Meudon, 1928 ou A Fotografia

É talvez apenas uma questão biográfica. A minha descoberta pessoal da Fotografia coincide com a revelação de André Kertész num pequeno livro de bolso, com imagens da Hungria natal, de Paris, de Nova Iorque. Vejo em Kertész o que mais me interessa na Fotografia. Muito em particular, está quase, quase tudo em "Meudon, 1928", que nos transporta para os arredores de Paris. Encontro nesta imagem uma espécie de definição pessoal e selvagem da Fotografia, que quase nunca sou capaz de aplicar, mas que me ilumina. A saber.


a) Haverá numa fotografia um lugar e um tempo concretos dificilmente iludíveis.

 b) Perseguir-se-á a sorte, voltando ao local várias vezes (como fez Kertész em Meudon) ou andando às voltas no mesmo lugar. Construa-se então uma natural transfiguração das coisas, pode mesmo encenar-se um pouco (o transeunte é, neste caso, amigo do fotógrafo), que o real se ocupará também da simulação.

 c) Estaremos atentos à margem, aos eternos subúrbios e traseiras da vida, existirá uma espécie de lepra do tempo, e que aí nasça um fulgor, acontecimento decisivo, um equilíbrio maior.

d) Que se tenha alguma dúvida acerca das fronteiras entre o chamado real e o chamado sonho, que o real nos pareça uma modalidade do sonho, que o sonho seja uma alínea do real.

e) Estará presente a síndroma "blow up": poderemos habitar a fotografia, percorrer as minúcias (letreiros, transeuntes, estaleiros de obras sucessivas) e haverá sempre um mistério a resolver (de onde vem, para onde vai o homem do fato escuro, o que transporta tão ciosamente?).

f) O mundo será o encontro e o desencontro do mundo, das suas velocidades, sentidos, pontos de vista.

g) Haverá uma geometria essencial, mas com algum atrito, uma aspereza qualquer que não deixe o brilho inteiro.

h) De preferência o preto e branco, como se fosse o necessário recuo para alcançar as paisagens, os trabalhos e os dias, como se se confundisse com o que talvez seja o peso mais interior dos olhos.

i) Sobretudo que, por fim, a fotografia dispense as palavras, estas palavras.

Tentativa e erro

David, pormenor do rosto

David, pormenor do rosto

A primeira vez que tentei estudar italiano foi em Lisboa, onde tive uma professora de Nápoles acabada de chegar de Buenos Aires, onde tinha vivido vários anos. Ela não parecia muito feliz de regressar à Europa, não falava uma palavra de português, não nos deixava tirar uma única nota por escrito (algo que a mim me enervava), e o meu colega de carteira, ocasionalmente, era o lendário cantor José Mário Branco, que uma vez a meio de um teste, não sei bem como, vendo-me derrapar no acto de soletrar Michelangelo me corrigiu amavelmente. Não tendo isto sido o início de uma bela amizade, tenho, no entanto, com José Mário Branco a dívida anónima de nunca mais ter incorrido no pecadilho de soletrar erradamente o nome de um dos maiores génios da Renascença. Michelangelo está sepultado em Santa Croce em Florença, ao lado de uma série de outros génios do Renascimento, tantos que parece um pouco banal dar com o seu túmulo ali. Uma pessoa erra de um lado para o outro no amplo espaço daquela Basílica no meio dos turistas, até acabar cá fora, num túnel subterrâneo, onde do chão ao tecto repousam várias lápides datadas do romantismo, de gente que morreu jovem e de febre, de tuberculose, em acidentes pelo menos tão acidentais e aleatórios quanto acidentalmente se vive. Há uma grande ausência no centro de Santa Croce, que na verdade preenche toda a Florença. Numa posição no centro da Basílica está o cenotáfio de Dante, algures entre Leonardo da Vinci e Michelangelo. Fora das suas rotinas, os vivos vêm aqui apreciar os mortos, de máquinas fotográficas em punho, os seus passos ecoando pelo mármore.

Como Dante sabia, às vezes no meio do caminho da nossa vida podemos dar por nós absolutamente surpresos. Então, do nada, ocorre-nos subitamente a suprema graciosidade de alguns dos esboços menores que antes de dar com o David em toda a sua glória, uns quarteirões mais abaixo na galeria de destaque da Academia, se pode ver nos corredores desse museu. São uma série de esboços de figuras que se contorcem e se dissipam incompletas na pedra. Michelangelo teimosamente a lutar com a forma, tentativa e erro em loop. Quanto é preciso errar para chegar à forma certa.

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Em An Art Lover’s Guide to Florence, Judith Testa dedicou algumas linhas a estas estátuas menores:

Those who go to see David today must first make their way through a museum of mediocre paintings and then down a long gallery lined with unfinished sculptures by Michelangelo, remnants of several of the artists ill-fated projects. Those shadowy figures seem to be struggling to break free from the blocks of marble that imprison them. Then, at the end of the corridor, the David looms on its pedestal, as fully realized and free from its stone block as any statue ever made... (p.242)

A luta pelo dinheiro

Estação de Forest Hills, Queens, Nova Iorque

Estação de Forest Hills, Queens, Nova Iorque

Acordado desde as seis da manhã, enlatado no comboio, depois no metro, a navegar entre Newark, Bronx e Queens, a preparar aulas de português que serão leccionadas em inglês, a ler em espanhol, a palrar em inglês, a matutar em três línguas, de olhos cerrados varado por imagens de outra vida mais silenciosa e pacífica, passada em Santa Clara, mesmo ao lado do Panteão, com um cão enorme do qual toda a gente fugia - porque eu o soltava para as rotineiras flexões nocturnas - , pressinto ter descoberto o sentido do pós-modernismo, e logo corrijo pós-modernismo por realismo americano, o realismo do trabalho abismal, despersonalizado, este realismo guardador de vozes espanholas, portuguesas, americanas e indianas que se vão esbatendo à medida que o relógio se aproxima da hora de jantar. Os dias repetem-se, a mecanização ocupa o espaço interior, questões existenciais brotam cinco minutos antes de adormecer, repousamos os ossos, há sufoco, desespero e drama, um drama gigante como cenário, o drama da subsistência, olhamos para trás e surge a penúria, o não ter onde cair morto (pobre Lisboa), mas o tempo é escasso, não paramos, isto é como nos romances de Foster Wallace: tristeza, depressão em abundância, mas o trabalho primeiro, há que espargir notas de rodapé por todas as páginas, enviar um email, preparar um powerpoint, decorar o tal verbo, telefonar a fulano, comprar um tinteiro, falar a beltrano. Dramático, isto de lutar pelo dinheiro, quando o que pretendíamos era ler uma biblioteca inteira a apanhar sol à beira-rio. E a arenga vem a propósito de um excerto do prefácio de Eduardo Prado Coelho ao livro Poemas Quotidianos, de António Reis, em que se escreve: “Atravessamos nós uma rua e quantas vezes um poeta nos espera, ansioso e feliz.” Outros tempos, deste lado do planeta não se vislumbra um poeta, muito menos um poeta descrito como feliz, ao virar da esquina.