Café filosófico Para uma ecologia da vontade de potência

O café filosófico de junho (livraria Snob, Lisboa) constitui-se em torno deste livro, mais um sobre Nietzsche, mas um que vale a pena ler. O documento áudio do café contém a parte em que Victor Gonçalves expõe o tema, depois disso há normalmente uma discussão horizontal que dura entre uma e duas horas. Neste caso, elucidou-se o conceito de «vontade de potência, problematizou-se o sentido da terra no Antropocento, fez-se uma genealogia do termo Terra na obra de Nietzsche, mostrou-se que, contra o abstrato e o transcendente, o autor de Assim Falou Zaratustra foi um pensador das «coisas próximas» (alimentação, sociedade, natureza, solidão, sono, educação, humor, tempo, saúde…), defendeu-se que Nietzsche não é em si um proto-ambientalista, mas um crítico da cultura que deseja o regresso do homem, do sobrehomem, à Terra. No final, ficou a ideia de que este autor, lido numa determinada perspetiva, ajuda a criar uma nova fidelidade à Terra, baseada no cuidado com as coisas próximas, num horizonte de crescimento para o homem (tornar-se sobre-homem) e no respeito pela potência do não humano.

O próximo café filosófico será dia 15 de julho, sábado, pelas 16h. Discutiremos, sobretudo a partir de Susane Sontag, o cumprimento um pouco suicidário da arte contemporânea.

Dois poemas sobre a Antiguidade (Yiorgos Seferis e A.E. Stallings)

Eurípides, o ateniense

 

Yiorgos Seferis

de Hmerologio Katastromatos G’ (Diário de Bordo III), 1953-55

 

Envelheceu entre os fogos de Troia
e as pedreiras da Sicília. 

Gostava de grutas na praia e imagens do mar.
Viu as veias dos homens
como uma rede dos deuses, onde nos prendem como a animais ferozes;
tentou romper através dela.
Era um homem difícil, tinha poucos amigos
Quando chegou o dia, despedaçaram-no os cães.  


Consolação para Tamar

A.  E. Stallings
De Archaic Smile (1999)

na ocasião de ela ter partido um vaso antigo 

Sabes que arqueóloga não sou, Tamar,
E para mim é tudo um pó ou outro.
Ainda assim, tem de contar alguma coisa sobreviver à meteorologia
Das Idades – terramoto, inundação e guerra –  

Só para se estilhaçar nas tuas mãos.
Talvez tenha sido a gravidade, ou estava fadado –
Embora eu me pergunte se não tivesse esperado
Tantos anos em gavetas, eras em terras distantes, 

E na música dos teus dedos, só um bocadinho
Encorajou-se com o teu sangue, e assim se esqueceu
Que não era botão de rosa, mas vaso,
E, tentando abrir-se para ti, fez-se frágil.  


Ευριπίδης, Αθηναίος

 

Γέρασε ανάμεσα στη φωτιά της Τροίας
και στα λατομεία της Σικελίας. 

Του άρεσαν οι σπηλιές στην αμμουδιά κι οι ζωγραφιές της θάλασσας.
Είδε τις φλέβες των ανθρώπων
σαν ένα δίχτυ των θεών, όπου μας πιάνουν σαν τ’ αγρίμια·
προσπάθησε να το τρυπήσει.
Ήταν στρυφνός, οι φίλοι του ήταν λίγοι·
ήρθε ο καιρός και τον σπαράξαν τα σκυλιά. 


 Consolation for Tamar

 

on the occasion of her breaking an ancient pot

 

You know I am no archaeologist, Tamar,
And that to me it is all one dust or another.
Still, it must mean something to survive the weather
Of the Ages—earthquake, flood, and war— 

Only to shatter in your very hands.
Perhaps it was gravity, or maybe fated—
Although I wonder if it had not waited
Those years in drawers, aeons in distant lands, 

And in your fingers' music, just a little
Was emboldened by your blood, and so forgot
That it was not a rosebud, but a pot,
And, trying to unfold for you, was brittle

Como chegar a Ítaca

Vaso Katraki, Família de Pescadores (1963)

Sabe-se que não é fácil chegar a Ítaca. Definitivamente não se chega a Ítaca nem lendo o final da Odisseia de Homero nem o de Odisseia: uma sequela moderna de Kazantzakis, nem sequer indo à procura de Ulisses no Canto 26 do Inferno de Dante. Isso também não resolve nada, embora esse possa bem ser o Ulisses mais certeiro de todos, aquele que é até mais homérico do que o Ulisses de Homero.

Tenho alguns problemas com Ulisses. O maior deles começou naquelas páginas de As Núpcias de Cadmo e Harmonia em que Roberto Calasso narra a vingança deste sobre Palamedes. Talvez não muita gente se lembre deste aspecto do mito quando se fala do Ulisses homérico, mas esse Ulisses que se vislumbra nos Cipria, um dos livros que colige outras histórias do mundo de Homero, é o das vinganças hábeis e ardilosas, longamente planeadas, o mesmo que no final da Odisseia é capaz de chacinar todos os pretendentes e todos os que ajudaram os pretendentes. Apolodoro e Higino, autores mais tardios, haveriam de contar a história da vingança sobre esse tal de Palamedes que, diz Calasso se não me falha a memória, era o único no mundo arcaico que tinha exactamente a mesma inteligência que ele.

Ulisses não se parece em quase nada com os reis que vão para Troia. Para começar, é um rei pobre. Confirmam-no o catálogo das naus no Canto 2 da Ilíada (o livro mais chato do poema), que diz que Agamémnon era comandante de cem navios e que Ulisses era o comandante de um contingente de guerreiros cefalónios e de apenas doze navios de proa vermelha. Talvez a pobreza de Ulisses também se vislumbre na sua preocupação, ao longo da Odisseia, com a economia, que é uma palavra que vem de oikos, grego para casa, de não perder os seus despojos de guerra e de angariar mais pelo caminho. 

Os mitos contam que quando os gregos vieram em busca de Ulisses a Ítaca, ele se fingiu de louco para que não o arrastassem para uma guerra em que ele não queria combater porque não era a dele. Há qualquer coisa, parece-me, de dionisíaco na figura de Ulisses. Vê-se isso nesta recusa inicial, inaudita entre os outros capitães dos gregos. Percebe-se aqui como ele ama viver e sobreviver através de todos os desaforos. Há qualquer coisa de absurdamente desmedido (desmedido também no sentido de fora dos limites sociais) no seu amor a uma arte de perdurar e de ser. Isso assoma no seu desespero melodramático, nas muitas lágrimas derramadas pelo caminho, durante a longa viagem de regresso, mas essa coisa desmedida talvez apareça sobretudo naqueles versos no Canto 13 da Odisseia em que ele pede a Atena que ela o ame mais quando ele regressar a casa e tiver de enfrentar os pretendentes do que em qualquer momento anterior de qualquer uma das suas aventuras. Ou quando ele recusa a imortalidade que Circe lhe oferece para, em vez disso, voltar a casa. Como é belo ser um mortal e poder ir morrer junto de quem nos amou, regressando através de quase tudo, com uma clareza que ultrapassa o próprio medo de morrer. E que sorte extraordinária conseguir encontrar isso no decurso de uma vida, que às vezes é tão curta e tão cega que não dá para quase nada.

É Palamedes quem interrompe o curso doméstico em que Ulisses estava, a mulher e o filho e a pequena prosperidade de Ítaca, e muda o seu caminho para sempre, porque é Palamedes quem, enquanto Ulisses se faz de louco diante dos dignatários dos gregos, fingindo-se de boi e lavrando com um arado um campo, sugere que se coloque no seu caminho o filho de Ulisses, o bebé Telémaco. Ulisses então não tem como continuar a fingir e tem de parar com o teatro. Mas ele não se esquece de Palamedes e não só causa a sua morte em Troia como lhe dá uma morte infame.

Já em Troia, Ulisses forja uma carta do rei Príamo, na qual promete a Palamedes uma determinada soma em ouro se este traísse os planos dos gregos. Ele esconde depois essa mesma soma na tenda de Palamedes. Palamedes é denunciado a Agamémnon, o ouro é encontrado na sua tenda e os gregos apedrejam-no até à morte. De todos os meus problemas com Ulisses, o primeiro é esta história. É precursora, em termos de cronologia mitológica, da chacina dos pretendentes, mas sobretudo da chacina, desnecessária e excessivamente cruel, das escravas que trabalhavam em sua casa. É um daqueles gestos que expõe a raiz profunda da crueldade humana enquanto paixão demasiado arcaica. Não é rara em Ulisses. É um traço da sua natureza. Surge, por exemplo, no modo como ele espanca violentamente Tersites no Canto 2 da Ilíada. Há na figura de Tersites qualquer coisa da alma de um sátiro, o que está também provavelmente inextricavelmente ligado ao facto de que ele vem de uma classe social mais baixa do que as outras personagens que intervêm no episódio da briga entre Aquiles e Agamémnon, mas Ulisses silencia Tersites à pancada, batendo-lhe violentamente com o ceptro nas costas.

Há, ainda na Ilíada, o modo como ele trata Dólon, o espião troiano cujo nome partilha a etimologia com a palavra dolo. Como ele e Diomedes no Canto 10 do poema, um canto que se chama “Canção de Dólon,” que tende a ser visto como uma anomalia no poema porque é um livro que estamos quase certos de que é apócrifo, existindo sobretudo para que reparemos em Ulisses. O livro conta como os dois gregos capturam Dólon, de como ele lhes implora que o poupem, oferecendo-se para pagar o seu próprio resgate. Ulisses diz-lhe para ele não se preocupar com a morte, fá-lo contar-lhe todos os segredos dos troianos e deixa que Diomedes o degole no fim, quando Dólon está de joelhos, prestes a fazer o gesto ritual dos suplicantes: tocar os joelhos e a barba daquele a quem se suplica. A descrição mais precisa de Dólon não vem na Ilíada mas em Memorial de Alice Oswald, um livro que colige e expande os epitáfios das muitas personagens menores que surgem no poema:

What was that shrill sound
Five sisters at the grave
Calling the ghost of DOLON
They remember an ugly man but quick
In a crack of light in the sweet smelling glimmer before dawn
He was caught creeping to the ships
He wore a weasel cap he was soft
Dishonest scared stooped they remember
How under a spear’s eye he offered everything
All his father’s money all his own
Every Trojan weakness every hope of their allies
Even the exact position of the Thracians
And the colour and size and price of the horses of Rhesus
They keep asking him why why
He gave away groaning every secret in his body
And was still pleading for his head
When his head rolled onto the mud 

Acho às vezes que a história da carta de Palamedes corre o risco de ser apócrifa porque se menciona a tecnologia da escrita e esta parece ser, no mundo homérico, rara e insipiente. A única vez em que é mencionada, no Canto 6 da Ilíada, é também na história de traição e vingança. O herói Beleforonte transporta com ele a carta que ordena a sua própria morte às mãos de um aliado do rei Proteu, porque Anteia, a mulher deste, acusara falsamente Belerofonte de a tentar violar. A melhor discussão deste episódio é, claro, a de Anne Carson em Eros, the bittersweet.

Há um mito das origens obscuras que atribui ao próprio Palamedes, em conjunto com Cadmo, a invenção de algumas das letras do alfabeto. Também se lhe atribui a invenção do jogo dos pessoi, espécie de precursor dos jogos das damas e dos dados, para que os soldados gregos matassem o tempo em Troia. Palamedes terá sido então responsável, antes de Ulisses o matar, pela inauguração da longa, e frutífera, relação entre o vício, o desejo, a esperança e a inteligência.

Não sei, e talvez não haja maneira de saber, se Cesare Pavese terá pensado nesta tradição quando faz Circe dizer, no diálogo “Le streghe” de Dialoghi com Leucò:

Quello che mai prevedo è appunto di aver preveduto, di sapere ogni volta quel che farò e quel che dirò – e quello che faccio e che dico diventa così sempre nuovo, sorprendente, come un gioco, come quel gioco degli scacchi che Odisseo m’insegnò, tutto regole e norme ma così bello e imprevisto, coi suoi pezzi d’avorio. Lui mi diceva sempre che quel gioco è la vita. Mi diceva che è un modo di vincere il tempo.

Às vezes, relendo esse livro de Pavese, acho, como muitos críticos de Cesare Pavese acharam, que Ulisses é a figura central e tutelar deste que talvez seja o seu melhor livro. Pavese dizia sobre os Dialoghi que eles coligiam as personagens e as situações do mundo clássico que tinham capturado a sua imaginação enquanto aluno de liceu. Ulisses aparece, de resto, num diálogo anterior, “L’isola,” onde conversa com Calipso, no momento em que, em Ogígia, ela lhe oferece a imortalidade e insiste para que ele a aceite. A ler Pavese repara-se, nas linhas finais do desse diálogo, que Ulisses é o herói, na ordem do mundo, para todos os pós-guerra (os diálogos foram escritos entre 1945 e 1947):

ODISSEO Saprò almeno che devo fermarmi.
CALIPSO Non vale la pena, Odisseo. Chi non si ferma adesso, subito, non si ferma mai più. Quello che fai, lo farai sempre. Devi rompere una volta il destino, devi uscire di strada, e lasciarti affondare nel tempo…
ODISSEO Non sono immortale.
CALIPSO Lo sarai, se mi ascolti. Che cos’è vita eterna se non questo accettare l’istante che viene e l’istante che va? L’ebbrezza, il piacere, la morte non hanno altro scopo. Cos’è stato finora il tuo errare inquieto?
ODISSEO Se lo sapessi avrei già smesso. Ma tu dimentichi qualcosa.
CALIPSO Dimmi.
ODISSEO Quello che cerco l’ho nel cuore, come te.

Há qualquer coisa de espantoso nesta última linha. Ulisses define, com este lirismo intenso e oracular que é o tom característico dos Dialoghi, a coisa em que mortais e imortais se igualam. E talvez esteja aqui a dizer que não há maneira de abandonar Ítaca, porque ela nunca o abandona.

Kavafis sabia isso sobre Alexandria enquanto Ítaca. Naquele que é talvez o seu poema mais famoso e mais citado, escrito originalmente em 1910, lemos que é preciso abandonar Ítaca, amar a longa viagem, para no regresso entender o que significam as Ítacas. Este plural em Kavafis, Ιθάκες, de resto, sempre me divertiu. É de uma ambiguidade que expande o mundo e consegue, ao mesmo tempo, ser intimamente kavafiana. O plural aqui tem, claro, a força retórica do universal, mas acidentalmente deixa implícito que existem várias Ítacas possíveis, desarruma Ítaca um pouco da sua sentimentalidade absoluta de lugar único. No último verso desse poema até Ítaca de alguma maneira viaja, ήδη θα το κατάλαβες η Ιθάκες τι σημαίνουν. Quando o mais natural na ordem do verso seria que Ítacas fosse a última palavra, em vez disso é a expressão “que significam.” O verso significa, à letra, “então terás entendido as Ítacas o que significam.”

Nunca estive em Ítaca. Ainda não consegui lá chegar. O mais perto que me senti de Ítaca, não geograficamente falando, foi na ilha de Corfu, cujos habitantes reclamam ter sido a ilha dos Feaces. É uma das ilhas da Grécia com uma das capitais mais belas que conheço, mas é hoje incrivelmente pouco hospitaleira, pouco real, completamente monopolizada pelo turismo. Nem os fantasmas de Lawrence Durrell e Henry Miller se entreveem quando passamos pelos lugares por onde eles andaram, nem mesmo sequer quando nos sentamos nos bares dos terraços dos hotéis onde eles se sentaram, onde não teriam, hoje, dinheiro suficiente para se embriagarem tão completa e confortavelmente como o fizeram no tempo em que por lá andaram.

Acho que um dos momentos mais extraordinários da Odisseia tem qualquer coisa a ver com embriaguez. É o encontro do filho de Ulisses com Helena, transformada em farmacologista, drogando os soldados para que eles se esqueçam da dor que trouxeram de Troia.

Helena sobrevive à guerra, reinventa-se ao lado de Menelau. Mas e Penélope? O que dizer dela quando pede a Ulisses que não se zangue, quando lhe faz o teste final para tentar entender se ele é mesmo ele – percebemos então que há pelo menos mais uma personagem, além de Palamedes, cuja inteligência é como a de Ulisses –, pedindo a uma serva que mude de lugar a cama de ambos, imóvel para sempre porque esculpida num carvalho ainda no centro da casa, e ele com angústia se zanga, porque que homem podia ter mudado de lugar uma cama que ele mesmo construíra? E ela pede-lhe para que ele não se zangue, que se os deuses já não os tinham deixado em paz para passarem a juventude juntos, que ao menos ficassem juntos durante a velhice. Existe uma outra odisseia nesses versos de Penélope, entendemos o que é que foi perdido, porque é que Ulisses queria ir enganar os gregos e não queria partir. Porque é que ele nunca é exactamente como eles, nem na Ilíada nem na Odisseia.

Foi no pequeno museu municipal de Kerkyra, ao mesmo tempo o nome grego de Corfu e o nome da capital da ilha, às moscas para lá do jardim com as estátuas de Gerald e Lawrence Durrell, que vi pela primeira vez as mulheres dos mitos antigos e as mulheres contemporâneas da pintora Vasso Katraki (1914-1988), a sua Antígona sepultando o irmão e as camponesas anónimas e as mulheres grávidas, corajosas e sozinhas, ou mulheres com os filhos, ou retratos esquemáticos de famílias, com qualquer coisa de neorealista, que fazem pensar em migrações sasonais, casas e regressos, que ela desenhou entre o período da Guerra Civil e da Ditadura dos Coronéis.

Quando estive no pequeno porto de Fiskardo, em Cefalónia, onde se pode apanhar o barco para o também minúsculo porto de Frikes em Ítaca, essas imagens de Vasso Krataki ainda não estavam comigo, eu ainda não as tinha visto. Não cheguei a apanhar esse barco para Ítaca. Mas nadei nas correntes ao longo dessa extensão de costa, onde a água é de um azul transparente, e a nossa sombra é reflectida no fundo do mar. Tatiana Salem Levi tem uma descrição muito precisa, em Vista Chinesa, desse tipo de mar, ela diz que ele “não se parece com o pórtico de um reino profundo e misterioso.” Mas as correntes nessa costa de Fiskardo enganam bem: afastarmo-nos um pouco basta para sentimos a força obliterante do mar e o receio de não conseguir voltar à praia. É fácil então pensar nos muitos naufrágios de Ulisses. Tenho tido a intuição, em certos momentos de viagens, em horas letárgicas, passadas em barcos e aviões, de que estamos aí tão isolados, tão inacessíveis, que não fazemos exactamente parte do mundo dos vivos. É só à chegada ou no regresso que tornamos a existir. Este é, claro, em parte, o drama de Ulisses.

Por causa da geografia de Ítaca descrita na Odisseia, muitos arqueólogos suspeitam que Ítaca e Cefalónia estavam ligadas na antiguidade, e que a Ítaca homérica ficava, na verdade, em Cefalónia, uma ilha hoje quase sem passado, com apenas duas aldeias antigas, porque é muito propícia a terramotos. O maior dos mais recentes, na década de 1950, destruiu a ilha quase por completo.

Nunca vi, então, Vathi, a bela cidade que é hoje a capital de Ítaca. Concluí, no entanto, por cálculos não muito complicados, que a maneira mais fácil de lá chegar, a partir de Atenas, é apanhando o comboio para Patras, que faz a sua travessia por uma paisagem que não vejo há quase tanto tempo quanto Ulisses não viu Ítaca: através do golfo de Corinto, com os seus ecos dos mitos em torno de Édipo e com os laranjais do Peloponeso do outro lado. Chegando a Patras é depois fácil apanhar o barco para o porto de Aetos. Há pelo menos um barco por dia.

 

Oxford, 16 e 18 de Junho de 2023

Cormac McCarthy, elogio fúnebre

Morreu Cormac McCarthy, os que lerem este texto sabem-no já quase de certeza, o autor de livros que redesenharam uma parcela importante da literatura americana e mundial, que temos a sorte de estar inteiramente traduzida em português continental por Paulo Faria.

A Enfermaria escolheu fazer o elogio fúnebre pedindo emprestada a palavra a Isabel Lucas, Paulo Faria, A.O. Scott (The New York Times) e Eduardo Lago (El Pais). Dos dois primeiros, resumimos muito o que publicaram há poucos dias no jornal Público (deixamos os links e esperamos que possam ler os artigos na íntegra, vale a pena); dos segundos, propomos uma tradução de Victor Gonçalves (também com o link para os originais).

Isabel Lucas diz que os livros de McCarthy contêm qualquer coisa de indomável, são um retrato do caos humano. «Obra fundamental para a literatura deste tempo.» Morreu, refere ainda, um escritor de outro tempo, pré-digital, enamorado pelos sentidos das coisas tangíveis. (Artigo aqui)

Paulo Faria, por sua vez, tradutor e discípulo, assegura que «uma imensa tristeza desce sobre nós.» Alarga também este desaparecimento a «um certo tempo, uma certa literatura». Uma literatura alimentada pelo mundo das coisas próximas, sem qualquer tipo de computação a mediar entre o fora (mundo físico) e o teclado da máquina de escrever. Ele que era um cientista amador, atento, pois, à vanguarda teórica. (Artigo aqui)

By A.O. Scott (The New York Times)

  • June 14, 2023 (aqui)

Uma página de Cormac McCarthy pode por vezes ser tomada como ou poesia ou como prosa: as frases curtas; a pontuação esparsa; a margem direita recortada. A dicção, especialmente nos livros que se seguiram a Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985), é ao mesmo tempo austera e lírica, despida do ruído da vida moderna e sintonizada em frequências elementares e metafísicas. Mesmo na sua expressão idiomática mais precisa — gerúndios com g's soltos, «could of» por «could have», «it was» em vez de «there was» — a sua linguagem pode parecer intemporal:

«The boy stood up. He looked off up the meadow. There were two ravens sitting in a barren tree. They must have flown as they were riding up. Other than that there was nothing.
Where do you reckon the rest of the cattle have got to?
I dont know.
If they’s a dead cow in the pasture will the rest of the cattle stay there?»
McCarthy, como todos os escritores, pertenceu ao seu tempo, mesmo quando, talvez mais intensamente do que a maioria dos escritores, se esforçou por criar uma obra que lhe sobrevivesse. Numa crítica astuta e céptica de No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005) no The New York Review of Books, Joyce Carol Oates observou que «tal como o seu quase exacto contemporâneo John Updike escreveu com uma ternura extática sobre o amor físico heterossexual, também McCarthy escreve sobre a violência física com uma atenção que não se encontra em nenhum outro escritor sério que eu conheça, excepto Sade».

A autora prossegue citando uma passagem memoravelmente sangrenta — «He lay half headless on the bed with his arms outflung, most of his right hand missing» — num livro notavelmente brutal, mas é a justaposição desses nomes improváveis que chama a atenção. Colocar McCarthy, o moralista taciturno da fronteira do Sudoeste, na companhia de Updike, o sensualista de língua prateada dos subúrbios americanos, pode parecer quase perverso, a não ser que se considere a quase coincidência dos seus aniversários como algo mais do que mera coincidência.

E devo dizer que o considero. A comparação casual de Oates contém uma verdadeira visão histórico-literária. Estes dois escritores fazem parte de um grupo geracional que reescreveu o genoma da prosa americana, alargando o seu leque temático e recalibrando, ao nível do estilo e da sintaxe, o que ela podia fazer. Hesito em afirmar que os ensaístas e escritores de ficção nascidos na primeira metade da década de 1930 constituem uma grande geração literária, mas consideremos esta meia dúzia de nomes, listados por ordem cronológica de nascimento: Toni Morrison (1931); Updike (1932); Susan Sontag, Philip Roth e McCarthy (todos em 1933); e Joan Didion (1934).

Poder-se-ia continuar a avançar pela década, acrescentando à lista (para começar) Don DeLillo (1936), Thomas Pynchon (1937) e a própria Oates (1938). Mas aqueles seis constituem um cânone formidável por si só. Não que se assemelhem remotamente uns aos outros: cada um representa uma sensibilidade singular e uma voz original, uma personalidade própria que é inconfundível e inimitável.

O que partilharam foi a capacidade de sintetizar influências heterogéneas — os grandes romancistas europeus do século XIX, as vanguardas transnacionais do século XX, Moby-Dick e Henry James, Hemingway, Faulkner e Huckleberry Finn — com uma confiança que pode parecer, no nosso ansioso momento actual, quase uma arrogância. Divergindo dos cânones do realismo americano e dos dogmas do modernismo internacional, embora incorporando aspectos de ambas as tradições, não se filiaram a nenhuma escola ou movimento. Sem coordenação, e com uma idiossincrasia tenaz, redesenharam as fronteiras do mainstream literário.

Em comparação com os outros, McCarthy foi um pouco tardio — o último de entre eles a alcançar o reconhecimento da crítica, a celebridade (que desdenhava) e o estatuto de grande escritor. A sua ascensão coincidiu com uma mudança na sua escrita em termos de região, género, forma e precursor essencial. Passou do Sul para o Oeste, do gótico fronteiriço para o épico fronteiriço, do lúgubre para o oracular, de Faulkner para Hemingway.

A Trilogia da Fronteira — All the Pretty Horses [Belos Cavalos], The Crossing [A Travessia], e  Cities of the Plain [Cidades da Planície] — alargou o seu número de leitores, em parte porque, sem piscar o olho ou ser paternalista, explorou uma estirpe potente e mítica da cultura popular. São romances de cowboys, cheios de estoicismo viril, violência implacável e evocações elegíacas e quase sentimentais da natureza, da geografia e da história dos índios:

«In the evening he saddled his horse and rode out west from the house. The wind was much abated and it was very cold and the sun sat blood red and elliptic under the reefs of bloodred cloud before him. He rode where he would always choose to ride, out where the western fork of the old Comanche road coming down out of the Kiowa country to the north passed through the westernmost section of the ranch and you could see the faint trace of it bending south over the low prairie that lay between the north and middle forks of the Concho River.»

Ao ler estas frases de All the Pretty Horses, pode ver o filme a desenrolar-se na sua cabeça. A versão para o ecrã de 2000 — dirigida por Billy Bob Thornton e protagonizada por Matt Damon e Penelope Cruz —- não é excelente, mas McCarthy tem sido mais bem servido por Hollywood do que a maioria dos seus contemporâneos. Morrison pode ser o único laureado com o Prémio Nobel do grupo, mas até agora McCarthy é o único cuja obra deu origem a um vencedor do Óscar de melhor filme. Os irmãos Coen, que adaptaram No Country for Old Men, descreveram o processo de escrita como «Joel segura o livro aberto pela lombada» enquanto Ethan o reescreve, e parece haver uma afinidade natural entre o trabalho posterior de McCarthy e as inclinações do cinema contemporâneo.

No Country, The Road e The Counselor [O Conselheiro] — um conto pós-apocalíptico encabeçado por duas histórias de crime hard-boiled (a última escrita directamente para o ecrã) — constituem uma segunda trilogia, preocupada com a persistência do mal e o colapso da ordem moral. Esta é definida, de forma bastante explícita, como uma crise do patriarcado, uma erosão da autoridade dos pais e dos seus homólogos, uma perda da possibilidade de heroísmo.

O conservadorismo desta visão é evidente e sugere outra ligação geracional, entre McCarthy e Clint Eastwood, que nasceu em 1930 e cuja mistura de pessimismo metafísico, humor duro e estilo despojado faz com que alguns dos seus últimos filmes pareçam mesmo McCarthyescos. Ambos podem parecer — e têm-se apresentado como — os últimos de uma raça. Mas cada um deles inventou algo novo. Eastwood deu nova vida a formas cansadas. McCarthy escreveu livros que pareciam ter existido sempre.

Obras mais influentes de Cormac McCarthy

Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985). Baseado vagamente em eventos históricos, o romance acompanha um jovem fictício de 14 anos, referido apenas como «o garoto», enquanto ele percorre o sudoeste americano. «Blood Meridian deixa claro que o Sr. McCarthy sempre nos pediu para testemunhar o mal, não para o compreender, mas para afirmar a sua realidade inexplicável», escreveu Caryn James na sua crítica para o The Times.
All the Pretty Horses [Belos Cavalos] (1992). Este best-seller é uma história de aventuras sobre um rapaz texano que parte com o seu amigo para o México. «A atracção magnética da ficção do Sr. McCarthy vem em primeiro lugar da extraordinária qualidade da sua prosa», escreveu Madison Smartt Bell na sua recensão.
The Crossing [A Travessia] (1994). O romance começa numa pequena fazenda de gado no Novo México, nos últimos anos da Depressão, e segue Billy Parham, um vaqueiro adolescente que atravessa repetidamente a fronteira com o México. «The Crossing é um milagre em prosa, um original americano» [an American original], escreveu Robert Hass na sua recensão.
No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005). Esta história rápida e violenta centra-se num assassino frio como gelo, num xerife de uma pequena cidade e num cidadão comum que tropeça numa mala de couro com mais de 2 milhões de dólares. "No Country for Old Men é uma variação tão estimulante destas ortodoxias [de roman] noir como qualquer fã do género poderia esperar», escreveu Walter Kirn na sua recensão.
The Road [A Estrada] (2006). O livro é um relato desesperado de um rapaz e do seu pai que atravessam a paisagem fria, miserável, cheia de cadáveres e cinzenta de um mundo pós-apocalíptico. «O Sr. McCarthy convocou as suas visões mais ferozes para evocar a devastação. Dá voz ao indizível num conto de advertência conciso que é demasiado potente para ser entorpecente», escreveu Janet Maslin na sua recesão.
A.O. Scott é crítico geral da Book Review. Entrou para o The Times em 2000 e foi crítico de cinema até ao início de 2023. É também o autor de Better Living Through Criticism.

EDUARDO LAGO (El Pais)
Nova Iorque - 13 JUN 2023 - 21:52 CEST (aqui)

Cormac McCarthy morreu ontem na sua casa em Santa Fé, Novo México, aos 89 anos. A morte foi anunciada por um comunicado da sua editora, a Penguin Random House, que não indicou uma causa específica. O lugar de McCarthy na literatura do seu país é irrepetível. Um dos rasgos que definem a sua obra narrativa é a sua capacidade para explorar em profundidade o lado negro da natureza humana. Fê-lo numa dúzia de romances espantosos, tão poéticos e pungentes como brutais, tornando a leitura das suas obras uma experiência estética tão poderosa como angustiante, mas, em última análise, redentora, por aquilo que era, no fundo, uma fé profunda nos valores do humanismo e na capacidade da arte para os reafirmar.

Podem distinguir-se várias fases na sua carreira. A primeira, a mais enigmática e sombria, inclui romances como o semi-autobiográfico Suttree, integrado nos bosques do Tennessee e no cenário urbano de Knoxville. Esta fase da carreira de McCarthy termina com uma obra-prima absoluta, Blood Meridian. De leitura hipnótica, mas capaz de afastar muitos pela desolação selvagem das imagens, este romance dá-nos a medida do seu talento. Para Harold Bloom, foi um dos maiores romances americanos de todos os tempos, um herdeiro directo do que Melville alcançou nas suas próprias investigações sobre a natureza do mal. O protagonista, o juiz Holden, é a reencarnação de Ahab, o centro de gravidade de Moby Dick. Esta não é uma literatura para pusilâmines. A certa altura, as hostes sanguinárias que desfilam nas suas páginas deparam-se com uma árvore de cujos ramos pendem os corpos espetados de vários bebés.

Nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, foi um dos quatro grandes nomes que definiram o rumo da literatura americana do nosso tempo, juntamente com Don DeLillo, Thomas Pynchon e Philip Roth. O quarteto, validado por figuras como Harold Bloom e David Foster Wallace, é problemático, pois ancora o código estético exclusivamente em figuras masculinas, brancas e heterossexuais. Isto deve ser interpretado como um sinal de carácter apocalíptico, o mesmo que preside à sua obra.

Com ele desaparece outro dos pilares de uma forma de entender a literatura que é hoje insustentável. Apesar de tudo, McCarthy continua a ser leitura obrigatória, pela grandeza da sua escrita e pela honestidade da sua indagação radical acerca da natureza humana. A sua morte deixa um vazio profundo. Reservado, recluso, ciumento da sua privacidade até ao paroxismo, Cormac McCarthy fazia parte do círculo de lendários reclusos literários a quem, por tanto o desdenharem, a grande maioria dos seus colegas escritores cobiça tudo: o dinheiro, a fama, a atenção, a veneração do público e dos media. Tal como J. D. Salinger ou Thomas Pynchon, Cormac McCarthy escreveu de costas para os seus leitores, ignorando as modas e as exigências comerciais, fiel exclusivamente a si próprio e às exigências da sua vocação artística. É a coragem de tal postura que deve ser apreciada.

Até pouco antes do seu 60º aniversário, era um pobretão. Viajava numa carrinha a cair aos bocados, escrevia em quartos de motel e até cortava o seu próprio cabelo quando era preciso. Os seus livros vendiam entre 2.000 e 3.000 exemplares, na melhor das hipóteses, apesar da imensa estatura literária de todos eles, incluindo várias obras-primas. Os críticos sérios viram desde o início que McCarthy estava ao nível do melhor que a literatura americana tinha produzido.

A segunda fase da sua obra começou com uma mudança significativa. Com a publicação de Belos Cavalos (1992), o primeiro volume da sua Trilogia da Fronteira, a vida do romancista sofreu uma viragem inesperada. Os prémios começaram a chegar. Os seus livros chegaram a vender-se aos milhões. Hollywood começou a cortejá-lo. Por instigação do seu agente, deu a primeira entrevista da sua vida. Incomodados com a sua celebridade, muitos dos seus fãs sentiram-se traídos, e é verdade que, embora o mérito literário da Trilogia seja inegável, ao entrar numa zona mais luminosa, o trabalho de McCarthy perdeu algum do seu vigor. Cidades da Planície, o último volume da Trilogia, foi publicado em 1988.

Futuro pós-apocalíptico

No século XXI, McCarthy publicou Este País não é Para Velhos (2005) e A Estrada (2006). Com A Estrada, uma narrativa sobre um futuro pós-apocalíptico em que os Estados Unidos surgem como um país habitado por sobreviventes envolvidos em práticas funestas como o canibalismo, Cormac McCarthy ganhou o Prémio Pulitzer e foi convidado para o programa de televisão de Oprah Winfrey. McCarthy aceitou de bom grado o convite. Algo parecia ter mudado no escritor anteriormente esquivo. Na noite da gala dos Óscares, onde triunfou o filme Este País não é Para Velhos, em que Javier Bardem desempenha um papel inesquecível que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, estava acompanhado pelo seu filho de oito anos. A Estrada foi transformada num filme realizado por John Hillcoat e protagonizado por Viggo Mortensen, Charlize Theron e Robert Duvall.

Seguiram-se 16 anos durante os quais McCarthy não publicou nada, embora durante todo esse tempo escrevesse incessantemente. Todos os dias ia para o Instituto de Santa Fé, onde era o único escritor num mundo ocupado exclusivamente por cientistas. Foi a sua aproximação à ciência que definiu uma estranha mudança de personalidade. Nessa altura, Cormac McCarthy já não era dono de si. Tinha entrado na lenda.

A publicação simultânea de O Passageiro e Stella Maris foi um novo tipo de desafio. Como disse Czeslaw Milosz quando falou do «segundo espaço», McCarthy já tinha passado para o outro lado da vida e estava a escrever a partir daí. Nem todos foram capazes de o seguir, embora houvesse entre os seus leitores alguns tão apaixonados como sempre. São, no fundo, dois grandes livros, apesar das suas irregularidades.

Com McCarthy, não desaparece apenas um grande narrador, mas também uma forma de enfrentar a obscuridade com as armas mais difíceis de sustentar, as que são empunhadas em nome de um ideal alheio às leis que regem o mundo.

Uma questão de sobrevivência: a propósito de um poema de Yiorgos Seferis e outro de Alexandre O’Neill

Este é um pequeno texto sobre dois poemas acerca de dois pequenos países como fonte de dor. Um dos poemas foi escrito em 1936, pelo poeta grego Yiorgos Seferis, e o outro em 1958 pelo poeta português Alexandre O’Neill. Nenhum deles foi leitor do outro. Comecemos com outro exemplo. Em A Beleza do Marido, Anne Carson, que é muito provavelmente leitora de Yiorgos Seferis mas nunca ouviu falar de Alexandre O’Neill, começa o seu livro com a imagem de uma ferida: “Uma ferida exala a sua própria luz/ dizem os cirurgiões./ Se todos os candeeiros nesta casa fossem desligados,/ seria possível fazer o penso a esta ferida/ com o que brilha a partir dela.” Estes versos são precedidos pelo título longo e peculiar desse primeiro poema: “Dedico este livro a Keats (foste tu quem me disse que Keats era médico?) porque uma dedicação tem de conter uma falha se um livro é para permanecer livre e para a sua rendição geral à beleza.” Quando estava a traduzir este livro, em 2019, assumi que esta expressão sobre ferida e luz era idiomática e que devia ter um exacto equivalente em português. Perguntei à minha irmã e ao seu companheiro, ela enfermeira numa unidade de cuidados intensivos de oncologia na altura e ele um médico de clínica geral agora no internato de cirurgia, e nem um nem outro ouvira falar de tal expressão. Mas ambos concordaram que teria algo a ver com o modo peculiar como a luz incide sobre uma ferida num campo operatório, e com um certo sentimento de empatia para com os doentes, algo que ver com o modo como as feridas contam histórias.

2. Em 1936, Yiorgos Seferis já sabia qualquer coisa sobre poemas enquanto instrumentos cirúrgicos. Já tinha escrito, no ano anterior, o seu ciclo de poemas mais famoso, Mythistorema, o The Waste Land da literatura grega: é na terceira secção desse poema que ele fala da relação muito peculiar da literatura grega da sua época com a literatura clássica. Ele representa a tradição como uma cabeça de mármore que repousa sobre o colo do narrador, que não sabe onde a pousar. Surrealismo e literalidade eram, muitas vezes, o método de Yiorgos Seferis. O método ficou cristalizado em Mythistorema. Em 1936, Seferis escreveria um dos seus poemas mais famosos, “À Maneira de Y.S.” Este é o único poema que Seferis escreveu “à maneira de,” mas o Y.S. não é outro poeta, é Yiorgos Seferis.

Um dos grande críticos de literatura grega moderna do século XX, Yiorgos Savidis, num artigo intitulado “The tragic visions of Seferis” definiu suncitamente o contexto político em que este poema apareceu: “O poema foi escrito em 1936, depois de Mythistorema (ao qual alude) e pouco antes do começo da evitável ditadura de Metaxas.” Savidis pensa que o título contém um traço de auto-paródia e cita Seferis, que terá dito: “Não há nada de engraçado no que estou a tentar dizer... mas, pelo amor de deus, porque é que eles não sentem que o tentei dizer de forma engraçada?”

Há algum tempo que ando a pensar na função da auto-paródia neste poema. O poema abre com um dos versos mais famosas de toda a literatura grega moderna: Opou kai na taksidepso I Ellada me pligoni. “Para onde quer que viaje, a Grécia fere-me.” Savidis, que conheceu bem Seferis, diz que ele não era nem “pessimista nem lacrimejante” mas que lhe agradava “ter uma visão trágica própria.” Se um poema sobre uma ferida é sobre o modo como ela exala a sua própria luz, a que há para ser encontrada em “À maneira de Y.S.” deriva da tensão entre o impulso para a auto-paródia e a resonância da tragédia grega antiga. O poema olha para a sociedade, sobretudo a ateniense, da época como teatro. O título acrescenta um tom auto-depreciativo que minimiza o estilo mais elevado que vem das referências a mitos gregos trágicos. Vale a pena citar aqui o núcleo mítico do poema, que é a segunda estrofe:

Para onde quer que viaje, a Grécia fere-me.

Em Pélion entre os castanheiros a camisa do Centauro
caiu por entre as folhas para se enrolar em redor do meu corpo
enquanto subia a encosta o mar perseguiu-me
subindo ele também como mercúrio num termómetro
até que encontrámos as águas da montanha.
Em Santorini tocando ilhas que se afundavam
ouvindo uma flauta tocar algures na pedra-pomes
a minha mão pregou-se à amurada
por uma seta subitamente disparada
dos confins de uma juventude desaparecida.
Em Micenas ergui as grandes pedras e os tesouros dos Atridas
e dormi com eles no hotel “Bela Helena do Menelau”
só de madrugada desapareceram quando Cassandra gritou
um galo pendendo da sua negra garganta.
Em Spetses, Poros e Míconos
deixaram-me doente as barcarolas.

A única imagem em todo o poema que não é inteiramente sobre uma ferida metafórica é aquela imagem da mão, perfurada por uma seta que uma mão invisível dispara dos confins de uma juventude perdida. Quando li pela primeira vez o poema, a teia de mitos homéricos, tal como adaptados por Ésquilo na Oresteia, um ciclo trágico muito caro ao pensamento ético e político de Seferis, é imediatamente reconhecível. Também é fácil de reconhecer a alusão à túnica do centauro Nesso, que se colou ao corpo de Héracles, matando-o em As Traquínias. Mas esta seta talvez não seja esse tipo de seta mítica. A juventude de Seferis foi uma juventude difícil. Marcada por muita errância, por períodos extensos de estudo em França e em Inglaterra, e pela Catástrofe da Ásia Menor, em 1922, por uma relação difícil com o pai, e por um regresso a Atenas meio à deriva, para um trabalho que ele não queria. Sob a ditadura de Metaxas, daria por si brevemente, e enquanto funcionário público que depois passaria mais tarde a uma carreira diplomática, a trabalhar no equivalente ao ministério da propaganda, um período infeliz que se alongou até ao início da Segunda Guerra. A vertigem de febre que é evocada pelo verbo que eu traduzo por “deixaram-me doente,” χτικιασαν (um verbo difícil de traduzir, pode querer dizer “estar doente” no sentido de estar cansado, farto, mas também quer dizer “sofrer de tuberculose”), pode ser metafórica, mas tem decididamente qualquer coisa de biográfico. Esta seta, no entanto, que vem dos confins de lugar nenhum, liga-se a todas as referências homéricas que vêm a seguir. É uma seta que me faz pensar em todas as setas disparadas nos mitos homéricos: as que Apolo dispara quando é o protagonista de um dos símiles mais belos, e mais letais, da Ilíada, aquele em que o poeta o descreve descendo sobre o exército grego como a noite no Livro 1, para disparar as setas que espalham a peste, há as setas de Filoctetes, que hão-de ajudar a destruir Tróia, Filoctetes ele próprio vítima de uma ferida infecciosa, que o ostraciza do exército grego. E, finalmente, as setas dos dois arqueiros homéricos, que são também as duas personagens em Homero mais capazes de ambiguidade moral, Páris e Ulisses. É uma seta disparada por Páris que matará Aquiles e é com o seu arco e flechas que Ulisses mata os pretendentes dentro da sua própria casa, no banho de sangue do fim da Odisseia.

Esta seta, que é disparada dos confins de uma juventude perdida, podia vir carregada com a ressonância de qualquer uma das setas homéricas, mas o que é certo é que deixa o narrador pregado num ponto fixo. As barcarolas, que deixam o narrador doente, são as primeiras de uma linha de embarcações problemáticas neste poema. Os barcos são uma fonte de loucura colectiva em “À maneira de Y.S.” (há nas últimas estrofes aqueles que se afogam tentando nadar atrás de um grande navio e aqueles que se cansam esperando por navios que não hão-de zarpar dos portos). (Barcos de resto, têm uma longa tradição poética que se fixa no modernismo, de Rimbaud a Pessoa, a Montale, a Rilke (veja-se a este propósito o livro de Michael Hofmann, Messing About in Boats).)

Cenários sociais são observados através da lente de uma lucidez afiada e amarga: “Entretanto a Grécia viaja,/ e não sabemos de nada, não sabemos que somos marinheiros que ficaram sem trabalho,/ não conhecemos a amargura do porto quando todos os navios partiram;/ escarnecemos dos que sabem.// Estranha gente que dizem que estão na Ática/ mas não estão em parte nenhuma...” Seferis usa neste poema imagens que exploram, e vão para lá, de um sentido de deslocamento interno num período severamente marcado por migrações de refugiados na história da Grécia, os que viviam na Ásia Menor e que de lá vieram depois da derrota na Guerra Turco-Grega de 1919-22, que resultou numa troca de populações. A própria família de Seferis era oriunda de Esmirna. Os mitos de que este poema mais fala são os da Guerra de Tróia. Há uma citação directa de um verso do Agamémnon de Ésquilo “e se vemos “o Egeu florescer com cadáveres.” Esse é um verso proferido pelo mensageiro para descrever o naufrágio dos navios de Menelau no seu regresso de Tróia. A última imagem que pertence à semântica da doença vem nos versos finais do poema “Para onde quer que viaje a Grécia fere-me,/ cortinas de montanhas arquipélagos granito despojado.../ Chamam ao único navio que viaja AG ONIA 937.” O local onde o poema foi escrito também está anotado, “A bordo do Áulide.” Áulide é, segundo Homero, e mais tarde na versão de Eurípides, o nome do local de onde os Gregos partem para Tróia e é onde Agamémnon mata Ifigénia, que é motivo por que ele é morto no regresso pela sua mulher, Clitemnestra, num crescendo de violência que só termina com o julgamento de Orestes, que adoece de loucura por causa das Fúrias, porque tem de vingar o crime do assassinato do pai matando a mãe, e com a sua absolvição, que encerra o ciclo de violência com aquele que é o mito da origem de uma instituição ateniense, o tribunal do Areópago. Os mitos que dão estrutura à Oresteia estão entre os mais opressivos dos mitos gregos, falam de uma epidemia de violência ancestral que pesa sobre a casa dos Atridas. Se “À maneira de Y.S.”  tenta dar um diagnóstico para uma ferida e para o modo como a sua dor se manifesta, também podemos dizer que na sua narrativa de indiferença social – vale a pena mencionar a piada política no curto diálogo de duas personagens em Atenas, em que uma personagem pergunta a outra, na afectada língua artificial e conservadora que era a norma oficial do katarrevousa, se um vem da Praça Omónia (da Harmonia) e o outro responde que não, que vem da Praça Syntagma (da Constituição) – o poema tenta falar de uma forma de doença colectiva. Perguntar que tipo de luz uma ferida dá é uma forma de entender o seu significado e a sua dimensão. Sempre que leio “À maneira de Y.S.” lembro-me de uma coisa que Jean-Paul Sartre escreveu em 1961, no seu prefácio a Os Condenados da Terra  de Frantz Fanon: “Quando Fanon diz, pelo contrário, que a Europa caminha em direcção ao desastre, longe de isto ser um grito de alarme, ele está a oferecer um diagnóstico.”

3. Em 1958, Alexandre O’Neill tinha 34 anos e publicava um dos seus poemas mais famosos, “Um adeus português.” É um poema onde não se fala de dor, mas três imagens ficaram-me facilmente na memória: a da angústia no olhar no início, desses olhos que são a princípio descritos como “altamente perigosos,” a da “pata ensanguentada que vacila/ quase medita/ e avança mugindo pelo túnel/ de uma velha dor” e aquela imagem de uma pequena dor à portuguesa, “tão mansa” que é “quase vegetal.”

Às vezes releio esse poema, e penso que O’Neill não estava interessado em história da Europa, ou em oferecer qualquer tipo de diagnóstico quanto ao contexto político em que estava a viver, pelo menos não directamente. Acho que onde o poema de Seferis tem qualquer coisa da articulação desesperada, mas lógica, de um diagnóstico, de uma explicação, o de O’Neill não aceita explicações, é um poema que avança ferozmente através de descrições de rigidez e imobilidade. Fecha-se na sua propria dor e dispensa-se de explicar qualquer coisa que não seja a descrição e a denúncia da corrupção moral que era a do regime totalitário sob o qual O’Neill estava a viver. Onde o poema de Seferis procura uma tradição, de resto apropriada até à náusea pelo regime de Metaxas, numa tentativa de a reclamar de volta, o de O’Neill recusa genealogias literárias. É imediato e directo como se um poema pudesse existir sem família poética, como se a ausência dessas ressonâncias fosse uma recusa, uma maneira de falar sem artifício de uma solidão absoluta e de uma perda absoluta. A genealogia cultural verdadeiramente óbvia deste poema pertence a imagens que remetem para descrições de tortura medieval (a roda, em que se gira e se apodrece). Em 1985 em Uma coisa em forma de assim, O’Neill falaria das origens biográficas do poema, de Nora Mitrani, da oposição de alguém na sua família a que ele partisse para Paris, de ser detido e interrogado pela PIDE, e de ter durante anos o passaporte negado. Ultimamente, quando penso em passaportes, penso em O’Neill. Penso numa frase desse texto que ele escreveu em 1985, que se chama “A história de um poema, em que ele diz: ” “Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes.”

 

Reparo que tanto o poema de Seferis como o de O’Neill lidam com a imobilidade, que é o contrário da liberdade, reparo como falam de uma fixidez imbecil que traz com ela a infelicidade. São dois poemas que não oferecem soluções. Os críticos de literatura grega ainda hoje discutem o que quer dizer ao certo o número do navio, 937, que talvez seja uma alusão ao ano seguinte, 1937. Os últimos versos de resto contêm outro trocadilho, AG ONIA é a forma diminutiva de AGIA ONIA, Santa Onia, na forma abreviada, AG., tantas vezes assim grafada nas proas dos barcos gregos, equivalente ao nosso St., que permite que a palavra se leia AGONIA: “Chamam ao único navio que viaja AG ONIA 937” é o último verso do poema. Há poemas que nem sequer nos salvam, como me disse uma vez uma amiga minha que é poeta: a poesia não serve sequer para lavar os dentes. Sobreviver não é uma salvação. Mas podem servir para reconhecer a vulgaridade do que nos rodeia, a que O’Neill talvez tenha chamado de “amor mal soletrado” e resolver não acrescentar nada ao seu veneno absurdo. Podem ser, quando parecem não ser mais nada, apenas uma mera questão de acessório de higiene, o espelho diante do qual lavamos os dentes. Mas os poemas bons são sempre isso e tão mais do que isso:


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

             Atenas/Amorgos
Maio/Junho de 2023