Fermentações

Trincar as romãs abertas

tocadas pelo orvalho –

manhã de Outubro.

 

Antes do longo sono

as folhas aproveitam

o último Sol.

 

Terão também emigrado

as rãs do poço? –

verde silêncio.

 

São agora os únicos

moradores do poço –

peixes cor-de-laranja.

 

Quem terá à noite

deixado diamantes

sobre as couves?

 

Florescem agora

as flores de alecrim –

folhas caídas.

 

Sobre o verde musgo

brilha o sol –

manhã de Primavera?

 

Pedra sobre pedra

sonho sobre sonho –

a universal queda.

 

Como flores abertas

as romãs

ao sol orvalhado.

 

Ignorando a roupa estendida

a borboleta

chega ao alecrim.

 

Vinda das pequenas mãos

a primeira oferta

é uma flor de alecrim.

 

Onde foram as montanhas

que vi

ao amanhecer?

 

As montanhas que vi

ao amanhecer

onde agora?

 

A mimosa secou

chegou à rocha

ou à hora.

 

As uvas esperaram

a chegada de longe

agora secam na videira.

 

Na pipa de castanho

o vinho novo

aos poucos adormece.

 

No pipo de castanho

o vinho novo –

não tardam as castanhas.

 

No dedo queimado

pulsa a lembrança

do pequeno descuido.

 

Ao lado da vinha nova

a minha nova vida

e eu.

 

Para uma próxima volta

seca ao sol

a dorna.

 

Canta o galo –

há horas

as carícias da bebé.

 

Pequenino toque na couve –

gotas de orvalho

como estrelas dançarinas.

 

Lenha queimada

no ar da vila –

anoitecer de Outono.

 

Acordam as lareiras

da vila –

manhã de Outono.

 

Ainda à sombra

da videira

uvas e moscas.

 

Não cheguei a tempo

das amoras –

vinho na barrica.

 

Túmulo de pedra

quebrado

pelo arcaico progresso.

 

Como a juventude

é agora o mosto

apenas uma memória.

 

Cães à solta

nas ruas da vila –

liberdade ou abandono.

 

Lava-se a pipa

à sombra

do fantasma do negrilho.

 

Onde ficou a juventude

da vizinha

que vem das compras?

 

Na mão da bebé

o trevo

tem outra sorte.

 

No colo da avó

prova o mundo

a bebé jardineira.

 

No monte

vestígios da infância

cobertos de musgo.

 

Enquanto componho um haiku

o velho carteiro

lavra um olival.

 

À beira deste lago temporário

o silencioso eco

de quem me acompanhou.

 

Quanto muito

seremos ecos

uma pegada ilegível.

 

Na companhia das moscas

e do silêncio

despeço-me deste Sol.

 

Em cima desta fraga

volto a ser

inteiro.

 

Antes do longo inverno

uma última visita

da primavera.

 

São estas as ondas

que procuro

nos estrangeiros mares?

 

Torre de Dona Chama

 

Uma a uma

acordam as chaminés

da aldeia.

 

No monte

retalho dourado –

manhã de Outono.

 

Ao meu colo

dorme a bebé –

alguém corta lenha.

 

Folhas caiem

cabelos empalidecem

dorme e cresce a bebé.

 

Lenha cortada

bebé acordada –

Sol de meio-dia.

 

Sobre o livro do mestre

a chupeta

aguarda o despertar.

 

A carrinha do pão

chegou –

aldeia reunida.

 

À sombra da figueira

o avô

colhe cogumelos.

 

Pergunta-me o nome

dos dióspiros

ainda verdes.

 

Antes que o orvalho

evapore

lavo os olhos.

 

Dorme ainda a aldeia

ou manhã quente –

chaminés sem fumo.

 

Preferes o ruim?

“Não! Gosto de dar

O melhor aos outros.”

 

Nas couves orvalhadas

o Sol da manhã –

memórias e nostalgia.

 

“Ao descer deste caminho

sente-se a brisa

como no mar.”

 

“Valha-me deus”

grita a beata –

será penico entornado?

 

Contra o vidro da janela

a vespa asiática

dá uma cabeçada.

 

Folhas amarelas

e roupa estendida –

Sol de Outono.

 

Numa ilusão de infinito

fundem-se três cores –

anoitecer de outono.

 

Rodeado de crucifixos

hoje neste quarto

durmo sozinho.

 

Cidões

 

Dissipa-se aos poucos

a neblina –

dia de meditação.

 

Em breve secarão

estas malaguetas

à lareira.

 

Como um marmelo maduro

a bebé ao colo –

tarde de Outono.

 

No tanque da roupa

o cheiro a sabão

lava-me os cabelos brancos.

 

Torre de Dona Chama

 

Outubro 2024

Alva e Komorebi

 

Subitamente

te tornas

em dor e eternidade.

 

Orvalho em folhas

de salgueiro –

a morte dos poetas.

 

Também morre

quem escreve

haikus.

 

À distância do prato

e do copo

o mar e a infância.

 

Ouço um pica-pau

a neve escorre

enfim chegaste.

 

Como o que parte

Alva chega

com a Primavera.

 

Só na ilusão

se tem espaço

para a eternidade.

 

Hepáticas emergem

do húmus –

afinal Primavera.

 

Revela-se finalmente

o húmus –

outono novamente?

 

Estrangeiras como eu

reconheço no seu canto

o meu berço.

 

Saí para escrever

ao sol –

logo escureceu.

 

Ainda onde ficou

a pinha

que não vi cair.

 

De mão dada

crescem juntos

a idade e a solidão.

 

Quantas mais linhas

na cara

menos os sorrisos.

 

Ao sol espero

números redondos –

antes virá o verão.

 

Neste mundo barulhento

serei eu invisível

se me mantiver em silêncio?

 

Que mãos terão

transplantado

as flores deste jardim?

 

Debaixo de uma árvore nua

espero ao sol

a sua sombra.

 

O último sorriso

que te vi –

unha postiça no chão.

 

Olhando as cerejas

não sei se durmo –

longa foi a noite.

 

Não te apresses

vai devagar

ò primavera.

 

Como estrelas

num céu verde

os dentes-de-leão.

 

Não fosse ao lado

a artéria da cidade

e seria rei do silêncio.

 

Até estas estrangeiras

fragas de granito

conhecem os meus pés.

 

Mais abaixo

o bloco arrancado à fraga

parou.

 

Sob os pés

as agulhas do pinheiro –

aromas primordiais.

 

Tanto acaricia a fraga

como o pinheiro –

morna brisa primaveril.

 

O cheiro do pôr-do-sol

no fresco musgo –

dourado momento.

 

Contra o meu peito

um outro mundo

que começa.

 

Contra o meu peito dorme

um outro mundo

que começa.

 

Ambos inocentes

como a pinha que cai –

sesta entre pinheiros.

 

Sou eu mais

que a flor torcida

com o peso da abelha?

 

Visita-nos um esquilo

comungamos os três

do sol e do silêncio.

 

Como a verdade pura

dança sem palavras

a luz através dos pinheiros.

 

Turku, Abril-Maio 2024

 

 

 

 

 

 

 

 

A partida das formigas-de-asa — Haikus Bálticos

Kristinestad, Julho 2024

Zumbe uma mosca

o meu sangue em ti

a serenidade da água.

 

Algo mergulha

não tem medo

das cianobactérias.

 

Nas pedras rojas

a água desaparece —

a bétula crepita.

 

No cais de madeira

formigas-de-asa —

emigrantes no fim de Agosto.

 

Sobre o verde ondulante

dorme a bebé —

leve brisa de Julho.

 

À beira Báltico

o silêncio de antigos aromas

— velho fumeiro de peixe.

 

No sono da bebé

tento encontrar

o meu silêncio.

 

Mais uma fotografia

um registo

para o esquecimento.

 

Enganar o tempo

com palavras —

nem as pedras conseguem.

 

O Sol o mar

um pedaço de papel

um momento todo meu.

 

À beira do mar

respira-se mais fundo

com uma caneta na mão.

 

Sobre a pedra

no meio da relva

caganita de coelho.

 

Chuva no telhado

a luta

das formigas-de-asa.

 

Nas folhas da bétula

seus olhos encontram

uma canção de embalar.

 

Inúmeras formigas-aladas

frenesim no telhado —

agora silêncio e vazio.

 

Flutuando na água da chuva

só o vento move agora

as formigas-de-asa.

 

No bruxuleante lusco-fusco

da sauna de madeira

lavo-me com água da chuva.

 

Escovando o cabelo

deixando de ser

a cada passagem.

 

Ouvindo shakuhachi

na sauna lavo-me

com a pressa de um negrilho.

 

Como uma bandeira

das minhas derrotas

cabelo ao vento.

 

Com esta lenha e esta água

absolvo também

os meus pecados.

 

Sobre esta rocha

repetindo-me

célula a célula.

 

Porque ver só formigas

quando por todo lado

flores.

 

A quem minto

quando me deixo abocanhar

por tanta vontade.

 

Sobre uma fraga longínqua

passa por mim

o mesmo vento.

 

Na sombra

não forces

o poema.

 

Último dia na cabana

rego os trevos

com a glória-da-manhã.

 

Eskilsö-Kaskinen, Julho 2024

2 poemas

Ōkōchi Sansō, Arashyiama (Quioto)

Novembro 2023

Komorebi

Aspiras à ascensão do silêncio bruto,

Abrupta a certeza do impalpável momento,

Mais lento que um suspiro no desmoronamento

Da partida, o toque último das pupilas

No deslocamento dos astros, todas as ilusões

O vento que move as distâncias imperceptíveis,

Derrotas-te a cada desejo,

Mas nem o impacto violento de um definitivo olhar

Consegue tolher irremediavelmente

Uma eternidade humana.

Fazer a Janta

O pão endurece, as manhãs perdem-se uma a uma

E sobre a mesa, alho e cebola, esperando o azeite quente,

Um pôr-do-sol que valha a pena, um reflexo estrangeiro

Num mar familiar e mitológico,

Quantas vezes há menos poesia na poesia

Que num gesto quotidiano executado com graça,

Viver, esse ensino constante da perdição, abrir mão,

Teme-se mais o esquecimento que ficar sem resposta,

Por isso se erguem monumentos à incerteza

Para que perdure na eternidade,

Deixa-se cozer o ragu, mexe-se um pouco a massa

E espera-se, uma nuvem permite um pouco de sol,

Toca a campainha, é tudo.