"Momento num café" ou "Ninguém merece esses viados"

___ Ninguém merece esses viados.

___ É verdade.
Nenhum de vocês
merecia Alan Turing,
nenhum de vocês,
merecia Raul Pompeia,
nenhum de vocês
merecia Pier Paolo Pasolini,
nenhum de vocês
merecia Constantino Cavafy,
nenhum de vocês
merecia Gertrude Stein,
nenhum de vocês
merecia Ludwig Wittgenstein,
nenhum de vocês
merecia Xavier Villaurrutia,
nenhum de vocês
merecia Mario Cesariny,
nenhum de vocês
merecia James Baldwin,
nenhum de vocês
merecia Tuulikki Pietilä,
nenhum de vocês
merecia Jack Spicer,
nenhum de vocês
merecia Djuna Barnes,
nenhum de vocês
merecia Lota Macedo Soares,
nenhum de vocês
merecia Bernard-Marie Koltès,
nenhum de vocês
merecia Félix González-Torres,
nenhum de vocês
merecia Berenice Abbott,
nenhum de vocês
merecia Elizabeth Bishop,
nenhum de vocês
merecia Mark Morrisroe,
nenhum de vocês
merecia Gennady Trifonov,
nenhum de vocês
merecia Lúcio Cardoso,
nenhum de vocês
merecia Virginia Woolf,
nenhum de vocês
merecia Meridel Le Sueur,
nenhum de vocês
merecia Paul Cadmus,
nenhum de vocês
merecia Kathy Acker,
nenhum de vocês
merecia Kenneth Anger,
nenhum de vocês
merecia Roland Barthes,
nenhum de vocês
merecia Noël Coward,
nenhum de vocês
merecia Robert Duncan,
nenhum de vocês
merecia Roberto Piva,
nenhum de vocês
merecia Sylvia Beach,
nenhum de vocês
merecia Safo de Lesbos,
nenhum de vocês
merecia Paul Bowels,
nenhum de vocês
merecia Jane Bowels,
nenhum de vocês
merecia Radclyffe Hall,
nenhum de vocês
merecia Al Berto,
nenhum de vocês
merecia Sarah Kane,
nenhum de vocês
merecia Sir Francis Bacon,
nenhum de vocês
merecia Francis Bacon,
nenhum de vocês
merecia Frank O´Hara,
nenhum de vocês
merecia Umberto Saba,
nenhum de vocês
merecia Derek Jarman,
nenhum de vocês
merecia Maurice Sendak,
nenhum de vocês
merecia Nikolai Gogol,
nenhum de vocês
merecia Karin Boye,
nenhum de vocês
merecia Claude Cahun,
nenhum de vocês
merecia Luis Cernuda,
nenhum de vocês
merecia Marsden Hartley,
nenhum de vocês
merecia Mikhail Kuzmin,
nenhum de vocês
merecia Manuel Puig,
nenhum de vocês
merecia Peter Hujar,
nenhum de vocês
merecia Susan Sontag,
nenhum de vocês
merecia John Cage,
nenhum de vocês
merecia Gerard Reve,
nenhum de vocês
merecia Audre Lorde,
nenhum de vocês
merecia Jasper Johns,
nenhum de vocês
merecia Hubert Fichte,
nenhum de vocês
merecia Adrienne Rich,
nenhum de vocês
merecia Irena Klepfisz,
nenhum de vocês
merecia Oscar Wilde,
nenhum de vocês
merecia Thornton Wilder,
nenhum de vocês
merecia Alexander McQueen,
nenhum de vocês
merecia Federico García Lorca,
nenhum de vocês
merecia Néstor Perlongher,
nenhum de vocês
merecia Lorraine Hansberry,
nenhum de vocês
merecia José Lezama Lima,
nenhum de vocês
merecia Herbert Tobias,
nenhum de vocês
merecia Salvador Novo,
nenhum de vocês
merecia Yevgeny Kharitonov,
nenhum de vocês
merecia Langston Hughes,
nenhum de vocês
merecia Severo Sarduy,
nenhum de vocês
merecia William Burroughs,
nenhum de vocês
merecia José Leonilson,
nenhum de vocês
merecia Tove Jansson,
nenhum de vocês
merecia W. H. Auden,
nenhum de vocês
merecia F. W. Murnau,
nenhum de vocês
merecia Muriel Rukeyser,
nenhum de vocês
merecia Virgilio Piñera,
nenhum de vocês
merecia H.D.,
nenhum de vocês
merecia Copi,
nenhum
merecia vocês,
ninguém
merece esses viados.


Poema originalmente publicado pelo autor no seu blogue, Rocirda Demencock, a 20 de Setembro de 2013

Lançamento de São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos

Gastão Cruz e Tatiana Faia

Gastão Cruz e Tatiana Faia

Ontem, 27 de Maio, no Bar Irreal, ao Poço dos Negros, Lisboa, a Enfermaria 6 lançou mais um livro (já lá vão 7, mais 3 cadernos). Desta feita, o trabalho de escrita da Tatiana Faia que temos vindo a anunciar aqui: São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos.

Lança-se um livro como se lança o martelo? Nietzsche diria que sim, ambos são armas que amassam os velhos edifícios enferrujados para que a sucata dê lugar a organismos vitais imbricados com o espírito do tempo (o velhíssimo Zeitgeist sempre actual).

Lança-se um livro como se lança o dardo? Longe, tanto que a autora nem vê onde ele aterra e se alguém o apanha e atira para outro continente.

Lança-se um livro como se lança uma seta? Perigosa e vibrante, nunca em linha recta, que assim viaja-se menos.

Talvez uma mistura dos três, e mais outros tantos modos, ninguém sabe realmente como se lança um livro, mal se liberta das mãos da autora e lançadores dá-se à sua maneira aos leitores, e estes, por sua vez, apanham-no e chegam a virá-lo do avesso, quando não lhes acontece isso a eles.

O que disse eu, trivial mestre de cerimónias: “li este livro admirável mais do que uma vez e com finalidades hermenêuticas diferentes, nunca me deixou triste e amplificou sempre a minha visão do mundo. Por outro lado, evita a simplicidade de orbitar à volta de uma espécie de pan-ansiedade que hoje tornou metade da população frenética e cumpridora, enquanto a outra metade é empurrada ou se empurra a si mesma para um pessimismo indolente. O São Luís... contém uma extraordinária galeria de personagens, o que lhe permite testar um alargadíssimo campo de vida, dissecando amostras significativas e pondo a funcionar novos dispositivos, orgânicos e inorgânicos. Tatiana é uma demiurga e comentadora da vida, mas dispõe-se também a um descentramento que privilegia o exterior, deixando-o muitas vezes tomar conta da narrativa, introduzindo deslizamentos, abanões e suplementos vitais. É por tudo isto que se deve cumprir o talento de Tatiana Faia. Finalmente, referi que o seu mundo da escrita se inspira e trabalha na Grécia Antiga, ao mesmo tempo que ama criticamente a actualidade e o nosso autocontentamento racional; a vertiginosa variação do tom, dos temas e do estilo permite a Tatiana Faia produzir uma espécie de mitologia vazia, onde clichés presunçosos e infrutíferos, ou desenhos clássicos, se transformam em nada.”

Gastão Cruz, magnífico poeta e crítico rigoroso, partilhou connosco a sua leitura de São Luís..., falou do sentimento de exílio, ele também esteve em Inglaterra, como leitor de português no King’s College, das referências cinematográficas e literárias, do jogo narrativo que Tatiana produz a partir de uma inscrição comprometida com a realidade. Mas deixou sobretudo duas pistas de leitura: uma é a incomunicabilidade, as personagens de São Luís... não conseguem tecer sentidos comuns, há uma barreira que impede fusões compreensivas entre o eu e o outro, entre o isto e o aquilo, o aqui e o além. As distâncias tornam-se, as palavras são minhas, incomensuráveis. Mesmo assim, com a ajuda da autora, soubemos que tudo é preferível à solidão, que “mais vale mal acompanhado do que só”. Gastão Cruz pôs a segunda pista de leitura nas relações, múltiplas relações que constantemente se tecem, nem sempre para o melhor, entre a narradora e as suas personagens e outras coisas e animais (escafandros ou gatos, por exemplo), e no interior dos textos, com a autonomia que a escrita foi ganhando (a própria Tatiana revelou esta condição do seu trabalho, os planos prévios são rudimentares sem determinações). Pode parecer contraditório justapor incomunicabilidade e relacionismo (permitam-me o neologismo, foneticamente bizarro, eu sei), mas trata-se de uma aposta, misturando a esperança pessoal e a literária, as várias Tatianas que acreditam em formas de redenção ligadas ao cuidado e a estima pela alteridade.

Gastão Cruz disse ao jornal Público, 5/4/2015, que: “Já me sinto um sobrevivente. Tive a sorte de ter amigos que admirava – e que continuo a admirar – e que pude acompanhar e ler à medida que iam fazendo as suas obras, algumas delas fundamentais na história da poesia portuguesa. E depois fui vendo esses amigos desaparecerem.” A esta delicada oração fúnebre juntou-se ontem, no entanto, a crença em que Tatiana Faia faz parte de um movimento de renovação da literatura portuguesa (cito de cor). E assim se cumpre outro desígnio (estas são ilações totalmente minhas) o de abrirmos as portas a uma nova escrita, menos sujeita a histórias encantadas, cheias de mistérios e truques estilísticos, mais inclinada para desafiar o estatuto e o lugar de autores e leitores, de críticos e editores, porque é uma escrita, como disse Gastão Cruz, quase impossível de catalogar.

 

Tatiana Faia, uma escrita em devir

O São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos da Tatiana Faia é um livro de um só fôlego, sempre a lutar contra a opressiva perfeição da linguagem (há alguma coisa que ela não possa dizer?). Rasga com precisão, e alguma crueldade, os véus que ocultam o agon arcaico que preside, sem que muitos o saibam, a todos os jogos florais do entretenimento social. Antes da domesticação dos humanos só havia centauros, cada um com o seu hibridismo particular. Pegando nisto, Tatiana Faia bane os clichés, cada figura, cada frase, cada palavra, cada gesto, cada silêncio… determina por si só um mundo inteiro. A sua escrita, comprometida, abraça-nos, com compaixão ou erotismo, às vezes as duas, cada uma a seu tempo, e deixa que nos enterneçamos, mas subitamente desloca-se dos afectos para um criticismo que incendeia tudo. É, por isso, uma escrita em devir que nos obriga a sair da toca.

Projecta uma voz polifónica, mas não foge da órbita, embora imperfeita, onde se dá a conhecer como puzzle ou patchwork identitário. Dizemos facilmente, e simploriamente: “é a voz da Tatiana!”. Apesar dos cambiantes que uma só jornada aventureira imprime em cada estrato dos seus textos. Viaja-se através do tempo para experimentar uma androginia pouco comum (talvez se aproxime do Orlando de Virginia Woolf). Vai-se mesmo, se ansiarmos por explicações, para além, ou aquém, do humano, acompanhados pela sabedoria grega, que muito antes de Darwin já sabia que toda a vida se misturava. Tatiana Faia é uma autora/narradora em devir, devém gato, ou homem, mulher ou coisas inorgânicas... Esta capacidade e vontade de ser outra, outra coisa, permite-lhe escrever sem muitas condições, mesmo estilísticas, Tatiana ainda vive embriagada pela liberdade artística. Além disso, vindo e indo da poesia, a sua escrita não se presta facilmente nem ao comentário nem à discussão, ela agarra-nos num gesto rápido de lutadores de judo e atira-nos ao tapete. Mesmo se depois concede algum espaço para a análise crítica, a sua vitalidade é de pegar ou largar, sem mediações. Quanto a ela, a “vida que não é examinada não vale a pena ser vivida.” É isto que faz, examina a vida. Mesmo quando o delírio toma conta das suas personagens, trata-se de examinação. Olhar para cada pormenor a partir de todos os ângulos com mil olhos, como queria Nietzsche. E isto exige mestria e coragem, uma vertigem analítica que conduz para lá do bem e mal, isto é, um lugar onde até os santos podem ir para o inferno, ou os assassinos para o céu.

            Estes contos são simultaneamente actuais e inactuais, intempestivos, no sentido em que sopram sobre as brasas que ateiam labaredas no interior da normalidade quotidiana, e ao mesmo tempo procuram oxigénio noutros sítios. Por outro lado, Tatiana Faia usa bem a liberdade que o conto consente, quase tudo é permitido neste género, até a lentidão da hesitação interminável, mesmo se nos parece à primeira vista, e dentro de preconceitos muito resistentes, que aí se deve ser rápido e surpreendente.

Finalmente, Tatiana Faia deixa-nos uma magnífica colecção de máximas, ela conhece a arte de concentrar numa frase visões que demoraram séculos a serem formuladas e explicadas, recorrendo-se normalmente a livros inteiros. Por exemplo: “Errar serve para nos lembrar de que precisamos de merecer o amor dos outros.” Nesta frase condensa-se uma ética completa; ou “O mundo vai estar sempre cheio de gente disposta a dançar no escuro e vai sempre haver amendoeiras em flor ao longo de certos caminhos.”; ou “a única inteligência que importa é a amadora.”; ou “Algum amor pelo precipício é necessário para passar dos limites.” E tantas outras, ao virar de cada página, prontas a sacudir os leitores mais atentos. Faltando falar de vós, leitores, sugiro que entrem destemidos, por qualquer porta, está tudo acordado e pronto a receber-vos. 

Notas sobre a dilaceração do eu (entre Nietzsche e Pessoa)

Alguns sonhos, pelo conteúdo e pela forma, obrigam-nos a pensar uma e outra vez sobre a identidade, a frágil evidência de que somos uma individualidade plenamente constituída capaz de olhar para os outros e para o mundo a partir de um centro de inteligibilidade intrínseco: a nossa soberania racional. Só que o cogito cartesiano ou o Ich hegeliano e kantiano, subjectividade totalizante e reflexiva, primeiro garante das certezas que temos ao habitar na vida (justapondo-se-lhe Deus, em Descartes e Kant, e o historicismo em Hegel), este “eu” que usamos sem duvidarmos da sua consistência, é, afinal, um dispositivo narrativo (e mais do que isso) que funciona porque nos comprometemos, em geral inconscientemente, a não questionar a sua validade. Ontem, por exemplo, passei o dia todo sem dúvidas de que eu era eu, até que durante a noite um sonho me pôs numa situação tão rocambolesca que a minha noção de realidade foi torcida até ao absurdo. Dir-se-á que recuperei a crença básica na identidade mal acordei, mas não foi bem assim, se é verdade que não contaminei a vigília com o onírico, o que se passou no meu cérebro durante o sono introduziu uma dúvida irresolúvel sobre quem sou eu.

A questão elementar da identidade nasceu provavelmente nos primórdios da humanidade, é impossível raciocinar sem questionar quem raciocina. Mas talvez só muitos anos depois, a filosofia grega – com Heraclito, Parménides e, entre outros, Sócrates –, desenrolando um pouco mais o novelo dos mitos dramatizados (Édipo julgava-se outro, Agave perdeu tragicamente a noção de si...), tenha desenvolvido uma autêntica inquirição ao eu. Posteriormente, simplificando bastante, o Cristianismo com a sua história total, do início ao fim do mundo, sugou-nos muita da vontade de continuarmos a escavar um tema secundarizado pelas controvérsias teológicas, Deus abafou quase tudo. Talvez Shakespeare e Cervantes tenham escapado à monocultura teológica, talvez também Velasquez e Goya, mas foi preciso esperar pelo século xix para que o problema renascesse, aí Kierkegaard e Nietzsche inventaram, cada um à sua maneira, um “sujeito como pluralidade”. Kierkegaard com uma mascarada, escondendo para melhor revelar o que estava claramente para lá da identidade simplista, o que até podia permitir alcançar um sujeito ainda mais pleno, mas onde o velho eu perdia as honras de evidência e clareza (para justificar esta aparente contradição, citemo-lo: “o pensador sem paradoxo é como o amante sem paixão.”[1]). Nietzsche, que também se mascarou, de Zaratustra a Jesus, iniciou a mais séria e consequente viagem filosófica pela pluralidade subjectiva, em 1885: “A hipótese de um sujeito único não é talvez necessária […] As minhas hipóteses: o sujeito como pluralidade [das Subjekt als Vielheit]”. Por isso, o seu “Tornar-se aquilo que se é” exigia uma incessante formação de si mesmo, construindo e desconstruindo (Penélope à espera de si).

Na sequência disto, Walt Whitman formulou o seu “Do I contradict myself? / Very well then I contradict myself; / (I am large, I contain multitudes)”. Aproveitado por Joyce (em Ulisses cita Whitman; recorde-se também que aí refere Assim Falava Zaratustra e O Anticristo de Nietzsche) e, claro, Fernando Pessoa. Logo a iniciar a Tabacaria de Campos: “Não sou nada / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. […]. Mais claro ainda: “Be plural like the universe”. Ou, da Ode Triunfal, “Giro, rodeio, engenho-me”. Por isso, Ode Marítima, “A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.”

Como escreve Bartholomew Ryan no soberbo “Orpheu e os filhos de Nietzsche: caos e cosmopolitismo”[2], justapondo de maneira inteligente Zaratustra e Campos: “Pessoa e Nietzsche transformam a subjectividade numa pluralidade. Para Nietzsche, a condição final da transmutação dos valores é ‘uma enorme multiplicidade, que é, contudo, a contrapartida do caos’ (Ecce Homo, ‘Porque Sou Tão Perspicaz’, 9). Este é um dos requisitos para o seu pensamento.” (p. 78) O mesmo se passa com Pessoa, multiplicar-se sem se perder, um caos controlado, mas um caos. Identidade fragmentada numa pujante heteronomia, muitas vezes indomável. Tudo porque, como escreve Bernardo Soares no Livro do Desassossego: “Nós nunca nos realizamos. / Somos um abismo indo para um abismo – um poço fitando o Céu.”

O século xx apanhou a seta e atirou-a para muito mais longe (chegou ao além da pós-modernidade), da psicanálise à “morte do homem” de Foucault, do desaparecimento do sujeito de Blanchot ao homem colectivo do materialismo dialéctico, do cubismo picassiano às personagens grotescas e decompostas de Francis Bacon ou Egon Schiele, dos romances polifónicos aos filmes de Kubric ou David Linch, dos nicknames das redes sociais ao camalionismo de David Bowie, da crise geral de identidade que se vive na Europa ao frenesim, quase patológico, dos viajantes incansáveis (de resort em resort)... com a aceleração vertiginosa de quase tudo e os prolíficos simulacros de ubiquidade, com tudo isto e mais tanta coisa, sempre pletoricamente quantitativo, o eu, esse insignificante e tantas vezes improdutivo eu, parece ter os dias contados. Sobre isto, embora com imagens impróprias, foi o meu sonho premonitório.

 

 

[1] Migalhas Filosóficas, p. 84.

[2] Nietzsche e Pessoa, pp. 51-83. 

Manifesto para um bom hedonismo

Prolongando Nietzsche, que só acreditava num deus que soubesse dançar, ou se ria de todos quantos nunca se tinham rido de si próprios, Gilles Deleuze e Michel Foucault retomaram, cada um à sua maneira a mundivisão epicurista, que é mais vasta e antiga do que o gerado em torno de Epicuro, recusando uma vida centrada no negativo. É verdade que Deleuze criticou o conceito central de “prazer” em Foucault,[1] preferindo-lhe o de “desejo” (produtivo, afastando-o da tradicional “falta”) mas, como veremos na citação que faço infra, não estava, no que aqui mais importa, longe da visão foucaldiana, e nietzscheana, da importância do positivo, do prazer e do afirmativo. Na verdade, se Foucault não suporta o termo “desejo” é porque não consegue dissociá-lo da ideia de falta, alimentada por uma tradição que liga Platão a Sartre, passando pela psicanálise. Mas este sentido não está presente no “desejo” deleuziano.

Foucault (cujo subtítulo do volume dois da História da Sexualidade é “L’Usage des plaisirs” [o uso dos prazeres]) põe em perspectiva o conceito de “prazer” remontando genealogicamente ao termo aphrodisia da Grécia Antiga, de onde provém, com deslizes, o nosso “afrodisíaco”. Os aphrodisias eram impulsos para o prazer dados ao excesso, por isso a ética (ethos) preocupava-se menos em estabelecer permissões e interdições (especialidade da moral cristã) do que em controlar esses impulsos (é aqui que encaixa a moral do “justo meio”, da temperança aristotélica). Incontrolados, os aphrodisias podiam tornar o homem escravo dos prazeres, e a perda da autonomia era um dos principais receios gregos. Assim, a ética grega, prolongando-se em parte da romana, não definiu qualquer obediência a um código ou sistema de leis com validade geral ou universal, insistindo antes no desenvolvimento de estratégias de autolimitação dos aphrodisias, ensinando o domínio de si, combate proporcional à excessiva vontade de prazer (inspirando uma longa tradição ocidental, que vai de Santo Agostinho a Freud, passando por Kant). Tudo isto será substituído quase na origem, na confissão religiosa cristã, pelo deciframento de si, procura das imperfeições teológicas que confirmem o postulado de Pecado Original e justifiquem castigos correctivos (nunca totalmente eficientes, como sabemos, continuamos pecaminosos). Culminando no paroxismo pudico vitoriano.[2]

À importância inquestionável de Foucault na reabilitação do conceito filosófico de “prazer” e a abertura para éticas menos normativas e preconceituosas em relação a prazeres socialmente quase indesejáveis (sobretudo os ligados à sexualidade e ao consumo de psicotrópicos), devemos juntar Deleuze, que questionou sempre todos os códigos que nos prendem a possíveis redutores, que nos inoculam um pessimismo estéril e uma vontade de vingança. Neste caso, traduzo um excerto exemplar de Dialogues avec Claire Parnet, 1977.

Vivemos num mundo bastante desagradável, onde não só as pessoas, mas o poder estabelecido têm interesses em transmitir-nos afectos tristes. A tristeza, os afectos tristes são todos aqueles que diminuem o nosso poder de agir. Os poderes estabelecidos precisam da nossa tristeza para nos escravizarem. O tirano, o padre, os ladrões de almas têm de convencer-nos que a vida é dura e pesada. O poder tem menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar ou, como diz Virilio, de administrar e organizar os nossos pequenos terrores íntimos. A longa queixa universal sobre a vida ... Podemos dizer "dancemos!", mas não estamos muito alegres. Podemos dizer "como é lamentável a morte!", mas teríamos de ter vivido para haver algo a perder. Os doentes, da alma e do corpo, não nos deixarão em paz, vampiros, enquanto não nos transmitirem as suas neuroses e ansiedades, a sua amada castração, o ressentimento contra a vida, o contágio imundo. Tudo é questão de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar o poder de agir, afectar-se de alegria, multiplicar os afectos que expressem um máximo de afirmação. Fazendo do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensar uma potência que não se reduz à consciência.”

 

[1] Para quem quiser aprofundar, cf. carta de Deleuze a Foucault sobre esta divergência: “Désir et plaisir”, Magazine Littéraire n° 325, Outubro 1994; republicado em  Gilles Deleuze, Deux régimes des fous, 2003.

[2] Foucault contesta contudo, que, por exemplo, os prazeres ligados à atividade sexual tenham ficado isentos de qualquer interdito na Grécia Clássica. Nas aulas do Collège de France de 1980/81 (laboratório do livro sobre os uso dos prazeres) defende, pelo contrário, que antes do cristianismo já havia muitas reservas sobre a sexualidade livre, embora longe da dogmática cristã da carne e da concupiscência. (Cf. Subjectivité et vérité)