Primeiro andamento: um possível auto-retrato
pássaros chamam: — "hirondina"
convocam a limiar vocação das imagens:
o que assusta é a nitidez:
a possibilidade da fala em exercício.
a tirana condição de escapar do sangue.
Segundo andamento: Exterioridade em relação à língua
Córtex tem um conjunto de poemas, que poderíamos dizer dissecam a língua, e a anatomizam em experiência criativa. Trata-se aqui de um olhar de exterioridade em relação à língua, pensada como heterogeneidade, percecionada e sentida como léxico objectal, e ritmo sintáctico, decomposto e ou reconfigurado.
A poeta moçambicana fala outras línguas como o chope e o changana por exemplo, a par do português; quero com isto dizer, sem entrar em simplificações, que a sintaxe da língua portuguesa se reconstrói num cruzamento de outros ritmos e a escrita é pensada como quase um trabalho de escultura rítmica, lexical e sintáctica , desconstruindo a força do sentido normativo das estruturas da linguagem.
de repente as palavras estão na minha cara
brincam no meu rosto
basta olhar os animais diante da pedra
nos corredores da insónia
os fortes animais trilham na noite
pelas mãos cruzam a remota
barbárie
alumiam
velocidades.
às vezes o rosto é
palavra que os
animais trilham.
Terceiro andamento: “Não se pode escrever com as chaves no bolso”
Um dos poemas diz: “Não se pode escrever com as chaves no bolso, implicando que a porta do sentido é múltipla e nas “gargantas ancestrais” outras línguas se movimentam. Leia-se o poema:
o poema rebarbativo exalta a inocência nos pontos cruciais da fala
poderia trazer o sol na saliva
nas gargantas ancestrais da vocação erro ao chamar-lhe falo
não se escreve permanentemente com as chaves no
bolso
nem com a gnose diante dos olhos
O Córtex é a sede do entendimento, da razão. Se não houvesse córtex não haveria linguagem, percepção, emoção, cognição e memória. Aí se situam aspectos básicos da percepção, movimento e resposta adaptativa ao mundo exterior; e outras importantes actividades como a linguagem e o pensamento abstracto.
Tomando em linha de conta esta relação entre córtex e linguagem, o livro de Hirondina Joshua permite, entre vários veios temáticos possíveis de leitura, revelar esse trajecto pela observação da língua enquanto materialidade.
Quarto andamento: um espaço kórico da linguagem
Ocorre-me aqui a distinção que Julia Kristeva estabelece entre dois planos e modalidades constituintes da linguagem e da significação, um semiótico, pulsional, rítmico, que designa como Kora, pura significância, anterior á figuração, e outro simbólico, lógico, lugar de significação, organizado em discurso, planos que se interpenetram.
Esse plano rítmico, semiótico, é fundamental no livro Córtex, e corresponde talvez àquilo que Mallarmé designou como Mistério das letras, escrita indiferente ao intelegível, ao sentido, à noção de sujeito; um espaço musical e dispersivo:
desfaço o mioma nas regiões da dor o que fulgura está nas danças
a gravação do solo
o idioma atravessado
Não se faz um poema com ideias, mas com palavras, afirmava Mallarmé. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser também encarado como um objeto em si mesmo. Cito o poeta: "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma ideia que ele termina o seu poema experimental: Un Coup de Dés jamais n’abolira l’hasard. (Um lance de dados nunca abolirá o acaso).
Os poemas de Mallarmé representam um esforço para esgotar as formas poéticas tradicionais, como nos sugere um dos versos do poema acima citado: “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados. Considerado um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, promoveu uma grande revolução na poesia durante a segunda metade do século XIX e, mais tarde, influenciaria movimentos vanguardistas do século XX, principalmente os de vertentes futuristas e dadaístas.
Quinto andamento: como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”
Poderíamos dizer que a poesia de Hirondina Joshua também se radica nessa família ancestral de desarrumação das estruturas linguísticas, e que no espaço da língua portuguesa, a poeta vai ler/recolher, muito especialmente, em Herberto Hélder uma vocação, que sintetiza a surrealidade, não em expansivo, mas em económico e contido verso, como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”.
queria falar das linhas africanas nos orifícios dos rinocerontes
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
alguém diz não entender a veia no meio da cara dos rinocerontes
a severa desordem do ouro no centro das paixões
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
Com efeito neste livro parece que o córtex está ameaçado de uma certa desorganização lógica e sintáctica da linguagem, de um certo “caos”, recuperando a kora rítmica da linguagem, “antes de o poema parir o mundo”:
o mais terrível era o personagem saído das esferográficas gigantes
chamando pelas cidades
agarrado ao silêncio mortal
antes do poema parir o mundo
com as formas cálidas dos fonemas.
Sexto andamento: “Que farei com esta boca feroz?”
Roland Barthes em A Lição afirma que “A língua é fascista”, porque obriga a dizer, na sua normatividade sintáctica; a poesia e a literatura trapaceiam a língua, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem. Uma espécie de ferocidade e de manducação da língua, diríamos, retomando um verso da poeta, que nos diz: que farei com esta boca feroz?
de súbito vejo um animal carnívoro diante do poema
basta ter fome, a fome vem.
alucino ao esquecer a potência maior dos olhos
escrever é uma demência que patina a cada instante
Sétimo e último andamento: “o braço anterior, o lado etéreo da mão”
Esse espaço kórico, rítmico da linguagem - “o braço anterior, o lado etéreo da mão” - vem representado no livro de Hirondina em alguns poemas, associados ao espaço uterino de abertura ao mundo, à infância primeira, lactente, lactência, câmara pulsional anterior à noção de sujeito:
construo a ferocidade no seio da mãe,
o resto que vai à boca
desmancha o lado etéreo da mão.
braço anterior ao líquido.
escolho olhar antes de deitar a pálpebra no rosto
o buraco na minha cabeça aquece
— pai! vem e me olha.
A poeta Hirondina Joshua constrói o poema, abrindo o córtex, imergindo no caos da pulsação inicial dos sons, nesse lugar sem luz, em que “está escuro”, para auscultar e simultaneamente analisar, construindo, a formação da linguagem e do verso.
está escuro acendam a luz
— a luz está acesa
a cegueira um cheiro que se move no centro do caos
acendam os peixes nas vulvas salgadas
ou dentro da fala toquem na ortodoxa abundância das imagens
Ana Mafalda Leite
(Itálicos meus)