Caminhar na floresta

Pombares, trás-os-montes, 2 de novembro de 2024

Caminhar. Imaginar uma República dos Viventes. Ter a noção e a coragem de nos sacrificarmos para nos igualarmos a um carvalho. Não basta abraça-lo. Muito menos cortá-lo e, depois, elogiar as brasas portentosas da lareira. É preciso respeitá-lo, como se respeita o vizinho da frente de quem gostamos. Ser um transfuga de espécie. Superar o humanismo, um dos poucos «ismos» imune à razão crítica, kantiana e pós-kantiana. Ninguém se preocupa com o seu grau de impostura.
«Obedece aos sentidos», dizia Feuerbach. Mais atual do que a atualidade, após um século e meio a venderem-nos a ideia de um progresso imparável. Há até quem se diga, sem qualquer sombra de dúvida, «progressista». Mais atual, dizia, do que a «exaltação do banal». Democratizar por baixo.
Numa floresta, depois da adaptação à potência da vida, experimenta-se uma vertigem horizontal. Sem esperança, sem receio. Um instante prolífico, mais vibrante do que perfurante. Um clarão, sim, mas um clarão lento.
A biodiversidade é quase só um conceito. «Meninos, vamos falar de biodiversidade». Como se fala da descoberta do fogo. Sabemos, desde sempre, que «Não é meia noite quem quer», mas por que razão amar os outros seres vivos como nos amamos ao espelho, aos espelhos, deve ser algo demasiado grande para nós?
Estamos obcecados pela economia da atenção: business, com certeza. Mas também uma forma de escapar ao apocalipse do vazio (À Espera de Godot). Em ambos os casos: «preparar-se para futuro nenhum».
Caminhar numa floresta, sem esperar alcançar uma clareira, ter a certeza de que o finito contém o infinito. Os anjos não descem do céu, emergem da Terra.
Esqueçamos a ode ao homem de Sófocles. Levemos às últimas consequências o evangelho negativo de Bartleby («I would prefer not to»). Como uma folha no outono, que, após o esplendor cromático, se transforma em estrume que fecunda a Terra.
E nós, dia após dia, a boxear no vazio. Como o guarda noturno do museu que desconhece o valor da coleção que vigia.
Os adolescentes, preocupados com o power dressing. Os adultos, viciados na economia do lamento. Pedro Mexia, interessado «pelo mergulho em si mesmo». Eu, a querer apagar o «mesmo». Polícia de pleonasmos.
Fernando Pessoa, a indisciplinar as almas. Marc Augé, a mapear «não-lugares». Derrida, que jogava ténis para se equilibrar no patamar social ao qual a sua filosofia poética o catapultou, definindo, com milhares de palavras, a sua «mythologie blanche». Eu, a admirar os franceses por resistiram à a(c)tualização da escrita. A imaginar, com Derrida a espreitar com cima do meu ombro, uma forma de escrever que não se relacionasse com a oralidade. Uma escrita que fosse o que era, e não o que significasse.
Eu a caminhar na floresta, cada vez mais fundo, cada vez mais pleno, cada vez menos eu. Como o mundo de um homem feliz é diferente do de um infeliz, escreveu o infeliz Wittgenstein.