25 de Abril Sempre! 1ª parte

Estivemos na Avenida da Liberdade, ritual de atualização da nossa Revolução. Havia mais gente, ou melhor, mais cidadãos, do que em anos anteriores. Mais em número e em convicção. Caramba, o 25 de Abril foi maior do que alguma vez imaginamos. Maior porque atualizou, sem grandes níveis de violência e de revanchismo, uma mudança de regime político-social, maior porque nunca confundiu a revolução com os revolucionários. Foi, à falta de melhor termo, uma revolução civilizada (continua a sê-lo, bastou ver todas as lojas de luxo abertas ao longo da Avenida, como se nada fosse). Se os seus ideais são a priori, se existem de forma autotranscendente, tiveram, contudo, de ser materializados. É aqui que muitas vezes, por exemplo na Revolução Francesa, tudo se precipita para o abismo do terror, porque se liberta a vingança acumulada numa enorme economia do ressentimento. No nosso caso, a Revolução foi conduzida por ser humanos calmos, com sentido do relativo e do finito, não impuseram uma redenção, antes projetaram um futuro radioso e bondoso, longe, bem longe, do passado e do presente. É por isto que devia ser, simultaneamente, um ritual de atualização (continuação) e de iniciação. Vincando que ninguém é dono do 25 de Abril, somos nós que lhe pertencemos. Pertencemos-lhe, mas sem nós não se cumpre. Portanto, quando se afirma que «falta cumprir Abril», queremos dizer que nós, cada um de nós, ainda não o cumpriu, nos gestos e ações de cada dia.

Faltará, então, o povo (como gostava de repetir Gilles Deleuze)? Um povo que mereça esta Revolução? Sim e não. Sim porque se nota cada vez mais que uma franja significativa da população portuguesa não vai, ou já não vai, ao 25 de Abril. Eu e Tatiana Faia comentávamos que a manifestação era da burguesia, média burguesia (desculpem-me a categorização apressada), a que mais facilmente se revê nos ideais da liberdade e da igualdade, a que reconhece as vantagens de uma sociedade cosmopolita, a que lê e reflete, sabendo, por isso, que a omnipotência messiânica só quer dizer brutalidade e miséria, a que não se deixa facilmente embriagar com promessas de ordem e progresso guinando em direção ao passado. Sim porque, em concreto, não esteve nem a alta burguesia (sem surpresas), nem o proletariado (continuo a simplificar as categorizações sociais). Este último deixou-se alienar pelo canto das sereias desafinadas da direita populista, que lhe prometem, literalmente, este e o outro mundo, uma união mística. Quanto à alta burguesia, ela vive no céu, quer lá saber dos problemas humanos. Por outro lado, não falta o povo. Esteve na manifestação quem devia estar, um povo que representa o que de melhor foi possível fazer com a massa humana, com um aglomerado de forças tanto inventivas, cooperativas e construtivas, quanto destrutivas. Um povo a que tenho a sorte (e trata-se mesmo disto) de pertencer.

Mas esses que faltam são um sintoma do enfraquecimento do sopro democrático, desta vez faltaram não por indiferença, mas por repulsa. Não será tanto porque lhe querem substituí-la pelo 25 de Novembro, as duas datas são compatíveis, devem, aliás, ser tomadas como irmãs que se complementaram para construírem a nossa democracia parlamentar. Os que agora combatem o 25 de Abril são, antes, os verdadeiros reacionários, nacionalistas primários que apostam tudo numa velhíssima luta de raças, produto da dialética sem saída do «nós» contra «eles», «puros» contra «impuros». Mas esses que se julgam únicos nada mais fazem do que cavalgar a onda antidemocrática que agora percorre o mundo, sobretudo a Europa, Continente onde a democracia estava, está, mais consolidada. Se tomarmos O Choque das Civilizações de Samuel Huntington como referência, revemos aqui o princípio da ação-reação: uma onda democrática tardia que começou, justamente, no 25 de Abril, seguindo-se a Grécia e a Espanha, passando depois para a América Latina e a Europa de Leste, substituindo regimes autoritários por democracias representativas; uma onda reacionária, antidemocrática, com claras tendências autoritárias, iniciada em França há cerca de vinte anos, depois Itália, Áustria, alguns ex-países de Leste, Países Baixos, Suécia, Alemanha, Espanha e, entre outros, Portugal (com uma aceleração incrível).

Não pretendo ver nisto uma qualquer variação do materialismo histórico, sou muito pouco historicista. Parece tudo simultaneamente mais simples e mais complexo. Por um lado, como aconteceu nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, um cansaço relativamente ao statu quo político, do regime e dos políticos que o incarnam, dispostos a quase tudo para manterem os privilégios, fazendo da política um emprego sem termo fixo. Por outro, uma má gestão de expetativas, exigindo demasiado à democracia, querendo que ela roce a perfeição, no sentido de dissolver todas as disfunções e antagonismos. Oscila-se, pois, entre «antes a barbárie do que o tédio do mesmo» e o «estamos muito longe de o melhor dos mundos possíveis». Lassidão (o cansaço pessoano) e euforia reivindicativa. Quase ao mesmo tempo, na brecha que se abriu, a esquerda abandonou a questão da identidade à direita, deu-lhe de mão beijada os campos nos quais se prolongam as narrações sociopolíticas e míticas do Estado-Nação, mas também a simbologia, principalmente iconográfica. Bastante do que define horizontes de sentido, emoldurando-os com uma esperança incondicional (modus operandi do populismo).

Afastemos, porém, o fatalismo. Podemos mitigar a embriaguez de fantasias oferecidas, sem esforço, pelos antidemocráticos. Mostrando, demonstrando que a omnipotência, a pureza étnica e a riqueza abundante não passam de slogans retirados de uma cartilha que tem tanto de antiga quanto de funesta, uma distopia revisitada. Regressando, também, ao espírito conciliador e utópico dos pais revolucionários, em vez de cair na tentação de exacerbar antagonismos, os sectarismos estão mais do que testados, nada de bom proveio deles. Lançar uma onda de veracidade, honestidade, respeito e solidariedade. Um antídoto contra a vociferação dos pequenos esbirros ungidos pela miséria moral. Devemos projetar um futuro mais do que mitificar o passado. Mesmo que o mundo pareça dobrar-se sobre si e não arrastar-se obstinadamente para a frente. Mas são dobras em espiral, um eterno retorno que seleciona, capaz de edificar uma ética, um ethos no qual cada vida só valha tanto quanto outra vida, nunca mais, nunca mais.

25 de Abril sempre!

Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades

Peter Sloterdijk, lição inaugural no collège de france, 4 de abril de 2024

Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.

Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).

«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.

II

Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).

Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.

Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.

Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.

O inferno (não) são os outros

René Descartes foi um revolucionário, retirou a Deus (isto é, ao ecossistema religioso que dominada os costumes, a política e a ciência) o critério da verdade e colocou-a no ser humano (não foi assim tão linear, e Deus, mas um Deus de razão mais do que de paixão, continuou a desempenhar um papel importante na inteligibilidade do mundo). Com ele, o ponto de partida de toda a verdade possível passou a ser, como sabemos, o cogito. O ego cogito, centro da subjetividade transcendental, transformou-se, nas palavras de Edmund Husserl, no «terreno último e apoditicamente certo de juízos, no qual toda e qualquer filosofia radical deve ser fundamentada».[1] E o juízo apodítico fundador remetia para a identidade do sujeito, o célebre cogito ergo sum, se penso existo enquanto este ser pensante, que pode, é verdade, assemelhar-se a outros seres pensantes, mas a primeira evidência é a deste eu pensante, identidade autogerada e autocertificada.

Não será Immanuel Kant a revogar radicalmente a centralidade do ego, embora o configure em três faculdades (prática — moral —, estética e pura — entendimento), que estão aquém e além do sujeito histórico e, num certo sentido, novidade relativamente a Descartes, da própria humanidade (somente uma espécie racional entre outras possíveis). Temos de esperar por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (parcialmente contemporâneo de Kant) para que a verdade (agora mais dependente da racionalidade história do que da do indivíduo) e a identidade se definam a partir de novas condições de possibilidade.

Interessa-me aqui falar sobretudo da identidade, é a partir dela que veremos se o inferno são, ou não, os outros. E com Hegel abre-se, de facto, a possibilidade de o inferno estar noutrem. É bastante conhecida a dialética do «senhor e do escravo» (ou «servo»), ela resume todo um pensamento que explicitamente, e talvez pela primeira vez, coloca outrem na construção da subjetividade. A consciência deixa de ser a consciência de si, como no cogito cartesiano, ela só é autoevidente pelo reconhecimento de outrem, só ele me permite reconhecer-me. Como senhor ou como escravo, embora este processo de subjetivação seja um pouco mais complexo do que isto, porque uma certa liberdade, dentro do fatalismo histórico, mantém aberta a possibilidade de recusar ou modificar a forma como me reconhecem.

Seja como for, esta inter-relação eu-outrem como centro do processo de subjetivação foi uma das ideias mais férteis da modernidade. A sociologia, a psicologia, a psicanálise, a filosofia, a antropologia… não seriam, em grande parte, as mesmas sem ela. Na filosofia temos, por exemplo, Michel Foucault (pouco hegeliano, diga-se), a pensar o poder como relações de poder, a ação que uns têm sobre as ações dos outros. Mais do que os modelos jurídicos ou institucionais do poder, sempre dominados pela ideia de Estado, Foucault mostra (sobretudo em ensaios curtos ou entrevistas das décadas de 1970 e 1980, muito menos em Vigiar e Punir ou no curso do Collège de France sobre biopolítica) como o poder emerge, numa ontologia da aparição e desaparição, das relações eu-outrem. E se é verdade que há, e deve haver, instituições, elas são mais o resultado das micro-relações de poder do que a sua causa. Noutros termos, as instituições adequam-se às relações de poder que estabelecemos diariamente uns com os outros. É por isso que a democracia, diz ele, não pode emergir em qualquer lado, nem a democracia nem o fascismo.[2] Nessas relações, para que o múltiplo prevaleça sobre o uno, haverá sempre liberdade e resistência (sem isto serão relações de domínio), sendo, pois, mais agonísticas do que antagónicas.

No seguimento da dialética hegeliana (sem vos poder assegurar que as influências são diretas), Michel Tournier, em Vendredi ou les Limbes du Pacifique[3], mostra-nos como sem alteridade não se pode afirmar a identidade (Crusoe não era antes de aparecer Sexta-Feira). Mas talvez tenha sido Jean-Paul Sartre um dos melhores continuadores de Hegel. Para este filósofo francês, quando somos olhados por outrem, ficamos, aparentemente, sem defesas relativamente a «uma liberdade que não é a [nossa] liberdade. É neste sentido que podemos considerar-nos como “escravos”, na medida em que aparecemos a outrem»[4]. Isto leva Sartre a assegurar que a existência do outro coloca, de facto, um limite à minha liberdade. Dirá em Huis Clos (1943/44): «O inferno são os outros». Mas isso não anula a liberdade, podemos escolher como viver o «inferno», mesmo se «o pecado originário é o meu surgimento num mundo onde há o outro»[5].

Uns dias atrás, numa crónica de Michel Eltchaninoff para o Le Magazine Littéraire, encontrei um magnífico prolongamento da discussão sobre se o inferno são, ou não, os outros. Numa carta da década de 1930, Maurice Merleau-Ponty, autor da Fenomenologia da Percepção e amigo de Sartre, dá uma lição de engate (termo da época, cá e lá) a este último. Escreve o seguinte, no seguimento de um avanço erótico mal sucedido de Sartre em direção a uma tal de «C» : «Não és nenhum Apolo, tu próprio o dizes, mas és cativante, enérgico e engraçado (mesmo quando imitas o pato Donald). Podias conquistá-los a todos. Já agora, sabes que a Castora [Simone de Beauvoir] te preferiu a mim — parece que me achou demasiado simpático. Mas a tua filosofia de sedução está errada. Estás obcecado com o olhar e a posse do outro, o que sabes ser impossível. Colocas-te num confronto agonístico: gostas dela, cabe-te a ti conquistá-la. Ou o contrário. Acredita, ela compreende-o perfeitamente. Ou cede, mas ficará sempre ressentida com a tua vitória, ou... foge.»

O que fazer então, para que ela não fuja? Resumo: anula-se o sujeito (seria Sartre capaz de tal?) e desenha-se um mundo no qual outrem, neste caso a «C», queira viver, não apenas queira, mas sinta que não pode viver noutro sítio que não naquele, se desejar ser feliz. Um mundo de coisas encarnadas (a «chair» de Merleau-Ponty), embora sem qualquer privilégio para as pessoas. Parece fácil. Mas requer imaginação e, sobretudo, a mitigação do eu, modéstia em vez de bazófia. O que seria um grande desvio ao cogito ergo sum, que conduz sempre ao imperativo do eu (mais ou menos inchado, no caso de Sartre estaria no limiar da explosão), e, principalmente, a inversão direta de «O inferno são os outros». É, aliás, assim que Merleau-Ponty termina a carta: «O inferno não são os outros».

Uma carta como prolegómenos de uma nova teoria da dialética senhor/escravo.

[1] Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, trad. Pedro Alves, Lisboa: Edições 70, p. 29.
[2] Ver «L’intellectuel et les pouvoirs», in Dits et Écrits II, 1976-1988, Paris: Gallimard/Quarto, p. 1570, 2001 [1984].
[3] Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico, trad. Fernanda Botelho, Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
[4] O Ser e o Nada, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 346.
[5] Idem, p. 500.

A República do Silêncio, Jean-Paul Sartre

Depois da libertação da França no pós-Guerra, a 9 de setembro de 1944, Sartre escreve um manifesto sobre a liberdade num diário criado em 1941, Lettres françaises, que viria a ser um instrumento importante do Partido Comunista Francês. Sartre publicara o seu enorme e brilhante L’Être et le néant (O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica) em 1943, no qual se confrontou, e nos confrontou, com a condição humana despida de qualquer comiseração humanista, uma descrição fria e precisa sobre a nossa condenação à liberdade (apesar das situações), a má-fé que usamos para evitarmos a responsabilidade insuportável que isso transporta, o inferno estar nos outros (com uma formulação diferente), o homem ser uma paixão inútil, uma dialética sem síntese entre o em si e o para si, uma autenticidade feita de fingimento… (podem ler o prefácio que escrevi para a segunda tradução em português, aqui).

Um ano depois, já não se trata de pensar a nossa condenação à liberdade (necessidade esvaziada de quase todo o valor, um amor fati sem o sobre-homem nietzschiano), mas de descobrir a liberdade mais pura onde julgávamos ser impossível encontrá-la, ou, no máximo, apanhar dela aí apenas alguns frágeis farrapos. Segue-se a minha tradução de «La République du Silence».

«Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos, em primeiro lugar o direito à palavra; éramos insultados na cara todos os dias e tínhamos de nos calar; éramos deportados em massa, como operários, como judeus, como prisioneiros políticos; por todo o lado, nas paredes, nos jornais, no ecrã, víamos a face imunda que os nossos opressores nos queriam dar de nós próprios: por causa de tudo isto, éramos livres. Como o veneno nazi se infiltrava até aos nossos pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; como uma polícia todo-poderosa procurava constranger-nos ao silêncio, cada palavra tornava-se tão preciosa como uma declaração de princípio; como éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso de um compromisso [engagement].

As circunstâncias muitas vezes atrozes da nossa luta permitiram-nos finalmente viver, sem farol e sem vela, essa situação dilacerante, insuportável a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro, a morte sobretudo, que são habilmente mascarados nos momentos felizes, eram para nós os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendemos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas exteriores: tivemos de os ver como a nossa sorte, o nosso destino, a fonte profunda da nossa realidade de seres humanos; a cada segundo vivíamos na sua plenitude o significado desta pequena frase banal: «Todos os homens são mortais». E a escolha que cada um fazia de si era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre ter-se exprimido sob a forma: «Antes a morte do que...». E não falo aqui da elite que foram os verdadeiros resistentes, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não. A própria crueldade do inimigo levou-nos aos limites da nossa condição ao constranger-nos a colocar a nós próprios as questões que evitamos em paz: todos aqueles de nós — e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? — que conheciam alguns pormenores interessantes sobre a Resistência, perguntavam-se angustiadamente: «Se me torturarem, resistirei?»

Assim, levantava-se a própria questão da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si. Porque o segredo de um homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, o seu poder de resistir aos suplícios e à morte. Para aqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da sua luta traziam uma experiência nova: não combatiam em pleno dia, como os soldados; perseguidos na solidão, presos na solidão, resistiram aos suplícios no abandono, na miséria mais completa: sozinhos e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados e bem vestidos, que gozavam com a sua carne miserável e cuja consciência satisfeita e poder social desmedido lhes davam toda a aparência de terem razão. No entanto, no fundo desta solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; bastava uma palavra para provocar dez, cem detenções. Esta responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvelamento da nossa liberdade?

Esta negligência, esta solidão, este risco enorme era igual para todos, dirigentes e homens; para aqueles que levavam mensagens cujo conteúdo desconheciam, como para aqueles que decidiam sobre toda a Resistência, havia uma única pena: a prisão, a deportação, a morte. Não há exército no mundo no qual haja uma tal igualdade de riscos para o soldado e para o generalíssimo. E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado e para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta na disciplina.

Assim, na sombra e no sangue, constitui-se a mais forte das Repúblicas. Cada um dos seus cidadãos sabia que devia isso a todos e que só podia contar consigo próprio; cada um deles cumpriu, na mais completa negligência, o seu papel histórico. Cada um deles comprometeu-se, contra os opressores, a ser ele próprio, irremediavelmente e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolheu a liberdade de todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, teve de ser conquistada e afirmada por cada francês em cada momento contra o nazismo.

Eis-nos agora à beira de outra república: podemos esperar que ela conserve, em plena luz do dia, as virtudes austeras da República do Silêncio e da Noite

Livrarias ou Bibliotecas?

Eu (é um outro), durante um café filosófico na livraria Snob

Ontem, encontrei um apontamento que guardei da revista Philosophie magazine, creio que pertence a um dos cronistas residentes, mas não tenho a certeza (as web-pesquisas foram infrutíferas). Costumo revisitar as ideias que me vão marcando, sei que sou o resultado, dentro e fora da minha memória, daquilo que elas compuseram na rede psicobiológica que ampara as linhas de inteligibilidade. Muitas, em modo de corsário ingénuo, recuperei-as de mentes muito mais avisadas, como a de Nietzsche, do que eu. Notas pausadas ou fulgurantes, profundas ou superficiais, complexas ou simples, únicas ou sujeitas a um ecossistema discursivo, verbais ou imagéticas, também os sons, a música que, para Schopenhauer e outros, revela, não sem perigo, o âmago do mundo. Tudo isto forma a minha biblioteca de sentidos, um arquivo que vai orientando uma cosmovisão (nunca fixa), várias motivações, por vezes contraditórias, e também alguns imperativos. Um solo que não evita, e até alimenta, uma certa imperfeição grosseira, e por isso me projeta para o futuro em modo, nem sempre inteligente, de autossuperação. Posso dizer que me vou tornando «naquilo que sou» (percebi finalmente esta sentença nietzschiana), sem esperança, nem receio (oh, os meus amigos estoicos! Lamento todos os dias que não tenham derrotado à nascença o cristianismo).

Por tudo isto, mas não apenas por isto, há muito que me apaixonei por bibliotecas e livrarias, são os meus templos de ascese. Da biblioteca da Gulbenkian numa cidade bafienta de Trás-os-Montes à da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Da livraria Buchholz à Snob, passando pela FNAC do Chiado. Conheço poucas no estrangeiro, apesar de ter viajado bastante. Talvez signifique que o fetiche se fica pelos livros, os livros que posso ler (em diferentes línguas, é verdade, mas sobretudo em português, é esta a minha língua preferida (uma escolha?), apesar de ser capaz de pensar em francês, castelhano e quase em inglês e alemão). Não é, pois, o esplendor do local, mas os livros o que mais me interessa. E muitos, cada vez mais, são em grande parte projetos de leitura, não há tempo para tantas conversas impressas, conversas que fazem vibrar membranas da alma, não levo livros que ambicionem menos. Mas nenhum fica por folhear até encontrar uma página, um capítulo capaz de incendiar a razão, e quase nunca deixo de pegar fogo.

Vejamos o que anotei (sem autor, um descuido que não é comum) sobre a diferença entre livrarias e bibliotecas: «gosto mais das livrarias do que das bibliotecas. As livrarias obrigam-nos a confrontarmo-nos com tudo o que devemos ler, enquanto as bibliotecas nos convidam a ler tudo o que queremos ler. Umas sentam os corpos debaixo de candeeiros de secretária como manjedouras de cultura, outras abrem horizontes e põem em movimento. Se a livraria é essencial, não é apenas pelas coisas essenciais que vende, é porque aí se encontra o que não se estava à procura. E, por vezes, encontra-se porque alguém, um livreiro por exemplo, tal como eu tento fazer ao partilhar convosco as minhas leituras na revista Philosophie magazine, vos diz: “Toma, devias ler isto, deve interessar-te, agradar-te...”. Se as livrarias são essenciais, é porque, tal como o sentido de beleza de Kant, tornam os livros universalmente comunicáveis.»