Elitismo na filosofia

Michel Foucault intitulava-se um jornalista-filosófico, pensador dos abalos sísmicos do quotidiano mais do que certificador de conceitos meta-históricos, vindos do além e derramando-se generosamente sobre os acidentes empíricos para lhes doar inteligibilidade. Em tudo igual e em tudo diferente, uma das rubricas a partir de onde escrevo aqui na Enfermaria 6, “Analítica da Actualidade” (nome surripiado a Bragança de Miranda), exige-me meditar sobre acontecimentos recentes, ainda cheios de vitalidade, sem o rigor geométrico e conceptual dos factos, já que estes, para o serem, expulsam o caos de vida que os percorre. Os factos são acontecimentos mortos.

Isto justifica poder hoje escrever sobre o pretenso elitismo da disciplina de filosofia no Ensino Secundário, tese do Jornal Público de 8 de Fevereiro de 2015.

Acontecimento: a equipa da Universidade Católica Portuguesa que fez o rankings dos Exames Nacionais para o Público cruzou os resultados do Exame de filosofia com as tipologias das escolas (3 tipos/níveis, consoante a percentagem de alunos com apoio económico) e verificou que o desvio entre as escolas de nível 1 e de nível 3 era de quase 2 valores, superior ao de todas as outras disciplinas. Assim, a filosofia castiga os alunos que provêm de contextos socioeconómicos mais desfavorecidos. Esta conclusão surpreendeu os professores entrevistados para a reportagem e alguns, numa boa desconfiança, propõem-se mesmo manter esta má estatística no reino do acidente (acontecimento atípico).

Interpretação I: além da tese do “acidente”, há professores que se lamentam da falta de prestígio social da filosofia, em comparação com o português e a matemática, limitando a dedicação dos alunos ao seu estudo. Outros referem que são sobretudo os alunos “fracos” que realizam o Exame, para “fugirem” a disciplinas mais exigentes (biologia ou física e química). Uma terceira via aponta a falta de competências de interpretação, leitura, escrita, raciocínio lógico... dos alunos mais carenciados, visto que o contexto familiar, restrito e alargado, não estimula essas capacidades. Simplificando muito, esta última análise traduz-se da seguinte forma: “diz-me que biblioteca tem a tua família dir-te-ei se serás bom a filosofia”.

Interpretação II: o que é dito na linha interpretativa anterior é sensato e descreve o esqueleto deste acontecimento. Mas gostava de ler o campo onde se situam as consequências da primeira interpretação. Há uns anos tivemos uma Ministra que, empiricamente ou com dados relativamente secretos, concluiu também pela insuportável elitização da filosofia. Como solução, usou o martelo legislativo para tornar esta disciplina irrelevante, na medida em que deixou de ser disciplina de acesso ao Ensino Superior. Não sei se foi acidental ou estratégico, acto de vingança (alguém, por exemplo, traumatizado pela filosofia) ou tijolo ideológico para construir uma sociedade mais igualitária. Mas o resultado foi, arriscando ser juiz em causa própria, profundamente desinteressante, sobretudo, como defenderei a seguir, para as classes sociais mais frágeis.

Interpretação III: há duas formas gerais de resolver as desigualdades: aproximar os desfavorecidos dos favorecidos ou o contrário (a história tem inúmeros exemplos de ambas). Ora, no caso da filosofia, como em muitos outros similares, Portugal optou pela segunda. Ou melhor, numa variação ainda mais perniciosa: não se elevaram os desfavorecidos (porque seria violentar a sua natureza ou uma tarefa demasiado complexa) nem rebaixou os favorecidos, mas simplesmente escondeu essas diferenças. Solução recorrente no nosso pais, porque económica e indolor.

Interpretação IV: desconfio que este pequeno artigo do nosso Diário de referência acorde velhos igualitarismos. Se a filosofia é elitista, se ela demonstra que a escola prolonga, acentua talvez, as desigualdades sociais de base, então suprima-se a disciplina, ou pelo menos o acto que permite descobrir a abjecta realidade da relação irredutível entre desigualdade socioeconómica e desigualdade escolar, neste caso o Exame Nacional.

Interpretação V: a faculdade do esquecimento era para Nietzsche tão importante como a da recordação, o jogo do desvelamento/velamento absolutamente estruturante em Heidegger (o termo “estrutura” é um abuso interpretativo). Portanto, podíamos perfeitamente ou esquecer a lente de aumento que a filosofia coloca sobre a relação entre desigualdades (sociais e escolares) ou extirpar o “mal” pela raiz e suprimir a disciplina de filosofia (na verdade, ela já desapareceu do currículo de metade dos alunos, aqueles que frequentam Cursos Profissionais). Mas isso seria profundamente contraditório com o que as várias instâncias internacionais, nomeadamente a OCDE, definem como sendo as competências fundamentais para o século XXI.

Interpretação V.1: sem haver ainda uma terminologia definitiva, propõem-se normalmente 4 grandes conjuntos de competências/capacidades que a educação escolar (nos vários níveis de ensino) devem desenvolver (apresento-as em inglês): 1- Ways of Thinking (creativity and innovation; critical thinking, problem solving, decision making; learning to learn, metacognition); 2- Ways of Working (communication; collaboration/teamwork); 3- Tools for Working (information literacy; ICT literacy); 4- Living in the World (citizenship, local and global; life and career; personal and social responsibility, including cultural awareness and competence). Ora, em 2 dos 4 campos (“Ways of Thinking” e “Living in the World”), a filosofia surge como absolutamente essencial, sem ela estas duas áreas decisivas para a formação dos futuros cidadãos dificilmente conseguirão florescer.

Interpretação V.2: não se trata, pois, de capricho curricular ou de defesa do statu quo vigente (bastante pobre, aliás), mas de mostrar nas evidências de múltiplos estudos (foi a partir deles que se definiram as competências para o século XXI) que a filosofia é irrecusável se quisermos uma humanidade a pensar bem (pelo menos melhor do que acontece actualmente) e a ter relações sócio-psico-biológicas mais eficientes com o os outros, humanos e não humanos, e o mundo, baseadas em éticas abrangentes que se sustentem num “viver deixando viver” e num neo-hedonismo misturando prazer com o respeito ético pela alteridade biológica e a sustentabilidade ambiental.

Interpretação V.3: finalmente, sempre defendi que se na nossa história tivéssemos dois ou três filósofos de renome poderíamos aumentar o valor acrescentado dos produtos que exportamos. Percebe-se que o prestígio do país que produz se deve muitas vezes à sua sofisticação cultural, e quase nada melhor do que ter um Descartes ou um Kant para garantir isso mesmo. Mas será apenas a expectativa de virmos a ter um herói filosófico que justifica conservar a disciplina no Ensino Secundário? Com certeza que não, a filosofia mantém a sua importância na exacta medida em que foge à lógica da eficácia, suspende as preocupações restritas de rendibilidade, de performance, de hiperactividade, obsidiantes para o homem actual. Ela funciona num espaço de gratuitidade ou de “inutilidade” que dá aos jovens tempo e ferramentas para questionarem fragmentos importantes da sua via. Num certo sentido, a filosofia pára a acção para a poder pensar nas suas condições de possibilidade mais essenciais. Portanto, em vez de a vermos como um arcaísmo educativo ou um mensageiro impertinente da desigualdade social/escolar, devemos olhá-la como a disciplina que permite a todos os alunos, sobretudo aos mais carenciados, pensarem para lá do senso comum, desenvolverem um pensamento crítico (questionante) que rasgue o véu da obviedade fabricada, reflectirem sobre a maneira como compreendem o mundo, desconstruírem os preconceitos que empobrecem a realidade... É que a filosofia, em vez de elitista, é profundamente democrática, ela dirige-se a todos e todos a podem usar. Dir-me-ão que está mais acessível a uns do que a outros. Certo. Mas são justamente os desfavorecidos que mais precisam dela, que outra forma teriam de adquirir o que ela ensina? À semelhança da pintura, da literatura, da música... é aos alunos que mais dificuldades têm de entrar no seu jogo de linguagem e de pensamento que ela faz realmente falta. 

Conclusão: por isso, espero que esta revelação de polichinelo não conduza a decisões idiotas, do tipo: se não conseguimos pôr toda a gente a pensar de forma complexa, então suprime-se a própria complexidade. 

Europa

I

Em The Idea of Europe (A Ideia de Europa), George Steiner esboça uma marca geral da Europa a partir de 5 traços: 1- O Café (“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. (…) Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».”); 2- A Paisagem a Uma Escala Humana que Possibilita a sua Travessia (“A Europa foi e é percorrida a pé. Isto é fundamental. A cartografia da Europa é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percepcionados dos pés humanos.”); 3- As Ruas e Praças Nomeadas Segundo Estadistas, Cientistas, Artistas e Escritores do Passado (“Cidades como Paris, Milão, Florença, Francoforte, Weimar, Viena, Praga ou S. Petersburgo são crónicas vivas. Ler as respectivas placas toponímicas é folhear um passado presente.”); 4- A Herança Dupla de Atenas e Jerusalém (“Esta relação, simultaneamente conflituosa e sincrética, ocupou o debate teológico, filosófico e político desde os Doutores da Igreja a Leon Chestov, de Pascal a Leo Strauss. (…) Ser europeu é tentar negociar, moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.”); 5- Uma Consciência Própria Escatológica (“Muito depois daquilo que os historiadores denominam como «o pânico do ano mil», as profecias de condenação escatológica e as numerologias que procuram fixar a sua data povoam a imaginação popular europeia.”)

O desenvolvimento, poético e demonstrativo, destes marcadores culturais definem um bom ponto de partida para pensarmos, repensarmos, a ideia de Europa (tangível e intangível). Sobretudo se destacarmos, imitando muitas campanhas editoriais, um horizonte hermenêutico geral que aposta no carácter paradoxal de nos alimentarmos, desde a espiritualidade trágica semita, da convivência, quase incestuosa, entre bem e mal. Diz Steiner no mesmo livro: “Europe is the place where Goethe's garden almost borders on Buchenwald, where the house of Corneille abuts on the market-place in which Joan of Arc was hideously done to death.” Um continente, com fronteiras imprecisas, vivendo da tensão irredutível entre ideias e acções rivais, onde as convicções são tanto esmiuçadas sem perdão até ao núcleo puro da necessidade e verdade que as sustenta, quanto usadas em bruto como armas de arremesso mortíferas (matou-se quer em nome da verdade quer, nos períodos de anarquia ou de vontade de domínio, sem qualquer razão imediatamente inteligível). Um continente que se foi constituindo sobre um manto de antagonismos, porque é nossa condição estarmos envoltos nas lutas fratricidas de mitos fundadores, na adição ao agon racional da Aufklärung grega, na irredutibilidade longa de projectos religiosos concorrentes, no sectarismo político-cultural de muitos estados-nação, na “luta de classes”, mas também, numa descida ao prosaico para melhor distinguir o essencial, na actual luta de regiões, nas rivalidades desportivas, no choque urbano/suburbano, na guerra partidária... Mais, no seio de cada indivíduo europeu (alargado a grande parte do Ocidente), actual legado da psicanálise, insinua-se o conflito, depurado até emergirem as pulsões mais originárias e formadoras da humanidade europeia: eros e thanatos, vontades, cegas muitas vezes, de vida e de morte. Neste sentido, qualquer história política europeia é uma lente de aumento que nos devolve os fantasmas escondidos em cada um de nós.

Há quem desloque esta perspectiva para uma visão menos linear, a história materialista seria, na duplicidade das leituras hegeliana e marxiana, a dos permanentes conflitos, enquanto a ideia de Europa viveria da utopia da paz perpétua, comunidade capaz de conciliar as diferenças culturais numa luxuriante tapeçaria civilizacional, onde em vez do confronto haveria concórdia e enriquecimento mútuo entre visões do mundo.

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um massacre em Paris

você pode não fazer nada
que é uma ação que se resolve em si mesma 

você pode estar no trabalho
você pode não saber o que é Charlie Hebdo
quem: um homem rico, um senador da république
você pode não falar francês
você pode ter certeza da pronúncia
Tchárli à l'anglaise, Ebdô à la French 

você pode não saber o que é um hebdomadário
você pode não saber o que é um arrondissement
você pode não saber que a av. Paulista fica a 9401,51km do 20º arrondissement
a 9401,51km de distância
você pode se sentir desconfortável 

você pode ver os cartuns que seus amigos postam no Facebook
você pode ver os cartuns dos cartunistas mortos
você pode rir 

você pode nunca abrir uma edição do Charlie
você pode achar de mau gosto
você pode achar de péssimo gosto
você pode concordar com o Christopher Hitchens
você pode ser um enfant terrible
você pode achar melhor não mexer com a religião dos outros
você pode não querer saber quem são os Le Pen
você pode saber que nem todo mundo é terrorista
você pode achar os desenhos tão banais 

você pode ler as notícias sobre o ataque
você pode ler os live updates do NY Times e do Guardian
você pode ser um homem branco vivendo no Brasil
você pode ser uma mulher branca vivendo
você pode ser um homem muçulmano
você pode ser uma mulher muçulmana
você pode ser um bisneto de muçulmana
você pode ser um homem mulato nascido no Brasil
você pode ser um homem coreano recém-chegado ao Brasil
você pode ser um menino de Moçambique 

você pode ver repetidas vezes na TV um homem branco
sendo carregado de maca até uma ambulância
você pode notar que os tênis dele são Adidas
você pode nunca mais esquecer que os tênis eram Adidas
pretos com 3 listras brancas
e que ele estava sem camisa 

você pode ver repetidas vezes na TV
o policial deitado tomando tiros
nos headphones os tiros são tão altos
você pode arrancá-los de um susto 

você pode ver repetidas vezes na TV
um filminho de celular feito por amadores
no topo de um prédio
você pode ter amigos em Paris
você pode ter conhecidos em Paris
você pode não conhecer ninguém em Paris 

você pode pensar somos viciados em informação
você pode ter vontade de comprar cigarros depois de 10 anos sem fumar
você pode comprar cigarros quando sair do trabalho
você pode andar ida e volta na avenida
você pode pegar chuva na ida
você pode não pegar chuva na volta
você pode notar a fronteira azul/cinza no céu
você pode imaginar que a chuva anda mais rápido que
você pode ver como a noite vem caindo
você pode saber que já é madrugada 

você pode ouvir Mendelssohn
você pode ouvir Eduardo Paniagua e o Ibn Baya Ensemble
você pode ler as mesmas notícias cinco vezes
você pode ouvir os statements dos heads of state
você pode não se importar tanto com o que dizem 

você pode ler que uma mulher que trabalha no prédio
mandou uma SMS a um amigo dizendo
estou viva há muita morte ao meu redor
sim, eu estou lá os jihadistas me pouparam
você pode ficar intrigado com o estou lá
você pode não saber o que é Allahu Akbar 

você pode querer ligar para a sua mãe
você pode olhar os meninos tão atléticos na rua
você pode pensar que o seu gosto para homens é clássico
você pode ter um gosto grego para homens
você pode ao mesmo tempo ser lucian-freudiano em mulheres
você pode ver que o mundo também tem gorduras e descolorações
você pode preferir o mundo 

você pode ver que ninguém está arrancando os cabelos em SP
você pode ver a fila de carros para entrar no shopping
você pode ver que o labrador do seu vizinho está crescendo
ainda ontem era filhote 

você pode não dizer nada no Facebook
você pode não ler os comentários que deixaram nas notícias de Facebook
você pode ser de esquerda
você pode se espantar com um corte de cabelo na rua
você pode ler o que um grande crítico disse
você pode achar uma pena as mortes do Wolinski do Cabu
você pode pensar porém na arrogância ocidental
você pode pensar de fato na arrogância ocidental
você pode se perguntar se um brasileiro é ocidental 
você pode se sentir ocidental
você pode não sentir nada
você pode ouvir uma palestra de 40min do Edward Said
você pode se sentir pós-colonial
você pode achar que é cedo demais para o Said
você pode lembrar que ele falou dos atentados de Oklahoma City
você pode não saber quem bombardeou Oklahoma City
você pode comprar pasta de dente
você pode sorrir com a promoção

você pode ler na revista Jacobin
que é melhor se preparar
você pode ver que já vem o coice antimuçulmano
você pode pensar ai a Europa se avacalhando
você pode achar que é cedo demais

você pode pensar nos limites do humor
você pode sentir nojo do sangue desenhado nos cartuns-tributos
você pode ver uma fotos dos seus amigos no topo da pedra do Leme
você pode acompanhar até às 21h41 Tignous Cabu Charb,Wolinksi +8 

você pode lembrar que os últimos anos não têm sido bons
você pode checar as notícias da Petrobrás
você pode checar todos os sapos do Panamá morreram
você pode ler os ensaios do Foster Wallace sobre tênis
você pode não ficar obcecado com o Charlie Hebdo

você pode lembrar que têm feito novos amigos
você pode lembrar que amanhã já é quinta-feira
você pode tomar espumante porque acabou a cerveja
você pode se sentir mal porque espumante é bebida de festa
você pode tomar espumante num copo de requeijão
você pode querer fazer um brinde ao Jonathan Swift

você pode de repente sem saber bem por quê
você pode desenhar um pequeno Maomé secreto em seu caderno
 

São Paulo, 7 de janeiro de 2015 - 22:11

 

Je suis Charlie Hedbo

A redacção do “jornal satírico” francês, Charlie Hebdo, foi alvo de um atentado hoje, 7 de Janeiro de 2015. O resultado (à data): 12 mortos, 11 feridos, 4 deles graves. Entre as vítimas, Charb (director e desenhador, “je prefere mourir debout que vivre à genoux”), Cabu, Wolinski e Tignous e dois polícias.

O ataque foi perpetrado com pistolas-metralhadoras kalachnikov por dois indivíduos encapuzados (mais um cúmplice) e vestidos de negro, que por volta das 11h20 entraram na redacção e, numa desproporção de forças próprias dos cobardes loucos, cuja ética foi totalmente sugada pela religião, disparam sobre os presentes gritando, segundo uma testemunha, “allahou Akbar”. Antes disso assassinaram a sangue frio o porteiro e depois de fuzilarem a redacção, foi bem disso que se tratou, ainda abateram um polícia na rua (deitado no solo ferido, disparam-lhe uma bala na cabeça).

Face a este horror (“terror”, dizem alguns, mas isso depende já da nossa reacção, só há terror quando nos sentimos aterrorizados), quero exprimir a minha perplexidade e indignação, bem como a minha solidariedade a todos quanto deixaram de estar entre nós ou perderam os seus, devido ao tresloucamento de fanáticos que pensam, à boa maneira dos ignorantes definitivos, estarem próximos da vontade divina (neste caso islâmica, mas, mutatis mutandis, podia ser cristã ou judaica, todos os monoteísmos destilam estes cancros). Uma vingança patética (contra as críticas a Maomé) apagou em poucos minutos vidas plenas, com lastros familiares, e quis deixar um aviso à nossa condição fundamental de sociedades democráticas: a liberdade de expressão.

Se nos baixarmos, se por medo e num sentimento de culpa em ricochete desenvolvermos novos mecanismos de censura, ou pior, de autocensura, este atentado terá vingado. É por isso que escrevo este pequeno texto para expressar a minha condição de irmandade para com os falecidos e prometer defender a todo o custo a liberdade de expressão.

Embriaguemo-nos!

« Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous. »[1] […]

Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris, XXXIII, Péiade.

Embriagar-se sempre, diz o quase-maldito poeta francês, designando uma trilogia improvável: “vinho, poesia e virtude”. Percebe-se a díade vinho/poesia, com a pequena diferença da poesia não obrigar à culpa corpórea da ressaca. Mas quem se lembraria, a não ser um habitante “infernal”, de juntar a “virtude”? Questão hermenêutica finíssima, que se deve abandonar ao vento para a ver desaparecer ou encontrar a exegese certa (Serge Reggiani, magnífico diseur, realça bem esta heurística). Fora isso, trata-se de uma exaltação à vida, ao prazer, à elevação... a tudo o que é belo e intenso.

Conhecemos a célebre “in vino veritas”, uma outra verdade, mais arriscada, porque a desconexão das partículas discursivas abre fendas até ao íntimo do sujeito, meio animal meio divino. Menos usada, o “in vino glaudium” parece, pelo que googlei, mais venerada na circunspecta Alemanha, mas nós, os do Sul, temos, à falta de palavras, o sentido exacto da alegria na bebida, bem menos estridente, aliás, que a Norte.

Há, também, esse escritor e filósofo inglês, Roger Scruton, capaz de reunir conservadorismo, Kant e estética do belo, que titula um livro I Drink Therefore I am. O vinho tem uma alma que lhe foi doada pela terra, sol e trabalho. Simboliza a sedentarização humana. Cépticos em relação aos mitos antigos sobre a bebida divina (Dioniso/Baco, et al), ainda percebemos, porém, o sentido religioso que transmuta a alma, dando-lhe um poder de percepção mais fino e vasto. Para Scruton, o vinho faz emergir o mundo em sub specie aeternitatis, prolongando o sentido da eucaristia cristã. Beber vinho é, pois, procurar para lá de si próprio, ele é o caminho para a alteridade.

Por outro lado, ao levarmos um copo de vinho à boca degustamos um work in progress, o vinho é um elemento permanentemente vivo (e não apenas quimicamente). Ao contrário da comida, não requer mastigação (a não ser em níveis extremos de alcoolemia) nem é subjugado pelas condições da absorção digestiva. Invade as nossas veias, insuflando o corpo de vida, e depois dessa inundação fisiológica, conquista a alma, acelerando o pensar e libertando as emoções.

Scruton não regateia elogios a esta bebida, já que ela “rima com civilização”. Define a comunidade humana, cada golo de vinho transporta partículas de culturas ancestrais, é uma espécie de peregrinação laica ao passado. Além disso, a boa embriaguez traça um estilo de pensamento: saída de si em direcção a um mundo mais alargado (vejam-se os simpósios gregos, no Banquete Sócrates, aparentemente depois de beber várias crateras de vinho, produziu um dos mais belos discursos filosóficos sobre o amor), através da contemplação e desregramento (“Le Bateau ivre”de Baudelaire). Pelo vinho os outros estão primeiro (com a triste excepção dos tagarelas recalcados), dá-se mais do que se reclama, cultivando um prazer partilhado. Este “bom vinho”, alcoolemia temperada, mantém o respeito pelo outro e, diz Scruton, a capacidade de sentir vergonha perante ele. O vinho seria, então, o meio de reconquistarmos o prazer do convívio e de reaprendermos a temperança.

Por isso, bebamos bem e em boa companhia, embriaguemo-nos temperadamente para entrarmos em 2015 com a vitalidade da esperança e da amizade refeitas.

 

[1] [“É preciso estar sempre embriagado, Tudo está aí: é a única questão. Para não se sentir o horrível fardo do Tempo que quebra os vossos ombros e vos inclina sobre a terra, é preciso embriagar-se sem parar. / Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos.”]