Ganhar na dura guerra

Vendeu a cama dos pais a um vizinho enrascado, ainda tentou impingir a mobília da cozinha e da sala a uns quantos, mas o que lhe ofereceram não valia o esforço do transporte. Não pegava no carro por causa do preço da gasosa, e na mota que lhe ia fazendo o jeito não cabiam armários ou mesas. Deu cabo da tralha com meia dúzia de machadadas e aviou-se de lenha para o inverno. Pesava-lhe a memória dos pais e do irmão acabados de enterrar. Preferia dormir ou comer no chão a servir-se de objectos que lhe sabiam a uma felicidade antiga que mais era uma ruminante tristeza que lhe tragava tudo, inclusive a dentição. Zanzar pela casa em que crescera com os papás e o mano levados pelo cancro. Como custava, céus. No pâncreas, os três. Os quatro, qualquer dia. A bola de gosma no peito e no pescoço. Habitar um espaço outrora resplandecente. Que dor. Os três internados no mesmo hospital, os três tísicos, os três enterrados lado a lado no mesmo cemitério. Em que dia é que acabara aquele verão quente e infinito, repleto de brincadeiras e de esperança? Um lugar já escavado para o quarto. Tinha fome. Vivia com fome desde que a fábrica abrira falência. O carro fazia menos falta do que comida. Com muitas notas na mão haveria maior margem de manobra para comprar bifes iguais aos que a mamã fazia. Quem tinha uma lambreta não carecia de mais, quem não almoçava todos os dias não necessitava de um carro, ainda que o apego ao dito carro fosse tal que desse para chorar ao imaginar o dia da sua venda. Matutar. O carro fazia menos falta do que uma mulher que soubesse algo a respeito de ponto cruz ou de frango assado no forno com batatinha. As peúgas rotas e sujas, tão sujas que se aguentavam de pé sem a ajuda dos pés. As peúgas dotadas de vida própria, animadas pelo sarro. Ou surro. Ou sarro. Sujidade na ponta das unhas. Uma mulher trazia organização. Prendadas, como dizia a velha. O corta-unhas do velho pai no mesmo armário da infância e, depois da passagem do machado, dentro de uma saca de serapilheira, dentro de gavetas em forma de tecido para homens com cara de homem mas com um interior de símio. Uma mulher organizada e respeitadora, que salvação seria encontrar disso. O machado fazia falta. Ainda mais falta do que uma mulher. Nunca o venderia. Nunca, nunca me afastarei de ti, minha jóia. De um machado não se prescinde. O machado protegia dos assaltantes. O machado derrubava árvores. O machado no meio do mato. O machado matava cavalos. Machado partir cavalos ao meio. Homem menos homem menos homem rachar cavalos de vizinho mau e assar cavalos no espeto, acartar o cavalo aos bocados na traseira da Famel, enterrar o focinho do cavalo no pinhal, que os olhos dos cavalos, credo, assemelham-se a espíritos e a mulheres, ou melhor, prostitutas mortas, prostitutas decapitadas, decepadas pelo mesmo metal, pelo machado, imaculado machado, legado do papá.