A lei do piropo

NOTAS SOBRE O PORTUGAL PROFUNDO (E O PORTUGAL SUPERFICIAL TAMBÉM)

As reacções que se podem ler nas caixas de comentários dos jornais portugueses sobre essa lei com um nome tão castiço, acabada de ser promulgada (Lei do Piropo), se uma lei promulgada em Agosto pode ser descrita deste modo, são todo um documento sociológico, e não parecem ser um vindo de um país particularmente evoluído. Fiquemo-nos por um jornal com fama de mais ou menos civilizado, mau grado as crónicas de Henrique Raposo (de quem, escusado será dizer, aguardamos reacção). Bem entendido que trolls abundam na internet, e de todos os géneros. Mas, na verdade, talvez que o tipo de comentários que se lêem a esta notícia (para mais algo normalmente tão desinteressante como a aprovação de uma lei - who cares, really?) não esteja inteiramente desligado do facto de ser possível uma pessoa sentar-se durante 12+5/6 anos (secundário+licenciatura+mestrado) em salas de aula do sistema de ensino público português sem ouvir muito regularmente expressões como "igualdade de género". Portugal não é herdeiro, e as pessoas não precisam de ser convidadas a reflectir, sobre coisas como por exemplo aquelas que são capturadas impecavelmente neste vídeo escrito por Ricardo Araújo Pereira, no qual talvez caiba uma explicação do tipo de postura intelectual (ou falta dela) de que as nossas atitudes para com questões de igualdade de género são herdeiras. Mas a ignorância traz a felicidade, lá se diz, e nós portugueses apreciamos isso como ninguém. A nossa atracção por esse tipo de postura intelectual é persistente e difícil de explicar, como implícito, diria uma certa casta de perigosos alienados, na aprovação tão tardia de uma lei para sancionar uma prática tão inofensiva como esta.  

"Igualdade de género" é uma expressão não tão ouvida como necessário, porque, como sabemos, reflectir sobre esta expressão nunca levou a uma reflexão séria sobre nenhum aspecto vital da estrutura de uma sociedade, da igualdade e liberdade conferida aos seus cidadãos (e toda a gente sabe para além disso que estas coisas não precisam de ser examinadas, é uma questão velha, a ficar cada vez mais ultrapassada). Para mais, Portugal é uma sociedade impecavelmente saudável. 

"Piropo", no entanto, essa palavra que designa uma série de expressões que (como não?), toda a mulher se devia sentir honrada de ouvir, é, no entanto, passível de ser ouvida em toda a parte. Ora, por exemplo, se vocês nunca foram uma menina de 12 anos de idade, que no caminho para a escola tivesse de atravessar por um prédio em obras, recomendo-vos a experiência. Mas tem de ser no corpo de uma menina de 11 ou 12 anos, porque se não, não é possível apreciar totalmente o efeito da arte deste grupo de poetas tão negligenciado e agora tão injustamente criminalizado (talvez não fosse tanto o caso de aprovar uma lei para matar a dita arte, mas antes de compilar os melhores ditos, ou talvez que a compilação dos melhores ditos, agora uma vez posta por escrito, tenha levado à morte da arte pela lei, com as tradições orais é sempre difícil de dizer). Mas o piropo permitia à mulher ter acesso a um primeiro inventário para expressões nunca antes ouvidas e isto vai-se perder (como por exemplo "casaco de cuspo" e outras uns furos mais abaixo), proferidas por todo o macho numa escala etária entre os 13 e os 70 (é um país de tanta virilidade). Aos 18 anos olhando as meninas de 11 fazer o mesmo percurso, muitas destas raparigas já mais ou menos conformadas a este aspecto tão rico da nossa cultura, restava-nos desejar a estes espécimes do homo sapiens que tivessem filhas. Aos 22, uma rapariga entende que não. Aos 22 anos, uma rapariga imagina todo o tipo de coisas, por exemplo, pode entender melhor o arrepio de nojo que certas expressões lhe causam (num país a caminhar a passos largos para produzir a geração mais bem preparada que alguma vez teve, há a forte probabilidade de uma rapariga nunca ouvir este tipo de expressões a um namorado, ou de ouvi-las apenas se houver um mútuo consentimento - questão mais ou menos acessória no que envolve mulheres, dirá um certo tipo de poeta), e uma rapariga nessa faixa etária pode imaginar a educação que estes homens tiveram, pode mesmo perguntar-se se o piropo é sintoma de alguma coisa (claro que não, apenas uma brincadeira inocente). E pode imaginar que tipo de educação estes poetas podem perpetuar nos seus filhos e filhas, e só pode mesmo sentir-se agraciada e agradecida por ver-se objecto de um tal destaque, afinal é tudo uma brincadeira, e é isso o que uma rapariguinha, como sublinhado por estes machos lusitanos em caixas de comentários que vão do Expresso ao Correio da Manhã (sem grande distinção entre o que imaginamos ser o tipo de leitor que frequenta ambos os jornais), devia sentir. Esqueçamos a discussão sobre se é lícito um indivíduo ter o direito de decidir modelar noutro o que é uma resposta adequada a determinada situação (o que fazer se não aceitar o tão inofensivo piropo?), ainda que contra a auto-determinação deste. Toda a gente sabe que deste impulso básico só têm saído benesses sociais: todas as que habitam o espectro que vai dos inofensivos miúdos bem comportados até quarenta anos de salazarismo. Evidentemente que isto é um exagero, para mais sobre uma coisa tão inofensiva como o piropo.

Ora, desde tempos imemoriais que o piropo é uma arte assiduamente cultivada, quase uma tradição, que é uma pena perder-se, só para que o mulheredo desse país, de resto acostumado por anos de prática, agora se possa revoltar. Possa, como as rapariguinhas de 11 até às mulheres de 50 sempre imaginaram, fazer alguma coisa sobre isso se se sentir profundamente insultada (violada psicologicamente?, por amor de deus, toda a gente sabe que isso é parte do que especialistas na questão têm designado por "a grande conspiração das mulheres") por determinado tipo de comentário. E num país que não melhora só por si, talvez o hábito de legislar para proteger o seu corpo de cidadãos venha - imagine-se! - a revelar-se um exercício saudável de reflexão para ambos os géneros.

Em tudo o resto, desejo-vos filhas, um mulherio que possa caminhar respeitável e livremente pelas ruas das cidades desse país. Evoé, como diriam as Bacantes nos seus delírios, celebremos 2015, em que Portugal parece ter finalmente deixado de ser um país do século XIV, entre outras coisas porque esta lei permite que práticas de assédio sexual, apenas abrangidas pelo código do trabalho, estejam agora também abrangidas pelo código penal. Em Portugal, o assédio sexual não era entendido como um crime de prisão? Porquê? Porque não há evidentemente nada de traumático em uma menina de 15 anos ver-se perseguida por um simpático senhor com idade para ser avô dela, que apenas deseja informá-la que lhe comia a cona toda. Só faz bem começar a ouvir isto desde cedo, ainda que de modo não solicitado (não solicitado? como é que ela estava vestida?). 

Importa aqui explicar que a lei não visa sancionar o inofensivo piropo, mas antes aquilo que nele e noutro tipo de comportamentos verbais, não apenas exercidos sobre mulheres, possa cair na definição de assédio sexual. Sem dúvida, algures há aí um desses poetas que sentirá falta de declamar as suas poesias para rapariguinhas de 11 anos (não que para mulheres de 30 seja melhor, mas em certas coisas convém ser o mais explícito possível), e que se poderá queixar que num só ano Portugal se tornou num país onde os paneleiros não só se podem casar como ter filhos (vai ser só pedofilia, já se sabe), onde as mulheres podem abortar legalmente, e agora um homem se vê ainda mais diminuído nos seus direitos.

Mas tudo isto nos devia dar uma fezada neste Portugal dos anos de crise, jardim à beira mar plantado, a tentar caminhar na direcção certa muitas vezes pelos motivos errados (há aí uma porção de gente que diria, havia outros debates mais urgentes), mas que se lixe, rapariguinhas de 11 anos desse país, e o mulheredo ingrato que não aprecia um elogio bem mandado, agradecem-vos, com o sentimento de que a febra finalmente terá a brasa que sempre mereceu, poupando as ditas mulheres de ter de proferir outra expressão que é todo um outro tratado sobre questões de igualdade de género e o modo como elas recaem sobre o sexo oposto, "vão para o caralho, seus grandes filhos da puta". Com esta lei, Portugal dá um passo difícil em direcção a uma não-questão, a igualdade de género. Extremamente improvável para Portugal. Sem dúvida a esta catástrofe não é alheio o facto de se ter atascado a Assembleia da República de mulheredo, mulheres com quem não gostaríamos de casar (embora agora, promulgada a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, se quiséssemos, pudéssemos). Mais um assalto bem-vindo aos valores da nossa sociedade. Elena Ferrante escreve no primeiro volume da trilogia napolitana, a propósito de Dido e Eneias, que se o amor é exilado das cidades, a sua boa natureza transforma-se numa má natureza. O amor, escreveu Anne Carson algures, só funciona se houver igualdade. Este não é um passo acessório porque é um passo nessa direcção. E conta sobretudo como um passo que chama a atenção para uma das muitas formas em que esta falta de igualdade se expressa.

Evoé! 

Despeço-me com uma elegia norte-americana aos poetas de piropos deste mundo. Para quem possa ter duvidado que estamos a lidar com uma arte cosmopolita.

Os livros de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich tem sido descrita como uma autora de não-ficção, um facto que tem sido apontado como exceptional na decisão da Academia Sueca em atribuir-lhe o Nobel este ano. Esta descrição é insuficiente: os livros de S.A. podem ser descritos como literatura reduzida ao essencial (e o termo “reduzida” é aqui, sem dúvida, redutor): os relatos que a autora compila nos seus livros – a sua criatividade é a mesma que fica reservada a um realizador de documentários – no fim somam-se para nos deixar com aquilo que foi descrito com a expressão uma história das emoções humanas[1], que é em última análise uma das grandes missões documentais da literatura, e um espaço amplamente partilhado pela ficção e não-ficção. Há uma missão testemunhal nos livros de S.A. que torna o seu trabalho herdeiro da função mais primordial, mais verdadeira se assim quisermos, da literatura: preservar a memória do que de outra forma jamais seria dito, jamais seria iluminado. Os livros de S.A. são, neste sentido necessários e valiosos.

Expostas à pressão da opinião pública, algumas das testemunhas que aceitaram falar com S.A. para o livro de que pretendo aqui falar, Zinky Boys, tentaram retirar os seus testemunhos mais tarde, ou processá-la em tribunal, "numa acção judicial em que autora acabou por prevalecer". Este aspecto é revelador não só do tipo de pressão política que governa operações de construcção de memória colectiva na União Soviética[2], mas das condições em que S.A. escreve os seus livros. Do seu valor testemunhal e do seu trabalho contraditório sobre a consciência colectiva: o desfasamento entre o que a imprensa diz e o que as pessoas dizem, o modo como elas se sentem. Enquanto histórias das emoções, os livros de S.A. catalogam relatos de violência, dor, injustiça, relações familiares e amor, que convergem para o retrato não do “homem soviético” como tem sido apontado num ou noutro artigo da imprensa internacional, mas das pessoas de um modo geral, em qualquer tempo ou lugar, nas suas intermitências de luz e escuridão. Em última análise, os livros de Svetlana Alexievich são isso: repositórios da nossa humanidade. 

Voltando ao ponto onde comecei, se queremos discutir o que é que os rótulos de ficção e não-ficção separam exactamente, podemos acrescentar que, em certo sentido, as realidades documentadas nos livros de S.A. acontecem precisamente no limite em que ficção e realidade se começam a separar, são produto daquele ponto da consciência em que estamos mais sozinhos com nós próprios, algo que S.A. tem em comum, por exemplo, com W.G. Sebald. (Sugerimos que faz sentido ler Zinky Boys e After Nature juntos.) E, na ordem do dia, se é de função que estamos falar, podíamos aqui citar o recente e badalado editorial de  David H. Lynn para a Kenyon Review (o hype é apenas parcialmente merecido, mas nós acreditamos nele) sobre o que torna um ensaio literário, porque estas palavras são muito oportunas para pensar o trabalho de S.A.:

Yes, language may provide a joy in itself, but the experience of fully engaging an essay’s tenor—the argument or subject or meaning—may sweep a reader toward a far deeper sense of fulfillment. This is equally true of poetry and fiction, naturally, of all true literature. It’s a process that catalyzes us into seeing in a new way, to grasping what may intuitively lie beyond language itself. [3]

 

Os livros de S.A. não são sobre joy ou fulfillment, nem sequer são exactamente sobre atonement, mas são representações daquilo que está para lá da linguagem, daquilo para que ela pode apenas apontar, essa profundidade com que só nos tornamos a encontrar quando ficamos completamente sozinhos com os nossos pensamentos, e isso, não sem ser através da evocação de experiências traumáticas, de alguma forma aponta para essa outra coisa que está para lá da linguagem, o lado misterioso do humano, que é a intimação do nosso amor. Não é a alegria da linguagem o que vamos encontrar nos livros de S.A., mas a sua força, a beleza brutal da sua função de instrumento, e, se tivermos sorte, no melhor e no pior, um encontro com nós próprios enquanto a sua superfície.  

Os livros de S.A. concentram-se num tipo particular de acontecimentos: aqueles que, tendo força suficiente para decidir as nossas vidas ou para as alterar radicalmente, são alheios à nossa realidade, no sentido em que não ocorrem no espectro da nossa rotina diária, isso que de outra forma pode ser definido como a normalidade, apontam antes para uma rotura completa com as leis que até àquele ponto regeram a nossa familiaridade com o real. Neste sentido, os livros de S.A. são estranhos.

A Segunda Guerra Mundial, a Guerra Afegã-Soviética da década de 80, Chernobyl. O quotidiano imerso na sua rotina de normalidade não é o que S.A. tem documentado, ainda que paradoxalmente isto tenha convergido para compor uma visão mais nítida dos processos históricos que são o pano de fundo dos seus livros. E esta nitidez advém sobretudo do facto de o objecto de S.A. não ser tanto relações de causa e efeito capturados na tentativa abstracta de reconstruir as leis gerais que guiam e decidem processos históricos, mas pessoas, sozinhas com as suas emoções, as suas memórias, os seus pensamentos, a sua imaginação, as suas perdas e derrotas, as suas nostalgias. S.A. tem sistematicamente escrito sobre gente em tempos de crise, gente na longa e solitária travessia de experiências traumáticas. Os livros de S.A. são, deste ponto de vista, uma experiência que testa os limites da nossa tolerância ao sofrimento. A própria admite que entre terminar de escrever o seu primeiro livro War’s Unwomanly Face (1985) e escrever Zinky Boys (publicado em 1992) a sua tolerância para o sofrimento tinha-se esgotado completamente.

Enquanto leitores de S.A., de alguma forma tornamo-nos parte de uma longa tradição que tem a sua origem entre os espectadores de tragédia grega, quando ler (ou assistir) se configura não apenas como um acto privado, mas como um acto cívico e político. No fim de ler S.A. o percurso que fizemos não é da ordem do nosso entretenimento, mas antes o do facto de estarmos mais alertados para a crueldade da vida, algo que em qualquer circunstância não devemos pensar que podemos ignorar. Isto é talvez uma descrição capaz da atmosfera dos livros de S.A. e daquilo que os motiva.   

Suspeito que este ano a academia sueca cometeu um acto que é um favor aos leitores deste planeta. O facto de S. A. ser uma autora de não-ficção é o que eu gostaria de descrever aqui como um não-debate[4], uma questão de resto muito menos interessante do que a ideia de que o gesto de premiar a obra de S. A. não será, nem no Ocidente, nem muito menos na Rússia de agora (como não foi nas datas de publicação destes livros)[5], entendido como um acto politicamente desinteressado.

Colocar os livros desta autora mais ou menos obscura sob o holofote gerado pelo prémio é um acto que convida a pressão da opinião pública mundial para a relação bastante dolorosa entre questões privadas e políticas na União Soviética e na Rússia de hoje; e os livros de S.A. todos eles lidam com momentos traumáticos na memória colectiva soviética.

Num conto de Mavis Gallant é possível ler-se esta descrição acerca de uma das personagens: “Pessimistic in the way women actually become when they settle for what exists.” Lembramo-nos desta frase quando em entrevista à New Yorker, S.A. explica a sua opção predominante por vozes de mulheres: “Women tell things in more interesting ways. They live with more feeling. They observe themselves and their lives. Men are more impressed with action. For them, the sequence of events is more important.”[6]

O segundo livro de S.A., cujo o título em inglês tem a duvidosa tradução de Zinky Boys (alguns críticos preferem a tradução alternativa Boys in Zink e foi com este título que os primeiros excertos foram publicados em inglês, em 1990, pela Granta[7]), compila uma série de relatos sobre a guerra Afegã-Soviética. A escolha de vozes predominantemente femininas é ilustrativa do ponto de vista da autora, citado acima. Os relatos dos soldados que regressam servem de contraponto aos relatos das mães e mulheres daqueles que não lograram regressar, tal como os relatos das mulheres que serviram em cargos médicos ou administrativos no Afeganistão de alguma forma colocam os homens no nexo de outros tantos papéis em relação a mulheres: filhos, maridos, amantes, vítimas de violência e perpetradores dela.

A guerra Afegã-Soviética é um evento desastroso na opinião pública da altura e é frequentemente apontado como o acontecimento que precipita a dissolução do exército soviético. A escassez de equipamentos adequados, os baixos salários, a falta de condições de treino e a consequente inexperiência dos soldados (a guerra foi maioritariamente combatida por recrutas entre os 18 e os 20 anos de idade), tudo isso é amplamente documentado pelos testemunhos compilados por S.A. É acessório falar aqui daquilo que foi a recepção da opinião pública russa (um apêndice do livro publica cartas de vários leitores) quando os primeiros relatos do livro de S.A. começaram a ser publicados em jornais na Rússia. Mas a carta de um leitor que se queixa a S.A. de que todos sabem que há uma distância muito grande entre a realidade e aquilo que os jornais russos publicam, e que os relatos dela vêm perturbar o status quo de um modo que roça a falta de pudor, pode ser citado como um exemplo ilustrativo do contexto da recepção do trabalho de S.A. Este desfasamento entre realidade e uma opinião pública manipulada é ainda demonstrado num aspecto particularmente cruel: o livro intitula-se Zinky Boys numa alusão aos caixões de zinco fechados (no livro apenas uma família logra ver o rosto do filho depois de morto) em que os soldados eram enviados para casa, o que permitiu que durante boa parte da guerra esta fosse retratada não como uma guerra mas como uma intervenção militar com funções predominantemente humanitárias. “Dever internacional” era a expressão com que as funções destes recrutas eram descritas. Dizer que esta geração, no regresso, se sentiu traída pela pátria não é uma descrição suficiente, e o livro de S.A. vem colmatar essa falta.  Num dos relatos (p. 29, 31, 32) uma mãe diz:

Yura was my eldest son. A mother shouldn't admit it, probably, but he was my favourite. I loved him more than my husband and my younger son. When he was little I slept with my hand on his little foot. I wouldn't think of going to the cinema and leave him with some baby-sitter, so when he was three months old I'd take him (together with a few bottles of milk) and off we'd go. I can honestly say he was my life. I brought him up to model himself on figures like Pavka Korchagin, Oleg Koshevoi and Zoya Kosmodemyanskaya... He understood ideals but not real life... Then one day, strangers came to the door and I knew from their faces they were bringing bad news. I stepped back into the flat. There was one last, terrible, hope: "Is it Gena?" They wouldn't look at me but I was still prepared to give them one son to save the other.

Assim, é também neste apecto que entendemos como um livro pode iluminar aquilo que, neste caso, muito literalmente nunca seria dito. E este é um dos aspectos mais cruéis do livro, porque nos permite entender que esta falta de esclarecimento da opinião pública, que acaba por vir a condenar esta guerra em termos que não estão muito afastados da do Vietnam no Estados Unidos, é um dos motivos pelos quais estes soldados foram entendidos no regresso quase como criminosos e, em muitos casos completamente alienados socialmente. O livro de S.A. de alguma forma tenta preencher esta lacuna e é eficaz em demonstrar que o processo de responsabilização por uma guerra deve ser um processo colectivo, que envolve a sociedade civil e militar. (De alguma forma, a pertinência deste tipo de debate é tanto mais visível hoje, sobre a responsabilização dos Estados Unidos pelas suas sucessivas campanhas no Médio Oriente, um debate dolorosamente actual face aos acontecimentos não apenas das últimas semanas mas dos últimos anos.)

E aqui podia ser feita uma última generalização sobre o significado da obra de S.A., naquilo em que esta tenta preencher uma lacuna na história de uma memória colectiva, o seu trabalho é o de, de alguma forma, restaurar o que já não pode ser recuperado. E isso é ainda o que esta relação entre literatura e memória colectiva pode fazer por nós, ou como se lê nas últimas linhas do livro, na reprodução do epitáfio de um dos soldados:

 

“Died defending his country.
The whole earth is a desert without you.”

 

[1] Sara Danius.

[2] "As a young journalist, in her native Belarus, Alexievich had found that the newspapers failed entirely to represent what made reality interesting to her. She said, “I began to understand that what I was hearing people say on the street and in the crowds was much more effectively capturing what was going on than anything I was reading.” Philip Gourevich em Human Rights Watch. Este artigo inclui um excerto de Voices from Chernobyl. Outro pode ser lido na Paris Review.

[3] http://www.kenyonreview.org/journal/novdec-2015/index/#.VjhW1eWYi9E.twitter

[4] Philip Gourevich na New Yorker: The second writer to win the Nobel, back in 1902, was Theodor Mommsen, the first of several historians and essayists to win the prize. Bertrand Russell was one; Winston Churchill was another. But it has been more than a half century since any such recognition—a half century that has seen an explosion of great documentary writing in all forms and lengths and styles, and yet there is a kind of lingering snobbery in the literary world that wants to exclude nonfiction from the classification of literature—to suggest that somehow it lacks artistry, or imagination, or invention by comparison to fiction. The mentality is akin to the prejudice that long held photography at bay in the visual-art world. 

[5] This year, in Izvestia, Zakhar Prilepin, one of Russia’s best-known writers, said that Alexievich was “not a writer,” and that she had been chosen only for her opposition to the Kremlin—and for not actually being Russian. “We get the picture: Bunin, Solzhenitsyn, Pasternak, Brodsky,” he wrote. Alexievich’s agent, Galina Dursthoff, who lives in Cologne, told me that she had accumulated a pile of hate mail from Russia comparable to the pile of congratulations from elsewhere in the world. The writers blasted the Nobel committee for awarding the prize to “a Russophobe” as well as “a Jew and a lesbian.” (Alexievich is not Jewish and has never made any public statements about her personal life.) Masha Gessen, “The Memory Keeper: The Oral Histories of the New Nobel Laureate.” 

[6] Masha Gessen, idem

[7] Granta, Boys in Zynk. Em português, sobre a autora, é possível ler-se o artigo de Luís Miguel Queirós no Público.