prefer not to»). Como uma folha no outono, que, após o esplendor cromático, se transforma em estrume que fecunda a Terra.
E nós, dia após dia, a boxear no vazio. Como o guarda noturno do museu que desconhece o valor da coleção que vigia.
Os adolescentes, preocupados com o power dressing. Os adultos, viciados na economia do lamento. Pedro Mexia, interessado «pelo mergulho em si mesmo». Eu, a querer apagar o «mesmo». Polícia de pleonasmos.
Fernando Pessoa, a indisciplinar as almas. Marc Augé, a mapear «não-lugares». Derrida, que jogava ténis para se equilibrar no patamar social ao qual a sua filosofia poética o catapultou, definindo, com milhares de palavras, a sua «mythologie blanche». Eu, a admirar os franceses por resistiram à a(c)tualização da escrita. A imaginar, com Derrida a espreitar com cima do meu ombro, uma forma de escrever que não se relacionasse com a oralidade. Uma escrita que fosse o que era, e não o que significasse.
Eu a caminhar na floresta, cada vez mais fundo, cada vez mais pleno, cada vez menos eu. Como o mundo de um homem feliz é diferente do de um infeliz, escreveu o infeliz Wittgenstein.

Café Filosófico: Para lá do bem e do mal, o prazer

Texto de apresentação do Café Filosófico, na livraria Snob, em Lisboa, sobre o prazer na moral: «Podemos observar o mundo para conhecermos as coisas, ou podemos olhá-lo para compreendermos o valor das coisas. À primeira vista, parece ser mais uma escolha entre tantas, cujo resultado acabará por ser subsumido, talvez diluído, nos grandes eixos da vida. No entanto, avaliar define, em grande medida, a nossa maneira de viver e a forma como nos confrontamos com a realidade, que é, desde sempre, polimórfica. Por isso, a filosofia deve questionar radicalmente a moral, muito mais do que a verdade (que, aliás, também faz parte da moral, visto que a valorizamos mais do que a mentira).
Os textos mais importantes de Nietzsche sobre a moral encontram-se em Aurora (1881), Para Lá Bem e Mal (1886) e Para a Genealogia da Moral (1887). Neste Café Filosófico, abordaremos algumas das principais teses que esses textos contêm. Contudo, pretendemos sobretudo discutir o que Nietzsche escreve em Humano, Demasiado Humano I (1878) sobre a relação íntima entre moral e prazer, declarando, no fundo, que o bem é aquilo que traz prazer.
«O prazer a moral. — Um tipo importante de prazer [Lust] e, por conseguinte, fonte da moralidade, provém do hábito. Faz-se mais facilmente e com melhor perfeição aquilo a que se está habituado, portanto com mais vontade, sente-se prazer em fazê-lo e sabe-se, pela experiência, que o habitual provou o seu valor e, por isso, é útil; um costume que permite uma vida bem-sucedida provou ser salutar e benéfico, em contraste com todas as novas tentativas ainda não testadas. O costume, portanto, une o agradável ao útil; além de dispensar reflexão. Assim que o homem adquire poder para exercer a coação, fá-lo para impor e disseminar os seus costumes, pois para ele são uma sabedoria de vida já testada e comprovada.» (§ 97 de Humano, Demasiado Humano I).
A partir deste excerto podemos vislumbrar o conteúdo e a tonalidade do próximo Café Filosófico.»