The New Experience

Los individuos nacidos en los tiempos líquidos rendimos culto a lo “new.” New look, new body, new style of life, new city, new friend, new job y new experience.

Los constructores de la globalización neoliberal se han esmerado en transformar los arcaicos modelos de identificación local y global. Para pertenecer al modelo, para sentirse individuo y no caer en la invisibilidad social, cada uno de nosotros debe rendir culto al change: no conformarse con el mismo trabajo, ni la misma pareja, ni las mismas aficiones, ni residir en la misma ciudad o casa.

La clave está en el deseo de cambio constante. La rutina y la comodidad son sinónimos de arcaísmo, de atraso cultural. Los buscadores de new experience consideran que la felicidad radica en la cata constante de nuevas sensaciones. La ética de la sociedad de consumo de productos, personas, ideas y experiencias acelera los procesos de renovación y de obsolescencia para introducir el consumo de tiempo y ocio en una espiral sin salida, una droga que exige una dosis cada vez más frecuente. El modelo de vida líquida, basado en la movilidad permanente, rechaza la permanencia o la perdurabilidad por tratarse de elementos inútiles para la producción de experiencias new.

Para tener acceso a la new experience hay que pertenecer al exclusivo mundo de los privilegiados de la mundialización. El principal marcador que diferencia las élites financieras de la pobreza hipotecada no radica en la posesión de bienes, si no en todo lo contrario, en la capacidad de deshacerse con facilidad, en la filosofía de desechar productos incluso antes de su adquisición y en la apremiante necesidad económica de cambiarlos por otros, más new que los anteriores.

Quedarse obsoleto, anclarse a una ciudad o a un puesto de trabajo, se considera un fracaso, la entrada directa al defenestrado grupo de los parias. El poder del siglo XXI se mide por la capacidad y libertad de movimiento, no por el control del territorio. La inmensa mayoría de la población mundial no tiene pasaporte o VISA de crédito para salir de su tierra y lanzarse a la cultura del mestizaje, de las new experience, de las bodas indígenas, la meditación oriental, la danza tribal, la moda étnica, los ritmos salvajes, las prácticas ancestrales, etc.

Las experiencias híbridas que practican las élites se han asentado como modelo óptimo de producción cultural -¿cosmopolitismo?-. De entrada, han acabado con ideales como la estabilidad, la rutina, la seguridad, el anclaje a un territorio, el cobijo familiar y las costumbres locales (convertidas en folclorismo turístico). La capacidad de buscar la individualización a través de lo new marca la diferencia entre los que están en el centro, en movimiento, y los relegados a la permanencia.

Os livros de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich tem sido descrita como uma autora de não-ficção, um facto que tem sido apontado como exceptional na decisão da Academia Sueca em atribuir-lhe o Nobel este ano. Esta descrição é insuficiente: os livros de S.A. podem ser descritos como literatura reduzida ao essencial (e o termo “reduzida” é aqui, sem dúvida, redutor): os relatos que a autora compila nos seus livros – a sua criatividade é a mesma que fica reservada a um realizador de documentários – no fim somam-se para nos deixar com aquilo que foi descrito com a expressão uma história das emoções humanas[1], que é em última análise uma das grandes missões documentais da literatura, e um espaço amplamente partilhado pela ficção e não-ficção. Há uma missão testemunhal nos livros de S.A. que torna o seu trabalho herdeiro da função mais primordial, mais verdadeira se assim quisermos, da literatura: preservar a memória do que de outra forma jamais seria dito, jamais seria iluminado. Os livros de S.A. são, neste sentido necessários e valiosos.

Expostas à pressão da opinião pública, algumas das testemunhas que aceitaram falar com S.A. para o livro de que pretendo aqui falar, Zinky Boys, tentaram retirar os seus testemunhos mais tarde, ou processá-la em tribunal, "numa acção judicial em que autora acabou por prevalecer". Este aspecto é revelador não só do tipo de pressão política que governa operações de construcção de memória colectiva na União Soviética[2], mas das condições em que S.A. escreve os seus livros. Do seu valor testemunhal e do seu trabalho contraditório sobre a consciência colectiva: o desfasamento entre o que a imprensa diz e o que as pessoas dizem, o modo como elas se sentem. Enquanto histórias das emoções, os livros de S.A. catalogam relatos de violência, dor, injustiça, relações familiares e amor, que convergem para o retrato não do “homem soviético” como tem sido apontado num ou noutro artigo da imprensa internacional, mas das pessoas de um modo geral, em qualquer tempo ou lugar, nas suas intermitências de luz e escuridão. Em última análise, os livros de Svetlana Alexievich são isso: repositórios da nossa humanidade. 

Voltando ao ponto onde comecei, se queremos discutir o que é que os rótulos de ficção e não-ficção separam exactamente, podemos acrescentar que, em certo sentido, as realidades documentadas nos livros de S.A. acontecem precisamente no limite em que ficção e realidade se começam a separar, são produto daquele ponto da consciência em que estamos mais sozinhos com nós próprios, algo que S.A. tem em comum, por exemplo, com W.G. Sebald. (Sugerimos que faz sentido ler Zinky Boys e After Nature juntos.) E, na ordem do dia, se é de função que estamos falar, podíamos aqui citar o recente e badalado editorial de  David H. Lynn para a Kenyon Review (o hype é apenas parcialmente merecido, mas nós acreditamos nele) sobre o que torna um ensaio literário, porque estas palavras são muito oportunas para pensar o trabalho de S.A.:

Yes, language may provide a joy in itself, but the experience of fully engaging an essay’s tenor—the argument or subject or meaning—may sweep a reader toward a far deeper sense of fulfillment. This is equally true of poetry and fiction, naturally, of all true literature. It’s a process that catalyzes us into seeing in a new way, to grasping what may intuitively lie beyond language itself. [3]

 

Os livros de S.A. não são sobre joy ou fulfillment, nem sequer são exactamente sobre atonement, mas são representações daquilo que está para lá da linguagem, daquilo para que ela pode apenas apontar, essa profundidade com que só nos tornamos a encontrar quando ficamos completamente sozinhos com os nossos pensamentos, e isso, não sem ser através da evocação de experiências traumáticas, de alguma forma aponta para essa outra coisa que está para lá da linguagem, o lado misterioso do humano, que é a intimação do nosso amor. Não é a alegria da linguagem o que vamos encontrar nos livros de S.A., mas a sua força, a beleza brutal da sua função de instrumento, e, se tivermos sorte, no melhor e no pior, um encontro com nós próprios enquanto a sua superfície.  

Os livros de S.A. concentram-se num tipo particular de acontecimentos: aqueles que, tendo força suficiente para decidir as nossas vidas ou para as alterar radicalmente, são alheios à nossa realidade, no sentido em que não ocorrem no espectro da nossa rotina diária, isso que de outra forma pode ser definido como a normalidade, apontam antes para uma rotura completa com as leis que até àquele ponto regeram a nossa familiaridade com o real. Neste sentido, os livros de S.A. são estranhos.

A Segunda Guerra Mundial, a Guerra Afegã-Soviética da década de 80, Chernobyl. O quotidiano imerso na sua rotina de normalidade não é o que S.A. tem documentado, ainda que paradoxalmente isto tenha convergido para compor uma visão mais nítida dos processos históricos que são o pano de fundo dos seus livros. E esta nitidez advém sobretudo do facto de o objecto de S.A. não ser tanto relações de causa e efeito capturados na tentativa abstracta de reconstruir as leis gerais que guiam e decidem processos históricos, mas pessoas, sozinhas com as suas emoções, as suas memórias, os seus pensamentos, a sua imaginação, as suas perdas e derrotas, as suas nostalgias. S.A. tem sistematicamente escrito sobre gente em tempos de crise, gente na longa e solitária travessia de experiências traumáticas. Os livros de S.A. são, deste ponto de vista, uma experiência que testa os limites da nossa tolerância ao sofrimento. A própria admite que entre terminar de escrever o seu primeiro livro War’s Unwomanly Face (1985) e escrever Zinky Boys (publicado em 1992) a sua tolerância para o sofrimento tinha-se esgotado completamente.

Enquanto leitores de S.A., de alguma forma tornamo-nos parte de uma longa tradição que tem a sua origem entre os espectadores de tragédia grega, quando ler (ou assistir) se configura não apenas como um acto privado, mas como um acto cívico e político. No fim de ler S.A. o percurso que fizemos não é da ordem do nosso entretenimento, mas antes o do facto de estarmos mais alertados para a crueldade da vida, algo que em qualquer circunstância não devemos pensar que podemos ignorar. Isto é talvez uma descrição capaz da atmosfera dos livros de S.A. e daquilo que os motiva.   

Suspeito que este ano a academia sueca cometeu um acto que é um favor aos leitores deste planeta. O facto de S. A. ser uma autora de não-ficção é o que eu gostaria de descrever aqui como um não-debate[4], uma questão de resto muito menos interessante do que a ideia de que o gesto de premiar a obra de S. A. não será, nem no Ocidente, nem muito menos na Rússia de agora (como não foi nas datas de publicação destes livros)[5], entendido como um acto politicamente desinteressado.

Colocar os livros desta autora mais ou menos obscura sob o holofote gerado pelo prémio é um acto que convida a pressão da opinião pública mundial para a relação bastante dolorosa entre questões privadas e políticas na União Soviética e na Rússia de hoje; e os livros de S.A. todos eles lidam com momentos traumáticos na memória colectiva soviética.

Num conto de Mavis Gallant é possível ler-se esta descrição acerca de uma das personagens: “Pessimistic in the way women actually become when they settle for what exists.” Lembramo-nos desta frase quando em entrevista à New Yorker, S.A. explica a sua opção predominante por vozes de mulheres: “Women tell things in more interesting ways. They live with more feeling. They observe themselves and their lives. Men are more impressed with action. For them, the sequence of events is more important.”[6]

O segundo livro de S.A., cujo o título em inglês tem a duvidosa tradução de Zinky Boys (alguns críticos preferem a tradução alternativa Boys in Zink e foi com este título que os primeiros excertos foram publicados em inglês, em 1990, pela Granta[7]), compila uma série de relatos sobre a guerra Afegã-Soviética. A escolha de vozes predominantemente femininas é ilustrativa do ponto de vista da autora, citado acima. Os relatos dos soldados que regressam servem de contraponto aos relatos das mães e mulheres daqueles que não lograram regressar, tal como os relatos das mulheres que serviram em cargos médicos ou administrativos no Afeganistão de alguma forma colocam os homens no nexo de outros tantos papéis em relação a mulheres: filhos, maridos, amantes, vítimas de violência e perpetradores dela.

A guerra Afegã-Soviética é um evento desastroso na opinião pública da altura e é frequentemente apontado como o acontecimento que precipita a dissolução do exército soviético. A escassez de equipamentos adequados, os baixos salários, a falta de condições de treino e a consequente inexperiência dos soldados (a guerra foi maioritariamente combatida por recrutas entre os 18 e os 20 anos de idade), tudo isso é amplamente documentado pelos testemunhos compilados por S.A. É acessório falar aqui daquilo que foi a recepção da opinião pública russa (um apêndice do livro publica cartas de vários leitores) quando os primeiros relatos do livro de S.A. começaram a ser publicados em jornais na Rússia. Mas a carta de um leitor que se queixa a S.A. de que todos sabem que há uma distância muito grande entre a realidade e aquilo que os jornais russos publicam, e que os relatos dela vêm perturbar o status quo de um modo que roça a falta de pudor, pode ser citado como um exemplo ilustrativo do contexto da recepção do trabalho de S.A. Este desfasamento entre realidade e uma opinião pública manipulada é ainda demonstrado num aspecto particularmente cruel: o livro intitula-se Zinky Boys numa alusão aos caixões de zinco fechados (no livro apenas uma família logra ver o rosto do filho depois de morto) em que os soldados eram enviados para casa, o que permitiu que durante boa parte da guerra esta fosse retratada não como uma guerra mas como uma intervenção militar com funções predominantemente humanitárias. “Dever internacional” era a expressão com que as funções destes recrutas eram descritas. Dizer que esta geração, no regresso, se sentiu traída pela pátria não é uma descrição suficiente, e o livro de S.A. vem colmatar essa falta.  Num dos relatos (p. 29, 31, 32) uma mãe diz:

Yura was my eldest son. A mother shouldn't admit it, probably, but he was my favourite. I loved him more than my husband and my younger son. When he was little I slept with my hand on his little foot. I wouldn't think of going to the cinema and leave him with some baby-sitter, so when he was three months old I'd take him (together with a few bottles of milk) and off we'd go. I can honestly say he was my life. I brought him up to model himself on figures like Pavka Korchagin, Oleg Koshevoi and Zoya Kosmodemyanskaya... He understood ideals but not real life... Then one day, strangers came to the door and I knew from their faces they were bringing bad news. I stepped back into the flat. There was one last, terrible, hope: "Is it Gena?" They wouldn't look at me but I was still prepared to give them one son to save the other.

Assim, é também neste apecto que entendemos como um livro pode iluminar aquilo que, neste caso, muito literalmente nunca seria dito. E este é um dos aspectos mais cruéis do livro, porque nos permite entender que esta falta de esclarecimento da opinião pública, que acaba por vir a condenar esta guerra em termos que não estão muito afastados da do Vietnam no Estados Unidos, é um dos motivos pelos quais estes soldados foram entendidos no regresso quase como criminosos e, em muitos casos completamente alienados socialmente. O livro de S.A. de alguma forma tenta preencher esta lacuna e é eficaz em demonstrar que o processo de responsabilização por uma guerra deve ser um processo colectivo, que envolve a sociedade civil e militar. (De alguma forma, a pertinência deste tipo de debate é tanto mais visível hoje, sobre a responsabilização dos Estados Unidos pelas suas sucessivas campanhas no Médio Oriente, um debate dolorosamente actual face aos acontecimentos não apenas das últimas semanas mas dos últimos anos.)

E aqui podia ser feita uma última generalização sobre o significado da obra de S.A., naquilo em que esta tenta preencher uma lacuna na história de uma memória colectiva, o seu trabalho é o de, de alguma forma, restaurar o que já não pode ser recuperado. E isso é ainda o que esta relação entre literatura e memória colectiva pode fazer por nós, ou como se lê nas últimas linhas do livro, na reprodução do epitáfio de um dos soldados:

 

“Died defending his country.
The whole earth is a desert without you.”

 

[1] Sara Danius.

[2] "As a young journalist, in her native Belarus, Alexievich had found that the newspapers failed entirely to represent what made reality interesting to her. She said, “I began to understand that what I was hearing people say on the street and in the crowds was much more effectively capturing what was going on than anything I was reading.” Philip Gourevich em Human Rights Watch. Este artigo inclui um excerto de Voices from Chernobyl. Outro pode ser lido na Paris Review.

[3] http://www.kenyonreview.org/journal/novdec-2015/index/#.VjhW1eWYi9E.twitter

[4] Philip Gourevich na New Yorker: The second writer to win the Nobel, back in 1902, was Theodor Mommsen, the first of several historians and essayists to win the prize. Bertrand Russell was one; Winston Churchill was another. But it has been more than a half century since any such recognition—a half century that has seen an explosion of great documentary writing in all forms and lengths and styles, and yet there is a kind of lingering snobbery in the literary world that wants to exclude nonfiction from the classification of literature—to suggest that somehow it lacks artistry, or imagination, or invention by comparison to fiction. The mentality is akin to the prejudice that long held photography at bay in the visual-art world. 

[5] This year, in Izvestia, Zakhar Prilepin, one of Russia’s best-known writers, said that Alexievich was “not a writer,” and that she had been chosen only for her opposition to the Kremlin—and for not actually being Russian. “We get the picture: Bunin, Solzhenitsyn, Pasternak, Brodsky,” he wrote. Alexievich’s agent, Galina Dursthoff, who lives in Cologne, told me that she had accumulated a pile of hate mail from Russia comparable to the pile of congratulations from elsewhere in the world. The writers blasted the Nobel committee for awarding the prize to “a Russophobe” as well as “a Jew and a lesbian.” (Alexievich is not Jewish and has never made any public statements about her personal life.) Masha Gessen, “The Memory Keeper: The Oral Histories of the New Nobel Laureate.” 

[6] Masha Gessen, idem

[7] Granta, Boys in Zynk. Em português, sobre a autora, é possível ler-se o artigo de Luís Miguel Queirós no Público.

Que fazer, senhor juiz?

De mindinho em riste para melhor saborear o café, revela um imberbe quase trintão que pondera ser juiz. Anos de privação semearam-lhe um complexo de inferioridade que o leva a desbaratar o dinheiro que não tem em futilidades tais como telemóveis equiparáveis a naves espaciais ou relógios da dimensão de meio braço. Em virtude de nunca ter entrado numa universidade e de não ter convivido com o que apelida de “gente elevada”, tenta a todo o momento provar que não é por falta de inteligência ou de conhecimentos que não está onde julga que merecia. Não obstante careça de pensamento crítico, garante o folgazão ter lido a obra completa de Foucault e jura ter fruído de diversas páginas de Kant, mesmo que decepção seja a palavra que lhe ocorre quando lhe perguntam se aprecia algum trabalho dos referidos autores. 

Depois de comprar um carro, uma vivenda e de se revestir de pequenos luxos patrocinados pela Lacoste ou pela Apple, cursar Direito e ascender a juiz talvez corresponda nas fantasias deste escravo da cobiça a uma coroação que a muitos encherá de inveja. Não admitindo opiniões que enfraqueçam esta sua infantil forma de pensar, não parece que o comova saber que sete ou oito dos nossos melhores escritores (Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, Mário Cesariny ou Eugénio de Andrade, por exemplo) não concluíram qualquer curso universitário, e muito menos exerceram cargos na administração da Justiça do Estado. Mais do que desenvolver um talento ou aprender a desempenhar um ofício, o candidato a juiz suspira por ser admirado por quem nunca o admirou. Alimenta-o um exibicionismo e um desejo de vingança contra o mundo e contra si próprio por não ter sido desde início o que agora pretende ser. Dificilmente a acumulação de medalhas, diplomas ou dispendiosos objectos aniquilará as suas mais tenebrosas memórias. És juiz, e agora? Não deixaste de ser quem eras. 

 Expressões como “aprende a amar-te” não iluminam corações mergulhados na escuridão.  A auto-ajuda não funciona, entre tantos outros motivos, por se esgotar numa sucessão de frases esvaziadas de sentido. Forçamos os sorrisos, como nos é pedido pelo phd em felicidade, até nos tornarmos sorridentes,  e substituímos o pessimismo pelo optimismo, e atiramo-nos da ponte. Existe nestes livros uma obsessão com a alegria, tropeçamos num ror de dicas e passos a seguir para perdermos a sisudez. Mas a vida prática precisa da filosofia, da história ou da literatura. A procura do saber ou, como diria Ortega y Gasset, o incessante esforço para encontrar convicções acerca das coisas, do mundo e do universo, é o caminho que nos ajudará a escapar deste caos chamado vida. Num texto intitulado A Missão da Universidade, assinala o espanhol que cabe à universidade o ensino de uma cultura que não seja mero ornamento, pois é a cultura que salva os homens da sua tragédia, que os ensina a viver no seu tempo: não basta estar preparado para exercer uma profissão, é preciso viver à altura dos tempos. O homem que não vive à altura do seu tempo, acrescenta Ortega y Gasset, vive aquém do que deveria ser a sua própria vida. Como resolvo a minha vida, como me poderei começar a aceitar? Comprei tudo o que o dinheiro poderia comprar, segui uma série de fantasias que descambaram nesta tristeza, que fazer? Que fazer, senhor juiz, se não corremos para conhecer? 

A literatura no estômago

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A editora Assírio & Alvim conta no seu catálogo com um pequeno panfleto intitulado A Literatura no Estômago, de leitura obrigatória para todos quantos se enfadem só de ouvir a expressão “meio literário”. O meio literário francês repudiado por Julien Gracq em 1950 não cheira pior do que o meio literário português de hoje. Como não é habilidade louvável, essa de distinguir níveis de podridão, antes importa assinalar que Gracq, homem seríssimo, como comprova a recusa do prémio Goncourt (em 1951), não passava por hipócrita. Queixava-se do “vedetariato do escritor” (expressão a que recorre Ernesto Sampaio no texto de apresentação) ou da incapacidade crítica da parasitagem literata instalada nos jornais, nas universidades ou nos júris dos prémios, sem desejar ascender à posição de vedeta.

O texto de Julien Gracq ensina-nos que o charlatanismo ou o carreirismo não são especificidades portuguesas. Ainda que indigne ao patriota português saber que não há nada à face da Terra que já não tenha sido feito por alguém, não parece razoável acreditar que certas singelas práticas, tais como atribuir cinco resplandecentes estrelas (para os que não sabem, a literatura resume-se às estrelas, aos adjectivos e ao gosto / não gosto) a livro dado à estampa por amigo ou amigo do amigo (“Rimbaud redivivus”), sejam originalidade lusitana. A Literatura no Estômago é uma obra sobre este tempo, sobre qualquer tempo. Quando na apresentação descreve os prémios literários como um “acúmulo de pequenas corrupções e imposturas, de invejas e conspirações ridículas, de conluios vergonhosos entre jurados, de mandarinatos e tráficos de influência”, Ernesto Sampaio está a reprovar a forma como sempre se distribuíram honrarias na literatura. Não importa que estejamos em 1950, em 1985 ou em 2015. Os prémios constituem problema num planeta habitado por mamíferos da ordem dos primatas, isto é, por seres corruptíveis e parciais. Escreve Gracq que há em literatura lugares invejáveis “que se distribuem como essas pastas ministeriais caídas nas mãos de candidatos em nada indicados para o efeito senão pelo facto de estarem sempre lá.” Os que estão sempre lá: os que saltam de apresentação em apresentação, os que têm lugar cativo nessa multiplicidade de festivais literários montados com o intuito de glorificar os que sempre lá estão, os que não desmontam, que não escrevem, nem lêem, os que só têm tempo para os eventos e para debitar  frases redundantes e ocas.

“Um ansioso, um nervoso. Aqui estou! Aqui estou – aqui estou sempre!”, brada o escritor francês que, segundo Gracq, existe muito menos na medida em que é lido do que na medida em que dele falam. O presente português é ainda mais negro. O sucesso do escritor lusitano também depende do número de vezes que aparece. Quem não se mostra, cai no esquecimento. Aparecer e opinar. Estar sempre lá. Os condimentos que conduzem à fama desviam da arte. A literatura, esta literaturazinha que não reside nos livros, que depende de um constante espectáculo montado por e para situacionistas, é uma literatura burocratizada que somente serve tarefeiros incapazes de se dedicarem à reclusão e ao silêncio ou de sacrificarem tudo em prol de duas frases bem escritas. E por isso oscila entre a retrete e o vómito. Em que escritores pensámos ao longo da leitura de A Literatura no Estômago? Nos franceses de há sessenta anos, nos portugueses de agora? Pensámos que a literatura, como quase tudo em que o ser humano toca, é um lixo.

 

Da incapacidade de ser dissimulado e escrever

Adultos sabendo ser adultos

Adultos sabendo ser adultos

 Houve uma altura em que acreditei que um pouco de dissimulação não fazia mal a ninguém, que até era necessária para existir. Quem não mente a si mesmo de maneira a manter um emprego? Quem não sorri quando tem vontade de bater? Provou-me a experiência que a dissimulação pode ser nociva. Para brincar com o fogo é preciso ser dotado de um talento inato, de muitas horas de prática ou de uma capacidade incrível de resistência à dor. 

 Não é fácil não ter vergonha na cara durante trezentos e sessenta e cinco dias por ano ou conviver com gente odiosa por mera conveniência ou oportunismo. Muitos tentaram e sofreram. Não é fácil por vários motivos. Alguém que pretenda brincar com a dissimulação deve compreender que lida com outros dissimulados, que neste jogo não é possível desistir a meio ou que há consequências para quem desistir do jogo. Interpretando papéis e alimentando mentiras, não esperemos entrar num jogo de máscaras imunes ao asco por terceiros e por nós mesmos. Assaltam-nos perguntas como: para onde foi a dignidade? Valerá a pena o esforço de me ter tornado numa mentira? Se a dissimulação nos rouba o sono, se nos enche de remorsos, arrependimento e culpa, é quase certo que não fomos feitos para esta arte. E isto pouco tem de bom, pois quer dizer que temos dificuldade em aceitar que o mundo existe como existe, em aceitar que nada presta, inclusive a nossa pessoa. Não aceitar estas coisas é o primeiro passo para nos perdermos em termos profissionais e para sermos solitários, escutando aquele silêncio insuportável das frases que insistem em nos martelar o cérebro. 

Um conhecido publica na nossa revista sem apreciar nada daquilo que nessa revista se publica. Continuamos a publicá-lo e revoltamo-nos por de nada ele gostar. Não aceitamos que ele exista dessa maneira. Ele não gosta de nós, não gostamos dele, apertamos a mão, sorrimos, publicamo-nos. Privamos com um editor que odiamos de morte. Um tipo enterrado em mediocridade. Desprezamos o seu trabalho. Ainda assim, sendo mediático, estamos dispostos a vender a alma lhe para roubar algum do mediatismo. A nossa obra precisa de publicidade, pensamos, e escrever não basta. Chega o dia em que o editor medíocre nos enterra o punhal nas costas, como se previa, tendo em conta o seu comportamento com todos os que não se submeteram ao seu estilo de zero fanfarrão. Incomoda-nos igualmente que certo parasita deambule de apresentação em apresentação, de festival em festival, motivado pela fama. Apelidar-nos-ão de frustrados, com razão. Um homem que não dorme é muito frustrado. Um homem que pensa nos outros é frustrado. A frustração transcende o parasita: quanto mais queremos fugir da dissimulação que quase nos matou, mais a realidade nos força a constatar que a dissimulação constrói carreiras. Ser livre é importante. E viver de consciência tranquila. Ser talentoso é algo que poderá suscitar inveja ou admiração em muitos. Nada disso é mais relevante para fabricar carreiras do que estar no sítio certo à hora certa, do que ser criterioso nos likes, nos sorrisos. Isto é de cínico. O sucesso parece, por vezes, uma gestão da capacidade de viver de aparências. Mas imaginemos que um dia determinada pessoa que nos perturba chega com a lengalenga do costume e nos afastamos, dizemos que não, recusamos o jogo do vómito, e seguimos caminho, um caminho que até pode ser lento. Que bom poder imaginar.