Em 2016, Fernando Guerreiro publicou El Dorado: Cinema e Modernidade, no qual desenvolveu a hipótese geral de que o cinema é a arte por excelência daquilo a que se pode chamar a época moderna. Uma vez que o próprio argumento do autor era de natureza histórica, a estruturação do livro em cinco capítulos respondia a diversos marcos particulares, cronológicos, nos quais o problema da modernidade do cinema se impôs com uma intensidade especial. O primeiro capítulo posicionava-nos no século XVIII, numa altura em que, segundo Guerreiro – e a partir da análise da crítica de Diderot e de pintores como Vernet ou Loutherbourg – “o cinema [estava] a vir como uma nova exigência” (13). No segundo capítulo, Guerreiro voltava a pegar de cernelha no cinema, agora debruçando-se sobre a literatura modernista, entre o futurismo italiano e a geração de Orpheu. No terceiro capítulo, sobre a Primeira vanguarda francesa, o cinema começava a afirmar-se como o ponto de partida da análise, com a discussão de Gance, L’Herbier e Epstein. O quarto capítulo dedicava-se quase exclusivamente a Manoel de Oliveira, desde Douro, Faina Fluvial a O Estranho Caso de Angélica, num passo que estilhaçava a estrutura que vinha sendo seguida (em função de coordenadas históricas), mas que ainda assim respondia a um princípio de coerência, ao visar o corpo da obra de um único cineasta. Apenas o último capítulo, curto, de cerca de vinte páginas, rompia decisivamente com a ideia de ordem sobre a qual o livro se vinha estruturando. Com o título “Ecoplastias”, era composto por secções conectadas mais ou menos livremente, convocando de forma aparentemente desordenada as diversas ideias-chave que atravessavam o livro. Se em cada um dos quatro capítulos anteriores a reflexão estava ao serviço de um escopo de análise claro que conduzia o pensamento (a pintura do século XVIII, os modernismos artísticos, as vanguardas dos anos 20, o cinema de Oliveira), no último, o raciocínio libertava-se da determinação e vagabundeava.
Um dos livros mais importantes publicados em Portugal sobre cinema, Cinema El Dorado: Cinema e Modernidade é a expressão de alguns dos aspectos que tornam o pensamento de Fernando Guerreiro particularmente desafiante. Olhando para ele com a distância temporal de mais de um ano, apercebo-me de que se trata de um livro que existe em tensão, justamente porque obedece a um princípio de forma inquestionável – pois a estrutura é rígida e imediatamente inteligível – , e, no entanto, corporiza-se numa malha textual que parece desejar sempre transgredir os mesmos princípios de ordem que o índice prescreve para conveniência do leitor.
Isto prende-se com a natureza da escrita de Fernando Guerreiro. É evidente que esta não se trata de uma escrita límpida, assente nos pressupostos da clareza da expressão, isto é, ideias claras e simples, sintaxe escorreita: todas aquelas alíneas que facilitam a aceitação de um artigo numa revista académica com arbitragem científica (algo que não interessa nada a este autor, que não deixa por isso de ser um dos nossos académicos mais respeitáveis). Há que sublinhar, no entanto, que isto não acontece por Guerreiro não querer comunicar as suas ideias, desconsiderando o leitor. Isto não se se coadunaria sequer com o carácter deste autor, cuja generosidade invulgar é bem conhecida no meio académico, e em particular entre os seus alunos. A sintaxe de Guerreiro é tortuosa – com parentéticas dentro de parentéticas, extensas notas de rodapé, jogos de palavras que interrompem o fluxo da leitura, etc. – porque ele parece recusar a ideia de que a linguagem deve funcionar como um instrumento de esclarecimento. Pelo contrário (e isto pode ser polémico), coincidindo com a sua natureza espúria, suja, ela deve efectivar-se enquanto instrumento privilegiado de obscurecimento, não necessariamente no sentido de interromper o acesso à verdade cristalina – que também não nos interessa, porque provavelmente nos cegaria (ou seja, o caminho para o esclarecimento seria um caminho para a cegueira) –, mas no sentido de instaurar uma espécie de nevoeiro que se constitui como o meio ambiente privilegiado para o diálogo e para o contágio (porque afinal estamos a falar de escrita e de leitura, e, portanto, de traços, pegadas, ecos, impressões e percursos/deambulações).
No entanto, ao instaurar este nevoeiro, Fernando Guerreiro não se coloca fora dele. Pelo contrário: inclui-se nele, habita-o e predispõe-se à coabitação. As imagens que a sua escrita convoca são difusas porque, por vezes, as ideias que elas veiculam são também difusas, móveis, metamórficas, elusivas. E, nos dias que correm, reivindicar uma lógica de discurso que não visa o esclarecimento – e sim a aceitação de uma ignorância produtiva, digamos assim – revela uma coragem que não é para ser admirada, mas fundamentalmente adoptada e partilhada. Porque talvez seja cómodo categorizar-se Fernando Guerreiro como um pensador entre o geek e o alucinado, com tanto de génio como de louco, algo excêntrico e singular, estrela erudita do rock e – por todas estas razões – inequivocamente digno da admiração de todos nós. Em suma, um ícone. Mas esse gesto – que, de resto, se verifica efectivamente em alguns meios – embate na própria poética do autor. E digo “poética” com a noção bem clara de que o Guerreiro poeta e o Guerreiro ensaísta são em última instância indestrinçáveis – o que, justamente, se prende com esta criação de uma zona (de interface, claro está) onde reina o nevoeiro, o instável, o difuso, que informam o seu discurso mesmo em meras conversas de café.
Categorizar Guerreiro como “aquela personagem (genial) da academia portuguesa” é o primeiro passo para passar ao largo do que ele nos pode oferecer, justamente porque esse julgamento assenta em princípios que são absolutamente excêntricos ao seu universo. Não lerão em nenhum dos seus textos expressões como “o mais belo filme” ou “o melhor cineasta”, etc. E isto acontece porque este tipo de julgamentos acontece ao nível mais epidérmico, achatado, do pensamento. E para Guerreiro, o pensamento – e a escrita, enquanto expressão desse pensamento – existe em profundidade, e esse movimento de perfuração do qual a sua escrita é extraída à picareta (dir-se-ia, minada) explica a atracção de Fernando Guerreiro pela raiz, pela etimologia, pelo sentido fundo, às vezes primordial, das palavras e dos conceitos que elas transportam, recuperados na sua forma plena e aguçada, que ainda não se fez gasta e romba pelo uso vulgar. E é por isso que o lugar-comum está nos antípodas desta linguagem. Mas não é calculada e estrategicamente que se leva a cabo esta perfuração do solo rumo ao centro da terra. Nos textos de Fernando Guerreiro, acontece por vezes não haver uma ideia clara e abarcante à qual o seu leitor se possa segurar como uma bóia, nem uma argumentação estruturada que pretenda paulatinamente persuadi-lo de que está perante um argumento final efectivamente pertinente e sólido (e como percebem, a solidez, aqui, existe para ser dissolvida). Quando falo em pensar em profundidade com Guerreiro, falo em mergulhar com ele nas águas turvas do lago em frente da casa de Usher, em aceitar que só se pode ver tudo de esguelha e de relance, e partilhar essa visão fugaz, e discuti-la. E, na discussão, as coisas ganham formas e o mundo (re)faz-se. Isto significa que, nos ensaios de Fernando Guerreiro, a escrita sobre os filmes não é, na verdade, apenas uma escrita referencial – que se reporta a outras coisas: filmes, narrativas, imagens –, mas uma escrita com uma pulsão criativa em pleno sentido. E neste âmbito a ideia de poiesis, como saberão, é outro dos tópicos que ele foca frequentemente nos seus textos.
Quem leu Guerreiro percebe que os vários elementos que tenho vindo a identificar na sua escrita espelham-se na natureza da sua reflexão sobre o cinema e as imagens. No centro deste pensamento residem, parece-me, duas questões: em primeiro lugar, a tentativa de pensar para além do carácter mimético da imagem de cinema – isto é, a dimensão representativa deste meio na relação icónica e indicial que ele estabelece com o real visível –, e em segundo lugar (e isto articula-se com a primeira questão, porque ao ícone e ao índice vai adicionar o símbolo, que julgo ser a dimensão que interessa verdadeiramente ao autor), os efeitos do cinema no humano e a reconfiguração que este sofre à medida que voluntariamente se expõe à experiência de ver filmes e se torna, tomado pela promiscuidade ontológica entre os dois mundos, também ele uma criatura de cinema.
Recuperando Cinema El Dorado, percebemos que estes são afinal os problemas de ordem teórica que interessam ao autor, e que as coordenadas históricas que dão forma ao livro são fruto, na verdade, da circunstância de estes problemas se terem manifestado de maneira mais contundente nos períodos escolhidos por Guerreiro para focar ao longo do livro. Lembro-me de já ter sugerido noutra ocasião que se comece a ler esse livro a partir do curto capítulo final, “Ecoplastias”, precisamente porque o desprendimento das suas páginas, bem como o seu carácter em bruto ou em ruínas (o que são ideias perfeitamente opostas, mas que aqui têm um valor correlato), promovem um contacto mais directo – sem o filtro da inteligibilidade do discurso – com o pensamento de Fernando Guerreiro, que responde, creio eu, muito mais à forma do free jazz (como ele próprio talvez dissesse) do que a uma forma mais canónica de composição.
Quero com tudo isto concretizar a ideia de que nas últimas vinte páginas vagamente informes do seu livro anterior estava já o princípio de forma segundo o qual Fernando Guerreiro viria a conceber Imagens Roubadas, que acaba de ser publicado pela enfermaria 6. O livro colige uma série de textos publicados anteriormente em revistas e em sites, e, embora ele esteja dividido em capítulos que mantêm uma certa ideia de coerência e ordem (nomeadamente ao nível da proveniência dos textos), esta é, na verdade, menos impositiva do que nos anteriores, não se fundando, por exemplo, em elementos de ordem histórica. Este é, assim, o livro de escritos sobre cinema, ao estilo free jazz, que Guerreiro ensaiava, a espaços, há muito tempo, isto depois de Cinema El Dorado ter atingido o outro marco importante de se tornar o seu primeiro livro inteiramente enquadrado no âmbito do que se convencionou chamar estudos fílmicos.
Há vários aspectos a considerar na análise de Imagens Roubadas, sobre os quais não me poderei debruçar aqui. Refiro apenas que, na sua maioria, os textos são muito curtos ou fragmentários; não há notas de rodapé, o que vai ao arrepio da escrita que conhecíamos dos livros anteriores; e a própria natureza dos textos é diferente – menos referencial, menos histórica também, com uma vertente mais especulativa e, por vezes, até, abertamente poética (tal como o livro anterior, este termina com um poema). Sente-se talvez, aqui, o fantasma desempoeirado de Poe de Eureka (poema-ensaio por vezes aqui referido) – que é, parece-me, um dos textos fundamentais no universo de Guerreiro, não tanto pelo que diz, mas essencialmente pela sua predisposição para a metamorfose, o aberto, o devir – noções essenciais para este autor.
Para concluir, e tal como para o livro anterior elegi o capítulo “Ecoplastias” como um passo particularmente relevante na compreensão da mundividência de Fernando Guerreiro, gostaria agora de fazer o mesmo a propósito de Imagens Roubadas. No início de uma recensão a Cinema El Dorado, ao apresentar sumariamente o autor, destaquei um conjunto marcante de textos publicados na revista Vértice, entre 2000 e 2013. Estes textos foram retomados por Guerreiro para o novo livro, inteiramente transformados e adaptados a um capítulo estruturado por alíneas. Trata-se do capítulo inicial, “Grãos de Pólen”, que, para além de constituir uma versão actualizada (e revista) do capítulo final do livro anterior – repetindo inclusivamente algumas passagens (com variações) –, torna-se inevitavelmente o novo breviário para compreender o pensamento de Fernando Guerreiro sobre o cinema e as suas imagens. E digo-vos isto em jeito de dica, mas que não vos demova de lerem todo o resto.
(este texto foi lido, nesta mesma versão, na apresentação de Imagens Roubadas, de Fernando Guerreiro, na livraria Linha de Sombra, no dia 19 de Janeiro de 2018)