Um poema do novo livro de Ricardo Marques, «Didascálias»

REGRAS PARA EVITAR QUALQUER CRISE DE NERVOS

É preciso lutar contra a folha de cálculo que elimina, que despede
é preciso trabalhar contra aquilo que nos põe sem trabalho
é preciso saudar a poesia, tirá-la da torre e cantá-la
é preciso abandonar o que nos aprisiona futilmente
é preciso montar a tenda sobre as possibilidades
é preciso libertar a liberdade com que se nasceu
é preciso lutar contra o medo, com ou sem ele
é preciso vigiar de perto o que se conquista
é preciso conquistar o lugar que nos cabe
é preciso rejeitar frases postas na boca
é preciso deixar de ser um número
é preciso fugir de rajada à rajada
é preciso mentir só à mentira

é preciso questionar
é preciso dizer não
é preciso duvidar

e amar - verdadeiramente.


Didascálias, o mais recente livro de Ricardo Marques, também o mais recente da do lado esquerdo é apresentado hoje às 18h00 na Livraria Alfarrabista Miguel Carvalho (Adro de Baixo 6, Coimbra). A apresentação fica a cargo de Isabel Delgado.

Paulo Rodrigues Ferreira, Sonhos de Lobo

Paulo Rodrigues Ferreira
Sonhos de Lobo
Contos

Enfermaria 6, Lisboa, setembro de 2014, 96 pp.
Capa de João Alves Ferreira

8€

Para comprar

Na Fyodor Books
Ou envie-nos a sua encomenda para:
enfermariaseis@gmail.com

A Enfermaria 6 é uma plataforma editorial sem fins lucrativos. Todo o dinheiro resultante da venda dos exemplares será usado para financiar futuras publicações.

Já acreditei em Deus, no álcool, nas mulheres, nas crianças e nos animais. Acreditei até no poder do nada. Nesta fase em que me encontro, acredito em bares de alterne. Não me orgulho de ser quem sou. Quando o senhor prior me pousava a santa hóstia na língua, julgava que me salvaria, que teria um bom emprego, uma boa mulher. Agora acredito que não definharei se abocanhar ao mesmo tempo as duas mamonas da Shirley.

Estado de Natureza

Diamantino andava cada vez mais melancólico e nem os passeios ao canavial em frente da azenha o alegravam. De cada vez que pensava em Fernanda sentia uma dor alastrar pelo peito até à garganta, deixando-lhe a voz embargada.

No dia seguinte ao jantar na Associação, passou no bairro das Vivendas várias vezes na esperança de a ver. Diamantino sabia que mais dia, menos dia, ela iria apanhar o comboio e regressar à cidade, e por isso achava que não teria muitas oportunidades para lhe dizer o quanto a admirava.

Na quarta vez em que arrastava o passo junto ao muro da casa da Médica, depois de outros tantos bagaços, viu Fernanda pendurar roupa no estendal do alpendre e acenou-lhe da rua. Fernanda respondeu-lhe e Diamantino aproximou-se do portão e entrou sem esperar que ela o convidasse.

Era uma tarde muito quente e Fernanda vestia apenas uma camisola larga, o que o fazia suar ainda mais ao vê-la. Diamantino tentava secar as mãos nas calças e pensava: “Se ela me deixasse ficar com umas cuecas para recordação já ficava satisfeito.”

Quando se dirigiu a ela sentiu a voz falhar:

- Hoje sonhei contigo, Fernanda.

- A sério?

- Morra já aqui fulminado.

- Isso é… tão lindo, Diamantino.

- Sonhei que fazíamos o amor…

- Nunca pensei que pudesses sonhar uma coisa dessas.

- Bom, na verdade foi um sonho acordado, mas estava cheio de sono, por isso acho que pode contar.

- Acho que sim, mas o que interessa é que agora já estás acordado, não é?

- O que eu gostava era de voltar a ter o mesmo sonho esta noite. Mas se calhar não tenho sorte.

- Pois, se calhar não, como sabes os sonhos nem sempre se repetem.

- Tu podias dar-me uma ajuda.

- Pois, pois, mas isso é que não pode ser.

- Podias deixar-me ver-te as mamas…

- E porquê uma coisa dessas?

- Disseram-me que tinhas umas mamas bem boas.

- Quem foi que te disse tal coisa?

- Dizem por aí, eu só ouvi, não sei quem foi.

- É pena, já agora gostava de saber.

- Se me esforçar acho que posso lembrar-me de quem foi.

Propôs Diamantino enquanto se aproximava de Fernanda e lhe barrava o caminho.

- Sabes uma coisa, acho que afinal não é assim tão importante. Podes deixar-me passar? Tenho coisas a fazer lá dentro.

- Mas qual é o problema, não somos amigos?

- Os amigos não andam a mostrar as mamas uns aos outros. Se eu te pedisse para me mostrares o rabo no meio da rua mostravas?

- Mostrava, queres ver?

- Não era isso que eu queria dizer.

- Ó Fernanda, assim eu não percebo. Então, se a igreja já não manda e cada um faz o que quer, porque é que não deixas?

- Ó Diamantino, tu não tens mais nada que fazer?

- Ando tão consumido que nem consigo trabalhar.

- Pois, mas eu não tenho nada a ver com isso.

- Mas eu olho para ti e só vejo curvas, vou para os montes e é só curvas, até fico agoniado com tantas curvas.

Fernanda olhava para ele enquanto segurava a bacia da roupa, como se fosse um escudo de defesa, mas Diamantino não desistia:

- Só de pensar que a ti não te custava nada. Afinal qual é o problema? Não é nada de especial, posso ficar a ver de longe, se quiseres. Vá lá, Fernanda, ninguém fica a saber, é só levantar a camisola. Não podias fazer isso por mim? Temos andado tão divertidos esta semana, era uma coisa que podias fazer pela nossa amizade.

- Pois podia, mas não me apetece.

- Mas a mim apetece-me pelos dois, queres ver?

- Não, não quero ver nada, só quero passar. Diamantino, tu não tens vergonha do que estás a fazer?

- Daqui a nada começas a falar em pecados outra vez. O que eu acho é que és uma mal-agradecida, confesso que não estava à espera.

- Tenho pena, Diamantino, eu também não estava à espera de uma desfeita destas. Afinal parece que nos enganámos os dois.

- Cada vez percebo menos, palavra de honra. Então fez-se a Revolução para quê? Agora vós também vos armais em esquisitas? Uma pessoa aqui a fazer-vos as vontades todas, a tratar-vos bem, a levar-vos nas palminhas, sempre simpáticos, a deixar os nossos afazeres para vos satisfazer, a abrir as portas das nossas casas e a oferecer o melhor vinho e a melhor comida e todas as coisas típicas e agora, na hora da verdade, é assim? É que para ti nem era nada de especial e para mim significava muito. Nem imaginas, desde que te vi ao pé da igreja no primeiro dia que ando aqui cheio de vontade e tu nada. Ouve lá, tu se calhar não gostas de homens? É isso, não é? Ouvi dizer que isso era moda nas cidades. Mas olha que eu trato-te bem, tu sabes que eu sei preparar muito bem uma mulher, é uma coisa natural para mim e nunca tenho pressas. Mas se tu não queres aproveitar, lá se vai a oportunidade, mas olha que acho mal. Até estou a sentir-me desprezado e isso é um sentimento negativo, acho que estás a criar mau ambiente sem necessidade.

- Se não me deixas passar chamo o Gabriel.

- Podíamos chegar a um acordo, tu mostravas-me as mamas daí e eu não passava daqui.

- Eu vou fazer de conta que isto não aconteceu e vou andando para dentro, está bem?

Disse Fernanda enquanto tentava ver se havia saída do outro lado da casa.

- Fernanda, se quiseres posso ajudar-te a subir o muro e depois vamos ali para trás de umas giestas.

- Olha lá, mas tu estás bom da cabeça? Por que é que não vais pedir à tua irmã?

- Agora estás a ser cruel, Fernanda. Tu não sabes que a minha irmã morreu quando tinha cinco anos?

Fernanda ficou sem saber o que dizer durante alguns segundos antes de retomar a ofensiva, mas Diamantino não a deixava passar:

- Não queres reconsiderar? Eu acho que se devem dar sempre mais duas ou três hipóteses a uma mulher até ela ter a certeza de que não quer.

- Eu tenho a certeza absoluta, Diamantino.

Disse Fernanda depois de conseguir passar por ele e entrar em casa, mas Diamantino continuou atrás dela:

- Pensa lá bem. Ainda vais a tempo, vê lá, se queres vamos até lá abaixo à ribeira, ouvi dizer que gostavas de te meter na água sem roupa.

Diamantino ainda ficou a olhar para a porta que se acabava de fechar à sua frente e antes de sair lembrou-se da roupa que Fernanda tinha estendido e ficou a olhar para algumas cuecas, sem saber ao certo qual delas escolher.

In Mil Novecentos e Setenta e Cinco, Tiago Patrício, Gradiva, Lisboa, 2014, p.300-4