Perder, imitar e prosseguir,
de rancor em rancor,
pelos nós do agora.
O medo tanto, cada vez maior.
É tão fácil perecer,
enquanto o sono, as insónias.
 
De devaneio por fome,
de gula por fantasia, cais de joelhos,
Ah a flor das árvores altas.
As pequenas grandes obras,
a engenharia,
os rastos pegajosos.
 
Os olhos caem-te no lençol
e ficas, nuvens baixas,
pelo arquivo das derrotas.
Chove.
Tantos charcos.
Incógnitas.

Charles Ray - The New Beetle, 2006.jpg

Charles Ray - The New Beetle, 2006.

[em cada novo esboço]

em cada novo esboço

um promontório.

saltamos lado a lado

o mesmo estirador comprido

os mesmos postais do Pompidou

gastos os vazios de Chillida

lápis e catálogos e revistas

que ignoram os nossos olhos baços

em cada novo desenho

um matrimónio.

a minha vida nua

os beijos da tua

como crepitar de fogueiras

raros poemas ameríndios e promessas

o verbo já encarnado

chegaste.

contigo trouxeste a simetria

de dois pelicanos sobre o peito

a alegria de duas ou três

camisas de seda floridas

raras golas amarelas

que ano após ano

me deixam sempre a dúvida:

- o verão não morre em setembro?

Eduardo Chilida - Homenagem a Braque, 1990..jpg

Eduardo Chillida - “Homenagem a Braque”, 1990.

Património

Migalhas muitas e folhas e restos
e periscas que inundam passeios
e caminhos. Palavras assim,
ao abandono, perdidas.
Que não inquietam ninguém,
excepto os doentes
que tudo sentem de modo mais vívido.
Tudo tão volátil
como os textos e imagens
que ficam pelos arquivos
digitais ou físicos, ensimesmados
nas metáforas da selva e do circo.
Isso que, para os mais velhos,
é ainda pura monocromia.
De facto, que seria dos museus
sem estes desperdícios?

Obelisco do Alto da Memória, Angra do Heroísmo. (Pormenor).


ecce homo

há um homem
que atravessa a rua
para comprar pão
que se preocupa com as contas
a pagar no final do mês
há um homem a quem darei lugar
na fila do supermercado
por só trazer com ele
frango grelhado
e um pacote de batatas fritas
talvez lhe dê indicações na rua
quando estiver perdido
para um encontro
ou o avise da mochila aberta
numa manhã no metro
em hora de ponta
quem sabe salvo-lhe um filho
se ele não reparar
que a criança
se aproximava demasiado da estrada

há um homem
com quem me cruzarei
a cidade é pequena
e isso é tão certo
não lhe vou saber a idade
ou como queria ele envelhecer
ou se imaginava algum dia
a que velocidade
faria voar um corpo

não lhe conheço a cara
o nome, preferi também não saber
há um homem que respira
que verá o céu limpo que hoje se pôs
fará as suas plantas crescer
se não se esquecer de as regar
e pouco a pouco
ficará mais perto do chão

sabemos pouco:
há um homem
ele respira
esse homem vivo
que matou alguém que amamos

é este o homem
que fez de nós
árvores perenes da cor da ira,
venham todas as estações
dilúvios bíblicos anos férteis
passem gerações de filhos
casas demolidas antigamente habitadas
esqueçam-se detalhes
de velhas histórias de amor
morram animais dóceis
por mais amados
depois de décadas silenciosos
num recanto doméstico

enquanto um de nós for vivo
seremos sempre estilhaços
de um aperto agudo:
a perpétua busca de alguém
que sem saber
nunca voltaria a casa.