Eros, Amargo e Doce de Anne Carson (Edições 70, 2024)
/Anne Carson escreveu Eros, Amargo e Doce, agora publicado nas Edições 70 com tradução minha, em 1986. É um livro que faz parte da mesma tradição que é iniciada por Platão em O Banquete: é um discurso sobre eros. Enquanto discurso sobre eros é um objecto inesperado: abre com uma imagem que surge num conto de Kafka, “O Pião,” sobre um filósofo cujo passatempo mais obsessivamente cultivado era tentar deter em plena rotação piões lançados por crianças que ele costumava observar no seu tempo livre, e encerra-se pedindo ao leitor que imagine uma cidade onde o desejo deixou de existir. Sendo um texto relativamente breve, a cronologia aqui revisitada é extraordinariamente vasta: de Safo, que terá sido a primeira pessoa a descrever eros como amargo e doce, a Barthes, passando por Homero, Sófocles, Stendhal, Virginia Woolf, Sartre, Foucault, Velázquez. O fio condutor do ensaio são os dois extremos de eros, a amargura e a doçura. Pensei durante muito tempo, e talvez ainda o pense, que Eros, Amargo e Doce seja a melhor introdução breve que conheço à cultura grega antiga. Quase todos os autores importantes são aqui discutidos do ponto de vista de um aspecto central do seu pensamento, eros. Por outro lado, ao tentar contar a história de eros enquanto conceito vemos os movimentos de progresso e retrocesso que marcaram o modo como ele foi inventado no mundo grego. Da voz arcaica de Safo que o vê como polarizador da alma humana, que o vê como coisa que nos divide e dividindo-nos nos revela, ao mesmo tempo destruindo e deixando viver, até ao melodrama que se procura sempre prolongar nessa forma de proto-telenovela que são os romances gregos que datam já da era cristã, o ensaio conta uma história possível do modo como o desejo é fundamental à vida.
Anne Carson é uma das pensadoras mais inclassificáveis do nosso tempo. As suas associações são tão inesperadas quanto essenciais. Enquanto poeta, Anne Carson raramente tem intuição para o que é a música de um verso. O que é poético na sua poesia é normalmente da ordem da elipse. As suas elipses são tão certeiras que às vezes nos deixam sem ar. É, através de uma elipse, cujo tempo é a velocidade aguda da poesia, que podemos unir, por exemplo, um homem que abre um chapéu de chuva negro numa planície ao deus dos mortos, Hades, no Hino Homérico a Deméter. O que une um gesto feito num dia do século XX numa planície gelada de um continente que não é a Europa ao deus dos mortos tal como pensado por uma inteligência arcaica talvez do século VI a.C.? É neste tipo de associações que a poesia e a prática de ensaísta de Anne Carson se cruzam.
Eros, Amargo e Doce é, então, um ensaio que se apropria de uma maneira de pensar específica da poesia. Abre com Kafka e tem qualquer coisa de kafkiano. Por exemplo, quando para falar da condição paradoxal de eros, Anne Carson recupera uma imagem de um fragmento perdido de uma tragédia de Sófocles e essa imagem permite uma investigação de um estado paixão como análogo à condição do gelo nas mãos de crianças. A princípio é um prazer bastante novo, mas não é possível continuar a segurá-lo sem que ele se derreta. O instante do gelo derreter e o paradoxo da resposta, de não poder largar, repetem a condição paradoxal de eros, o amargo e doce que dá título ao poema. Uma das reflexões mais estruturais do livro é uma crónica da forma como a introdução da escrita, no momento em que é inventada, muda a nossa relação com o pensamento, com a privacidade, com os próprios sentidos. Publicamos abaixo um excerto, sobre eros, princípio e revelação. Acidentalmente, é também sobre a distância que separa a filosofia da sofística (Sócrates é uma espécie de deus ex machina neste ensaio).
Como Sócrates a conta, a tua história começa no momento em que Eros entra em ti. Essa incursão é o maior risco da tua vida. O modo como reages é um índice da qualidade, sabedoria e decoro do que está dentro de ti. Conforme reages, entras em contacto com o que está dentro de ti, de forma súbita e alarmante. Entendes o que és, o que te falta, o que podias ser. Que é este modo de percepção, de tal maneira diferente da percepção normal que é melhor descrevê-lo como lou- cura? Como é que, quando te apaixonas, parece que de súbito estás a ver o mundo como ele realmente é? Uma atmosfera de conhecimento flutua sobre a tua vida. Pareces saber o que é real e o que não é. Algo te eleva em direcção a um entendimento tão completo e claro que te torna jubilante. Esta atmosfera não é um delírio, segundo a crença de Sócrates. É um olhar para baixo através do tempo, para coisas que conheceste em tempos, tão surpreendentemente belas como o olhar do teu amante (249e–250c).
O ponto no tempo que Lísias apaga do seu logos, o momento de mania quando Eros entra no amante, é para Sócrates o único e o mais importante momento a confrontar e compreender. «Agora» é uma dádiva dos deuses e um acesso à realidade. Compenetrares-te do momento em que Eros olha para a vida e entenderes o que está a acon- tecer na tua alma naquele momento é começar a entender como viver. O modo como Eros assume o controlo é uma educação: pode ensi- nar-te a verdadeira natureza do que está dentro de ti. Assim que o vislumbras, podes começar a tornar-te isso. Sócrates diz que é o vis- lumbre de um deus (253a).
A resposta de Sócrates ao dilema erótico do tempo é, então, a antí- tese da resposta de Lísias. Lísias escolhe suprimir o «agora» e narrar inteiramente a partir do ponto estratégico do «então». Do ponto de vista de Sócrates, riscar o «agora» é, em primeiro lugar, impossível, é uma impertinência do escritor. Mesmo que fosse possível, significaria perder um momento de um valor único e indispensável. Sócrates propõe, em vez disso, que se assimile o «agora» de tal modo que este se prolonga por uma vida inteira e para lá dela. Sócrates inscreveria o seu romance no instante do desejo.
Anne Carson, Eros, Amargo e Doce, Edições 70, 2024.