K. CANGURU

                                   Vives no desejo de quem te quer: A casa mais ampla: Ainda em expansão.

 

I.

O meu amigo trabalhava na Google, andava num carro a filmar a Austrália. O carro da Google levantava o pó vermelho do deserto e a câmara filmava as nuvens que se formavam; às vezes ia ter com Canguru e lia-lhe “O Principezinho”.

 

II.

 O meu amigo foi apanhado pela policia do deserto a conduzir com álcool no carro da empresa. Prenderam o meu amigo numa prisão do deserto. Depois soltaram o meu amigo e ele foi para o aeroporto. Entrou num avião - O avião foi para a América.

Quando estavam por cima da estátua da Liberdade as hospedeiras disseram para apertarem os cintos e os meninos olharam pela janela para ver a América. Uma rapper feminista de Manhattan despertava e olhava para o avião da janela. Regou as flores enquanto tomava um Nescafé na chávena colorida. Escreveu num guardanapo que “Os sonhos americanos são os mais húmidos”.

 

III.

Canguru sentia-se sozinho no meio da Austrália porque o seu amigo tinha-se ido embora.

Canguru tinha só uma pata porque tinha pisado uma mina com a outra. O meu amigo ligou-lhe a pata doente mas três dias depois o veterinário do deserto cortou-lhe a pata doente. O meu amigo comprou uma pantufa cor-de-rosa e calçou a pantufa ao Canguru. Meteu-lhe algodão dentro das orelhas peludas para não ouvir as explosões. Comprou uns phones cor-de-rosa e felpudos e meteu-os nas orelhas do Canguru, ligou-os a um mp3 e meteu o mp3 na bolsa do Canguru. Meteu também na bolsa do Canguru uma carta de amor de uma antiga namorada de Melbourne, um santinho de Amsterdão, um mapa da Austrália bem dobrado e um girassol que ficava metade de fora. Meteu também um trevo de quatro folhas dentro do “Principezinho” e meteu também “O “Principezinho” dentro do bolso do Canguru – Toma, isto é tudo o que tenho, se te sentires sozinho e com medo, vai a uma estação de serviço e pede a um gasolineiro que te tire do bolso o livro e te leia até não teres mais medo, os gasolineiros quase não têm trabalho, só passa um camião de duas em duas horas, entretanto os gasolineiros dormem e esperam os Cangurus. Lembra-te que a noite já não existe, já sabes que às vezes o céu fica um bocado escuro, acontece todos os dias quando o sol se põe mas não é noite – Disse ao Canguru e foi trabalhar para a ONU. O Canguru saltava com a pantufa e dançava a música que lhe entrava nos phones cor-de-rosa.

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O nome que no peito escrito tinhas

Dançavas com ele. A tua face tombada no ombro dele. Esfregavas-te nele ou ele em ti. Aquela manápula peluda descia-te pelas costas. Outro whisky. Mais um copázio para suportar a visão. Encha até cima. Sem pedras de gelo, volte a encher. Isto não é para meninas. Por falar em meninas, podia chorar. Pregado ao balcão, via-te gingar feliz da vida com outro homem. Aperaltara-me a conselho de uma amiga tua, comprara camisa azul bebé, último berro da moda macho alfa, despachara aquela cárie que me deformava o sorriso e espetara brilhantina na guedelha, para quê?, para te pedir uma oportunidade. Quimeras. Está tão escuro, não vejo, não. Dançavas com outro e eu não dançava com ninguém, eu sem parceira que te fizesse frente, sem parceira nenhuma, condenado até à eternidade a não ter outra parceira, esparramado no balcão, enchendo-me de bebida na esperança de ganhar balanço para te roubar com um soco ao orangotango. Como me esqueceste? Foi ontem que me chamaste porco e mentiroso. Parece que foi ontem. Esqueceste-me tão depressa. Foi ontem que me ligaste dizendo que me desejavas como se nunca me tivesses tido. Que me tinhas ofendido a quente e que o universo nos juntava. Fiz triste figura na discoteca: acendi um cigarro que me abananou, levei um merecido par de tabefes do porteiro por fumar em lugar proibido e ainda me ajoelhei chorando e cuspindo sangue à beira de uma sanita a transbordar de fezes. Não viste nada disto. Dançavas com outro. A noite inteira agarrada a outro. Num táxi com outro pela noite fora. Retesei-me à vossa passagem e entornei uma gargalhada para cima do barrigana sentado a meu lado, um impulso levou-me a fingir que estava feliz e que era indiferente à tua existência. Nem devem ter reparado na minha presença, tão cinzento que ando, que sou. Saíram de braço dado e desinchei, o ar saiu-me todo, fiquei balão vazio, raquítico. Devem ter tomado banho e dormido juntos e trocado juras de amor. Dancei o resto da noite de garrafa colada ao peito, arrotando em honra do teu novo namorado e da minha interminável infelicidade. Escrevo-te uma carta. Que sejas. Que tenhas uma boa vida. Risco. Que encontres aquilo que querias. Risco e rasgo o papel. Desisto da carta, a água está fria, o rio arrefece à noite, constipo-me, ninguém quer saber das minhas constipações. A dona da pensão, deveria ter mais consideração por esta senhora, é a minha única família. Duzentos euros por mês e torradas todas as manhãs. Reverberar. Li num jornal. Bela palavra para incluir numa carta. A lua reverbera uma luz tão linda que só faltas aqui tu para que. Para que nada. Amo-te, não te disse, não te cheguei a dizer que te amava e agora é tarde, tens outro, danças, dormes com outro, partilhas o teu chuveiro com outro. Fazes-lhe aqueles olhos de chinesa? E aquelas covinhas nos cantos da boca, também lhas mostras?

Leve


Ela passa aqui todos os dias ao final da tarde com a mochila às costas. Quando vem feliz, corre desaforida, não olha ninguém, corre, corre e não me vê. Quando vem triste ou cansada ou acompanhada, passa devagar, com uma respiração tranquila, um sorriso simpático e cumprimenta toda a gente com quem se cruza. Não sei se sabe quem sou, não se deve lembrar, era muito nova, muito mais nova. Não se lembra, não se pode lembrar. Não sei ao certo que idade tem.

É muito pequena, muito branca, muito magra e tem o cabelo muito comprido, demasiado comprido, sempre solto, nunca o traz apanhado. Quando passa por mim a correr, o cabelo voa e não me deixa ver a sua cara. Isso irrita- me.

Sento-me no alpendre e espero-a. Pouco depois, oiço-a cantar e vejo-a antes que me veja a mim. Está distraída, vem distraída, não me parece triste, deve estar cansada, deve ser isso. Hoje traz um vestido preto pelos joelhos que deixam perceber uma ferida grande na canela esquerda. 

Quando percebe que a estou a observar, pára e cumprimenta-me envergonhada. Afasta-se, mas chamo-a de volta e digo: 

“Como te chamas?” 
“Cláudia.” 
“Que idade tens, Cláudia?” 
“Onze.” 
“És muito parecida com a minha filha, sabes?” 
“Não a conheço. Como se chama?” 
“Comprei-lhe um vestido para oferecer no seu aniversário.” 
“É bonito?” 
“Eu acho que sim. É azul e branco. Gostas?” 
“Não o vi.” 
“Gostas das cores?” 
“De azul e branco?” 
“Sim.” 
“Gosto muito!” 
“Tenho medo que o vestido não lhe sirva.”  
“Isso seria triste.” 
“Ela é muito parecida contigo.” 
“Já me disse.” 
“Não te importarias de experimentar o vestido?” 
“Como?” 
“Se o vestido te servir, também serve a ela.” 
“Não posso experimentar um vestido que é para ela!” 
“Porquê?” 
“O vestido não é para mim!” 
“É para a minha filha, que é muito parecida contigo.” 
“Ela pode ficar zangada. Eu ficaria zangada se alguém vestisse a minha roupa.” 
“Ela não saberá.” 
“Isso não é certo. Não é certo mentir.” 
“É por uma boa causa, não achas?” 
“Qual causa?” 
“O vestido tem que lhe servir. Imagina como ficaria decepcionada se não 
pudesse usar o vestido.” 
“Oh.” 
“Não me queres ajudar?” 
“Ela mora com quem?” 
“Mora longe.” 

Quando entramos em casa, Cláudia senta-se no sofá. Nervosa, olha a sala e demora-se em cada canto, em cada pormenor. Pousa as mãos sobre as pernas, umas pernas finas, tão bonitas, tão delicadas. Joga o cabelo para trás das costas, puxa as meias brancas com força, tenta esconder a ferida. Ajoelho-me em frente dela, puxo a meia para baixo e pergunto-lhe como se magoou. Conta-me uma história de corrida desenfreada, uma brincadeira parva e uma pancada forte num ferro. Toco com o dedo e pergunto-lhe se dói. Diz-me que sim. Beijo a ferida e prometo-lhe que vai passar, que sarará rapidamente. Ela sorri e pergunta-me se pode usar a casa-de-banho.

Levo-a até lá, depois subo ao sótão, procuro as canetas de feltro, as velhas canetas de feltro. Desço, volto à sala, desvio a sapateira, olho a parede branca e oiço Cláudia:  

“O que está a fazer?” 
“Trata-me por tu, somos amigos.” 
“O que estás a fazer?” 
“Gostas de desenhar?” 
“Gosto muito. Porquê?” 
“O que gostas mais de desenhar?” 
“Animais, gosto muito de animais. Leões e girafas.” 
“Eu gosto de desenhar árvores e casas. Vamos desenhar nesta parede?” 
“Na parede?” 
“Não faz mal. Desenharemos em conjunto; o que me dizes? Tu desenhas os 
animais e eu as árvores.” 
“E uma casa.” 
“Uma casa junto dos animais selvagens?” 
“É a casa do caçador que os vai matar.” 

Começo a desenhar a cabana. Cláudia pega numa caneta cor-de-laranja, coloca-se de joelhos a meu lado e começa a desenhar uma girafa. Distraio-me e fico a olhá-la. Está muito concentrada, desenha tão bem, com muito cuidado para não falhar, com desejo de perfeição, a perfeição dela. Volto à cabana e tento concentrar-me, mas não consigo. 

“Gostas da tua mãe?” 
“Claro que gosto. Ela é linda.” 
“É tão bonita quanto tu?” 
“Muito mais bonita, muito mais.” 
“Devias cortar o cabelo, não gosto dele assim.” 
“Eu gosto e a minha mãe também.” 
“Ela também tem o cabelo comprido?” 
“Sim, mais comprido que o meu.” 

Levanto-me e levanto-a. É tão leve, tão fácil de pegar, de imobilizar, de dominar. Ela abre muito os olhos, está assustada. Pouso-a e aponto para os joelhos que estão muito vermelhos. Pergunto-lhe se não lhe dói e ela diz-me que não. Coloco as palmas de minhas mãos nos seus joelhos e fecho a mão com força até que ouvi-la gritar que estou a magoá-la. Rio-me e peço-lhe desculpa, digo que estou a brincar, que estou só a brincar. Cláudia quer sair, quer ir embora, corre para a porta, mas eu agarro-a pelo braço, tenta morder-me mas não consegue. Trago-a para junto da parede. A meu lado ela é tão pequena, tão frágil, tão vulnerável. Pego numa almofada e coloco à sua frente. 

“Vamos terminar o desenho.” 

Ganhar na dura guerra

Vendeu a cama dos pais a um vizinho enrascado, ainda tentou impingir a mobília da cozinha e da sala a uns quantos, mas o que lhe ofereceram não valia o esforço do transporte. Não pegava no carro por causa do preço da gasosa, e na mota que lhe ia fazendo o jeito não cabiam armários ou mesas. Deu cabo da tralha com meia dúzia de machadadas e aviou-se de lenha para o inverno. Pesava-lhe a memória dos pais e do irmão acabados de enterrar. Preferia dormir ou comer no chão a servir-se de objectos que lhe sabiam a uma felicidade antiga que mais era uma ruminante tristeza que lhe tragava tudo, inclusive a dentição. Zanzar pela casa em que crescera com os papás e o mano levados pelo cancro. Como custava, céus. No pâncreas, os três. Os quatro, qualquer dia. A bola de gosma no peito e no pescoço. Habitar um espaço outrora resplandecente. Que dor. Os três internados no mesmo hospital, os três tísicos, os três enterrados lado a lado no mesmo cemitério. Em que dia é que acabara aquele verão quente e infinito, repleto de brincadeiras e de esperança? Um lugar já escavado para o quarto. Tinha fome. Vivia com fome desde que a fábrica abrira falência. O carro fazia menos falta do que comida. Com muitas notas na mão haveria maior margem de manobra para comprar bifes iguais aos que a mamã fazia. Quem tinha uma lambreta não carecia de mais, quem não almoçava todos os dias não necessitava de um carro, ainda que o apego ao dito carro fosse tal que desse para chorar ao imaginar o dia da sua venda. Matutar. O carro fazia menos falta do que uma mulher que soubesse algo a respeito de ponto cruz ou de frango assado no forno com batatinha. As peúgas rotas e sujas, tão sujas que se aguentavam de pé sem a ajuda dos pés. As peúgas dotadas de vida própria, animadas pelo sarro. Ou surro. Ou sarro. Sujidade na ponta das unhas. Uma mulher trazia organização. Prendadas, como dizia a velha. O corta-unhas do velho pai no mesmo armário da infância e, depois da passagem do machado, dentro de uma saca de serapilheira, dentro de gavetas em forma de tecido para homens com cara de homem mas com um interior de símio. Uma mulher organizada e respeitadora, que salvação seria encontrar disso. O machado fazia falta. Ainda mais falta do que uma mulher. Nunca o venderia. Nunca, nunca me afastarei de ti, minha jóia. De um machado não se prescinde. O machado protegia dos assaltantes. O machado derrubava árvores. O machado no meio do mato. O machado matava cavalos. Machado partir cavalos ao meio. Homem menos homem menos homem rachar cavalos de vizinho mau e assar cavalos no espeto, acartar o cavalo aos bocados na traseira da Famel, enterrar o focinho do cavalo no pinhal, que os olhos dos cavalos, credo, assemelham-se a espíritos e a mulheres, ou melhor, prostitutas mortas, prostitutas decapitadas, decepadas pelo mesmo metal, pelo machado, imaculado machado, legado do papá.

O insulto

O insulto

Já nasceste a saber o que eu não sei 

António Franco Alexandre, «19», Duende

 

Em certas povoações da Sardenha, de Malta ou da Turquia, se um homem esmurrasse outro ou o esfaqueasse enquanto ambos estivessem entretidos a trocar insultos perante quem se juntasse para ver, isto podia ser entendido como falta de habilidade do que insultava para responder com um grau equivalente de elaboração e criatividade ao insulto que acabava de receber. Esfaquear um homem ou esmurrá-lo na Sardenha, em Malta ou na Turquia podia ser uma forma de fraqueza, porque sinal de falta de perspicácia.

            Quando Andrei começou a perceber o que se ia passar—na verdade cometeu o erro de confundir a dor com um desses estados de ansiedade que nos últimos tempos experimentava frequentemente—pobre coração de passarinho, diria a sua mãezinha e agora finalmente com alguma razão—experimentou uma tontura, uma breve sensação de desequilíbrio que correu ligeira como um gato do braço para o lado esquerdo do peito numa trajectória que se afundou numa vertigem e, segurando com mais força o copo de papel cheio de leite com café, sentiu a sala começar a girar, como se estivesse num carrossel, como se ele próprio não fosse um corpo fixo no tempo e no espaço. Quando a dor se descerrou inteira como um vidro que estava um pouco rachado mas que finalmente se decidiu a partir-se por completo, Andrei experimentou o breve momento de alívio que sentem os irreparavelmente culpados.

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