Fernando Guerreiro, Noites na Enfermaria

Fernando Guerreiro
Noites na Enfermaria
ensaios sobre cinema

A publicação digital Noites na Enfermaria é parte do livro Imagens Roubadas, de Fernando Guerreiro (Enfermaria 6, Novembro de 2017)

Enfermaria 6, outubro de 2017, 46 páginas

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[Textos de Fernando Guerreiro na Enfermaria 6]


Sobre o autor

Fernando Guerreiro é docente na Faculdade de Letras de Lisboa de cadeiras de cinema sobre o qual tem escrito, nomeadamente na revista Vértice.

Publicou os livros de ensaios: Negativos (1988), Art Campbell (1994), O Canto de Mársias (2001), Italian Shoes (2005) e, mais recentemente, Cinema El Dorado – Cinema e Modernidade (2016).

Antígona encontra Os Maias? As Pessoas do Drama de H. G. Cancela

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Há duas afirmações particularmente pertinentes para pensar sobre As Pessoas do Drama de H. G. Cancela. A primeira envolve dizer que o autor é sem dúvida um dos romancistas mais desafiantes a escrever literatura em português hoje, a segunda é que este romance é, em proporções diferentes, um estudo sobre a arte, o trauma e a ambivalência, e que o resultado destas características conjugadas não é tanto do âmbito da expiação quanto da violência que é exercida sobre as personagens e que passa para o leitor, em parte porque não há exactamente uma perspectiva ética que venha a emergir como produto da leitura e resolva as personagens de um ponto de vista moral (embora algumas sejam mais fáceis de ler do que outras). Nesse sentido, este romance é um pouco como as tragédias gregas a que o título parece aludir: uma exploração dos limites do humano.

Há, a meu ver, dois clássicos com que as As Pessoas do Drama dialoga sem que se apresente como releitura de nenhum. De alguma forma, é difícil ler o romance de H. G. Cancela sem pensar no outro romance sobre incesto da literatura portuguesa, Os Maias de Eça de Queirós. Por outro lado, há uma encenação da Antígona que se repete durante um longo período de tempo numa das partes centrais do romance e o elo com a tragédia de Sófocles é relevante (mas talvez não exactamente vital) para ler o romance. Se falamos de ecos da tradição, há ainda o facto de uma parte da acção se passar em Roma, e isto abre espaço para uma das reflexões mais interessantes que o romance propõe, acerca da natureza da ideia de herança cultural. A noção de herança cultural corre em paralelo com outra, mais oblíqua, a da hereditariedade dos traços e comportamentos que os filhos podem herdar dos pais.

A primeira parte do romance abre com uma longa sequência sobre um homem, o narrador (nunca nomeado), que evita abertamente quase todo o tipo de contacto social e constrói uma vedação em torno da sua propriedade. Pode haver aqui – ou não – um jogo com o mito do beau sauvage. Através das preocupações filosóficas que o estruturam, podíamos dizer que H. G. Cancela é um romancista que pertence à tradição de Vergílio Ferreira. Mas As Pessoas do Drama estilhaça toda e qualquer expectativa de uma re-encenação pacífica de referências culturais que pudessem estruturar as expectativas do leitor. H. G. Cancela, de resto, notava numa entrevista recente ao Público:

A subversão tem de agir no interior da regra. Qualquer subversão tem de se produzir a partir do interior. A subversão da gramática tem de se produzir no interior da gramática da mesma maneira que a subversão da moral se produz no interior da moral. Não há um espaço agramatical; não há um espaço amoral.[1]

Paradoxalmente, pode ver-se uma observação quase clássica de um aspecto da tragédia grega como descrito por Aristóteles: o violento segredo no centro do enredo não acontece em palco, ou seja, não é narrado em parte nenhuma do romance, não é sequer explicitado e cabe ao leitor, chegando à última página e deparando-se com a didascália que encerra o romance e que inclui uma breve descrição de cada personagem (um pouco como uma lista de dramatis personae), tentar reconstruir os eventos que definem o comportamento e o percurso de cada uma das personagens, bem como as relações que se estabelecem entre elas. Em parte, esta omissão acontece porque a escala daquilo que o romancista procura representar não pode exactamente ser articulado através da linguagem. De facto, algumas personagens perdem e recuperam a capacidade de falar ao longo do romance, e uma delas permanece muda durante toda a acção.

Do narrador, que nunca é nomeado, sabemos que esteve preso, embora nunca se explicite ao certo porquê, que não possui qualquer ocupação específica, embora seja descrito na didascália como médico e ele próprio a certo ponto se descreva como historiador.

No entanto, se no centro da Antígona de Sófocles estão em conflicto as leis de um estado e o dever ancestral de sepultar um irmão, para as personagens de As pessoas do drama a preocupação com algo que as ultrapasse parece estar para lá dos seus contextos. As personagens do drama estão no limite mas esse limite não tende para um fim. O desenlace chega por exaustão. O que é a identidade, a moral, os laços de família, o valor da arte, da linguagem, da civilização, são tudo perguntas com que o romance de H. G. Cancela se debate.

No centro da acção, há a obsessão do narrador com uma actriz italiana que ele vê uma vez num filme. Algo o move a ir até Roma para a encontrar. Desenvolve-se então um opressivo triângulo entre o narrador, Laura Spirelli (a actriz) e Filippo Arboreo (encenador da peça que Laura está a representar). Laura está grávida e o pai pode ou não ser Filippo, mas a relação entre ambos parece ter chegado ao fim. Todas as noites Laura sobe ao palco para representar uma Antígona cega e grávida, duas características que não pertencem à heroína da tragédia de Sófocles. Antígona é provavelmente, de todas as tragédias que nos chegaram da antiguidade, a mais popular e encenada de sempre, talvez em parte porque ao contrário de outros dramas clássicos, há uma resposta clara para o drama moral que a peça encerra. Antígona está certa em querer sepultar o irmão porque uma lei ancestral a compele a isso, em face disso, o drama de Creonte é acessório. Uma Antígona grávida e cega, no entanto, é uma metáfora que tanto serve para caracterizar a personagem de Laura, quanto para sublinhar o traço de uma ideia de eventual culpa hereditária por um caso de incesto do qual Laura pode ter sido o fruto. Esta reinterpretação de H. G. Cancela faz o leitor pensar mais em Édipo do que em Antígona. Podíamos então dizer que, indirectamente, por inferência, no centro do enredo de As Pessoas do Drama está este velho tema, se a culpa pode ser hereditária, se passa de pais para filhos. À superfície, esta pergunta parece estruturar o percurso de todas as personagens do enredo, mas sobretudo de Laura. Há na perspectiva da própria Laura e das outras personagens, uma certa misoginia que a objectiviza. Em parte isto explica-se pela profissão de Laura, ela é uma espécie de repositório para as personagens que representa, em parte isto é levado um passo mais à frente, pelo facto das expectativas dos três homens que estão no centro do enredo – expectativa não se confunde aqui com esperança – nunca contemplarem Laura para lá da posse, isto é talvez mais verdade acerca de Filippo do que acerca do narrador, mas o comportamento de Laura é definido a partir desta perspectiva.

Há um lado violentamente irracional que, no desenlace, parece levar a melhor sobre Laura e, como consequência, sobre as restantes personagens, trazendo a acção ao fim, marcando uma viragem. No entanto, a aporia é uma constante neste romance de H. G. Cancela, o lado destrutivo da vida que pode ser convidado apenas pelo facto de vivermos em conjunto com outros (daí o isolamento inicial do narrador), de dependermos deles, de deles esperarmos algo que pode bem não ser mais do que a pista da direcção do passo seguinte. A grande categoria ausente na caracterização de Laura é a vontade. A gravidez de Laura é vista por ela como uma espécie de obrigação que talvez simbolize a inevitabilidade da vida, as forças que estão para lá de qualquer poder de decisão. Não é certo que seja o lado violentamente irracional de Laura que leve a melhor no fim. É mais o caso de que se o seu último acto configura uma rejeição dessa inevitabilidade, pode também ler-se aí, polemicamente que seja, uma tentativa de romper o ciclo dessa inevitabilidade. Personagens desesperadas tomam decisões desesperadas. As últimas páginas parecem perguntar, o que é a sobrevivência? Como continuar? É também neste sentido que As Pessoas do Drama é um dos romances mais inquietantes de 2017.


A fome que nos mantém: prefácio à segunda edição de Fome, de João Moita

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Simone Weil escreveu um dia que o problema filosófico número um é o da fome no mundo. Claramente, esta sua afirmação pede para ser lida de forma literal: preocupava-a, de facto, a fome concreta que ameaça a vida de milhões e milhões de seres humanos em tantas paragens. A sua declaração era, assim, um manifesto político. Mas perscrutando o seu pensamento, percebemos depressa que esta fome, no centro do seu programa filosófico, não se resume à necessidade de pão: respeita também à vital carência de verdade e de sentido que Simone Weil identificava no mundo.

Transpondo a posição de Weil - e nem serão precisas especiais acrobacias, acreditem -, podemos dizer que a fome constitui o problema número um da poesia. Sim, a fome. E é isso que João Moita com este livro, bólide lançada em chamas contra os céus baixos da poesia portuguesa contemporânea, vem reivindicar. Mas que fome é esta? É uma fome que devora há milênios a poesia, mesmo quando parece uma questão fora de moda, declarada ilegal ou ultrapassada: a fome de Deus. A poética de João Moita expõe a penúria, a falha, a lacuna, a abstinência, a renúncia, a fratura, a fraqueza, o vazio, o despojamento, o silêncio – expõe, no fundo, a fome em múltiplas imagens e possibilidades. Faz da fome a sua narrativa, a sua travessia temporal, a viagem pelas (i)móveis geografias de uma vida. E fá-lo como confissão de si, mesmo se num tom contido e apofático, mantendo sabiamente o verso nesse estremecimento que o torna um quase pudor ou um quase impudor. Há uma comovente delicadeza neste travelling metafísico pelas entranhas. Mas não nos enganemos: a qualquer momento as mãos deflagram. A “minuciosa caligrafia” irrompe como “negra combustão”. E junto da garganta de Isaac (e junto da nossa) é, de novo, colocada a faca daquilo que luta connosco e não tem resposta.

Por esta via paradoxal, a poética de João Moita modaliza a fome como locus theologicus, visto que ela é o vínculo mais forte que nos une a Deus. Quanto mais duvidamos dele, mais o celebramos. Quanto maior for a consciência da distância ou da privação, maior será o encontro. E é esta incerta certeza que aqui se constrói como (im)possível oração: “quando vieres,/a minha fraqueza será sinal/para o teu reconhecimento”.

A intensíssima peregrinatio de João Moita recordou-me “O artista da fome”, o conto escrito por Kafka em 1922. O ponto de partida é a história de um artista que se apresenta como jejuador profissional, como outros se mostram como pintores ou bailarinos. O público pagava para vê-lo jejuar em direto e confirmar a sua magreza. O artista da fome tinha um agente que organizava o seu jejum como espetáculo, e que só lhe permitia jejuar durante quarenta dias, para a coisa não perder o pé. Era com muita relutância que o artista da fome interrompia o seu jejum, pois apetecia-lhe sempre continuar. Com o tempo, porém, este tipo de espetáculo passou de moda e o artista da fome, não podendo trabalhar em outra coisa, foi para um circo, onde ficou colocado num lugar fora do picadeiro, perto dos estábulos e das jaulas. No intervalo do espetáculo, as pessoas iam ver os animais selvagens e, eventualmente, olhavam para o artista da fome. Aos poucos, o artista da fome foi ficando esquecido e nem mesmo a tabuleta que registava os dias de jejum era atualizada pelos funcionários do circo. Certo dia, um inspetor, pensando que aquele espaço continha apenas um monte de palha apodrecida, ordenou que limpassem a jaula. Ora, debaixo da palha, descobriram o artista da fome. O instrutor julgou que se tratasse de um louco demente. Mas o artista da fome aproximou-se e revelou-lhe ao ouvido o seu segredo: “Preciso jejuar, não posso evitá-lo, por não ter encontrado no mundo o alimento que me agrada. Se o tivesse encontrado, pode acreditar, ter-me-ia empanturrado como todos os outros”.

Hoje, infelizmente, não é raro que a poesia seja mais uma comensal do grande e múltiplo e feérico festim do consumo. João Moita, em radical contracorrente, vem dizer que a poesia é fome.


Acabado de chegar da gráfica


João Moita
Fome
poesia
 

edição revista e aumentada
prefácio de Tolentino Mendonça

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Poucas vezes mais farei esta viagem. A erva cresce com o trigo, as flores despontam, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol. O pó repousa nas covas abandonadas pelo vento ou soergue-se desamparado no topo das colinas, onde o tojo se inclina para os precipícios. Na povoação, desmoronam-se as pedras sob a cal, o sustento dos homens. Há frutos que se arredondam segundo geometrias bárbaras, apurando o gosto. E os insectos com a sua azáfama insone, divididos entre beleza e deslumbramento. E a areia dos caminhos, mais batida que o dorso de um cavalo, é a crina desta paisagem. Em breve deixarei de passar por aqui. Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.