Gonçalo M. Tavares, entrevista ao Le Monde

Entrevista de Gonçalo M. Tavares ao jornal Le Monde, publicada no dia 30 de novembro de 2024 (https://www.lemonde.fr/livres/article/2024/11/30/goncalo-m-tavares-ce-qui-m-interesse-est-l-idee-d-ecrire-comme-verbe-intransitif_6421753_3260.html). Tradução de Victor Gonçalves.
Um ângulo hermenêutico que se desvia ligeiramente da nossa oligarquia intelectual.

Com um ouvido atento, escuta as nossas perguntas, depois a interpretação do seu tradutor, Dominique Nédellec. Com gestos rápidos, desenha palavras numa folha de papel — «Bíblia», «Biologia», «Talho» — circunda-as e traça linhas para ligar os termos entre si ou a símbolos obscuros. Ao sairmos do encontro com Gonçalo M. Tavares nos escritórios parisienses da sua editora, Viviane Hamy, lamentámos não ter roubado os esquemas que resumiam a conversa numa espécie de linguagem científica. Mas esse sentimento dissipa-se. Diferentemente do escritor português, filho de uma professora de matemática e de um engenheiro, nós não temos o condão matemático. É melhor ficarmo-nos pelas suas palavras e pelos seus livros, cujo poder evocativo e clareza profunda se assemelham a fábulas que atravessam os séculos.
Ao longo de cerca de vinte anos, este professor de epistemologia da Universidade de Lisboa construiu uma obra prolífica e multifacetada, estruturada em torno de dois ciclos: O Reino, uma exploração do mal no século XX, inaugurada com Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser (2003 e 2004; ed. Viviane Hamy, 2014), e O Bairro, iniciado com O Senhor Valéry e a lógica (2002; reedição de Viviane Hamy, 2008), a que se juntou uma dezena de habitantes — entre os quais O Senhor Brecht e O Senhor Calvino (2004 e 2005; ed. Viviane Hamy, 2009 e 2010). Cansado de constatar, no animado café lisboeta onde trabalha, como «todos pensam da mesma maneira, mesmo em cidades democráticas onde existe liberdade de pensamento», Tavares quis criar uma cidade imaginária habitada por «verdadeiros indivíduos». Em 2021, foram reunidos numa obra de 800 páginas (Le Quartier, editado por Viviane Hamy).

À volta destes dois ciclos romanescos gravitam contos, poesia, teatro e publicações que o antigo estudante de física, desporto e arte não associa a qualquer género literário. «O que me interessa, e Roland Barthes falava muito sobre isso, é a ideia de escrever como verbo intransitivo», confessa. A resposta à pergunta «O que é que escreves?» é uma redução da linguagem. Muitas vezes, agarra-se ao mesmo tempo a um livro científico, um livro de arte ou uma coleção de contos. «Neste momento, leciono “corpo, cultura e pensamento contemporâneo”. Avanço aos saltos e ao acaso, admite. Tenho uma relação perversa com a epistemologia, porque gosto muito da contradição, da ambiguidade. É aí que reside a força do pensamento».
A dos seus livros baseia-se no facto de não buscarem a verdade, mas em «aumentar as interpretações possíveis». É o caso de O Osso do Meio, o seu novo livro, que completa o ciclo de O Reino. Tal como em Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica (2004 e 2007; publicados por Viviane Hamy, 2008 e 2010), encontramos nele um mundo em guerra, habitado por indivíduos rebeldes ou consumidos pela loucura, pelo medo, pela sede de controlo; um exame do mecanismo das suas almas. Escritos há muito tempo, os livros que compõem O Reino foram revisitados pelo autor «de forma infinita» antes da publicação, o que explica a sua dimensão, nomeadamente o último, que passou muitos anos a reduzir. «Queria fazer um livro no osso, explica Gonçalo M. Tavares. Escrever como se tivesse uma faca, como se fosse o talhante a escrever. Como se esses cortes servissem para abrir a pele, para a levantar, para ver o essencial».
No início, Gonçalo M. Tavares não fazia ideia do que significava o “osso do meio”. O que sabe é que, como sempre, este texto nasceu de uma imagem, que acabou por ausente do livro. «Há alguns anos, em Lisboa, ouvi um russo a cantar no metro, recorda. Sem perceber uma palavra de russo, comecei a chorar. Havia uma tristeza incomensurável nas suas canções». Essa tristeza persegue-o no desenvolvimento da cidade de O Osso do Meio. Os ricos vivem nas alturas; os pobres, na cidade baixa. Restam-lhe quatro personagens nos braços: um assassino, uma adúltera, um voyeur e um carniceiro. O traço comum: carregam dentro de si «uma espécie de tristeza inicial».
O escritor está convencido de que nascemos tristes, o choro do bebé que sai do ventre da mãe não tem que ver com o choque do ar nos pulmões. Nascemos tristes e depois esquecemo-nos. «Mas, por vezes, como nas minhas personagens, lembramo-nos», diz. Gonçalo M. Tavares segue-os, curioso com essa «tristeza inicial», sem causa aparente, próxima da malignidade.

Por que razão a personagem Kahnnak mata em O Osso do Meio? Decidir que é por causa da sua origem social ou dos maus-tratos sofridos na infância seria «dizer que ela não é como nós», ignorar que um empregado normal pode, um dia, esfaquear o seu patrão. Pois «trabalhar atrás de uma secretária das 9h00 às 17h00 não nos torna menos instintivos», acrescenta o professor.

Como prova, partilha uma cena estranha observada ao pequeno-almoço num hotel confortável. Muito rapidamente, o pão acabou. «Eram talvez vinte pessoas para três pães», explica, já divertido com a anedota. Quando chegaram mais dois pães, os clientes lançaram-se sobre a comida, ignorando os mais velhos. «É em situações como esta que o ser humano se revela, quando falta o essencial. Não se trata de uma questão de classe social, de força ou de fraqueza. Trata-se de manter uma forma de delicadeza, mesmo em situações extremas. A delicadeza é, sem dúvida, a caraterística humana mais extraordinária». E a mais misteriosa.
«O Osso do Meio reenvia para aquilo que nos resiste, mas...», começa a dizer o romancista. A frase do tradutor fica suspensa. Tavares volta a pegar na caneta e desenha o esquema de um corpo. De seguida, os seus olhos castanhos fitam-nos por detrás dos óculos. Continua. «O Osso do Meio é um pouco o que todos procuramos. É o que nos daria a nossa estabilidade, o que seria também a causa do que nos acontece. Para um freudiano, o osso do meio talvez fosse a infância». Falemos da sua, em Luanda. Nos anos 60, o pai foi chamado a Angola, então colónia portuguesa, para construir uma ponte. Tem «memórias orgânicas» do país que deixou com a família aos 5 anos. Tavares recusou dois convites do governo angolano por discordar da sua política. «Agora penso em voltar, confidencia. Vai ser um regresso emotivo e acredito que vou chorar muito». As lágrimas sufocam-lhe a voz. Fala das imagens que os pais lhe transmitiram, dele, muito jovem, dançando. «Há qualquer coisa de não-racional em Angola», acrescenta. Algo que toca o autor, que se interessa pela «parte não burguesa do cérebro, essa que não se senta num sofá. A parte que anda, salta e às vezes cai». A parte imprevisível.
Habitualmente, Gonçalo M. Tavares não fala da sua família, diz, mas faz questão de nos contar, para terminar, como o seu pai, nascido em Portugal no seio de uma família muito pobre, pôde prosseguir os estudos graças à insistência dos seus professores. Sem eles, ele próprio não teria começado a escrever, aos 14 anos, na «enorme biblioteca» do pai. Sem este «momento decisivo», tema preponderante na sua obra, as suas filhas, que estudam matemática no Reino Unido, nunca teriam dado «esse salto».

Crítica a O Osso do Meio (L’Os du milieu, trad. francesa Dominique Nédellec, ed. Viviane Hamy, 160 p., 19 €).

Quatro personagens — Kahnnak, Maria Llurbai, Albert Mulder e Vassliss Rânia — e Klaus Klump, que faz uma aparição, vivem numa cidade nunca nomeada, assolada pela guerra e pela fome. Um deles é um assassino; o outro uma adúltera, «demasiado bela» e sem dúvida amaldiçoada; Albert é um médico que observa secretamente os seus jovens pacientes; o último é um talhante. Enquanto percorrem a cidade, o romance atravessa as suas biografias, disseca os seus pensamentos, ausculta as suas pulsões e instintos.
Porque é que matamos? Como é que resistimos às nossas piores inclinações? Qual é o custo da sobrevivência? O Osso do Meio sobrepõe esta escala humana à da cidade, observada como um organismo vivo. Na parte superior, os nobres bridam com champanhe; na parte inferior, os pobres vivem de restos.
Vinte anos após a publicação em Portugal de Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser, Gonçalo M. Tavares encerra o ciclo de O Reino com O Osso do Meio. Num estilo depurado, o autor desenha, com a precisão de um biólogo, o funcionamento de uma sociedade ordenada, minada pela guerra.
Mas a ciência não sabe tudo — pelo menos, ainda não. Não explica porque é que esta música, difundida nos cafés, entristece tanto as personagens, o que é que ela reaviva nelas. Este mistério essencial leva o autor a escrever — e nós a lê-lo, sempre com a mesma intensidade.

Um excerto em francês

«Kahnnak à présent se souvient, vaguement, d’avoir lu un récit de voyage dans un pays pauvre, en d’autres temps : le mendiant loqueteux s’approchant du visiteur qui écrit ; il boite, ce mendiant, il marche comme mû par une audace terrible, un courage musculaire, il se traîne, tend sa main décharnée et dit : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose !”
“Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” ; voilà la phrase qui définit les hommes, leur essence, ce qui reste une fois qu’on a tout retiré, ce qui reste de ce qui est instinctivement humain, jusqu’au dernier moment, une fois que toutes les couches sont tombées – les phrases et les gestes élégants –, quand la faim surgit et que la survie devient la seule urgence des hommes qui, dès que le premier danger se manifeste, oublient leurs belles intentions : “Je suis vivant, donnez-moi quelque chose” (…). » p. 26