Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

Dois poemas de "Silvina" de Leonor Buescu

isso é a tua incumbência
que eu não chego às plantas
tu quem trata lá no alto
a ligeireza
inteireza fresca com que
levas a água à existência
verde forte do caule

cresce porque lhe
dizes o dia a hora
do sol franco embora
tímido
por vezes na sua rega

contigo a folha vence
brota o botão
a flor capaz


machadinha

pomba
pombinha
se tu és minha
aí na rua
também eu sou tua
quieta
esmagada
impressa
plo pneu
e pla chuva

nem distinguem
as penas do alcatrão
camuflada
tudo cinza
aberto
opaco e mudo
leque de espinhas
e sangue morto

pomba
pombinha
há quem te diga
grande praga
mas esses
não te vêem
quando voas

derrota

há o contentamento
das pequenas virtudes
a inflexão casta
nos bons-dias
o perdão desnecessário
uma graciosidade dramática
quando a bola
toca a tela
e os erros
se vão
acumulando

andamos há anos nisto
oferecemos tanto de nós
e isto é tudo
o que temos a mostrar
homens de meia-idade
perdidos na sua fúria
que mascaram
os vícios
e o excesso de peso
no equipamento de marca

encenamos
monólogos de um acto
sobre
o temor da morte
e este é
sobre perseverança
e este é
sobre inteligência e estultícia
este é
sobre a beleza
e como aceitar
a sua ausência

há no erro
algo de catártico
testámos os limites
do nosso carácter
e fomos julgados insuficientes
ridiculamente insuficientes
e a nossa única consolação
que trazemos na mão
como uma arma
ou verdade
é a coragem
de termos
ido a jogo
a certeza
de que
o voltaremos a fazer

se formos escolhidos
pelo capitão

desde que não chova

Dois poema de "Um dia serei humano" de João Vilhena

no fundo da lata busco o prazo
dois do três de dois mil e quatro
tu entras e sais do televisor
como uma notícia vista
em todos os canais
e ris-te da minha precisão
que diferença faz
um dia a menos um dia a mais

na taça já pouco resta da fruta enlatada
no sofá o teu corpo quase morto
é o eco da imagem retida na foto

é difícil tirar os mortos dos vivos
as sombras não têm prazo
nelas está o arrepio dos astros


O dia revelou-se pouco a pouco
sem nunca se mostrar inteiramente
Esticas os lençóis a noite
é uma memória que a tua mão alisa
……………………………………….
Nada se abre a estas horas nem eu nem tu
nem a padaria do lado ser a peça inútil
que resta dum armário montado à pressa
ou dum jogo abandonado de criança
…………………………………………
Isto vem tudo melhor e claramente explicado
numa página exata quem sabe a 44
de um livro talvez por mim em tempos lido

os protestos

para a Clara Crepaldi

às vezes sonho que estamos
perdidas em protestos violentos
numa cidade qualquer
que não sei nomear ao certo
e que atacamos os monumentos
as fontes e as estátuas dos mortos
caídos em batalha
que desfiguramos os rostos
dos generais, dos escritores, dos compositores
calçamos sapatilhas e usamos bonés na cabeça
e do pescoço pendem-nos máscaras de gás
corremos à frente de contingentes da polícia
por ruas barricadas cujo traçado não sabemos ler 

meio cegas e cansadas e a sangrar
queremos continuar a esmurrar os muros
com a cadência de um concerto de ira
escondemo-nos nas catedrais
e queremos rejeitar o mundo
que construíram para nós
queremos construir outro mundo  

há depois um breve momento de silêncio
e no escuro da imensa nave central
tu tosses sangue com a cabeça
escondida no meu peito
e nunca te abracei sem deixar de reparar
o quanto mais frágil do que eu és tu
mais baixa e mais magra e de ombros estreitos
e ao mesmo tempo melhor a ficar calada
e muito melhor na paciência e mais vivaz
como se tudo o que nunca me contas
alimentasse a força com que voltas
a tudo o que precisas de terminar
das minhas amigas a melhor e a mais clássica
de todas no perfil e nos braços tatuados
de figuras negras e vermelhas tiradas
de antigos vasos gregos 

o grande órgão ao centro da igreja começa a tocar
no escuro e gente coberta de pó e sangue
como nós senta-se nas cadeiras austeras
velas acendem-se aqui e ali
e nós como duas raparigas
ao fim de um longo dia aprisionadas
nos bancos da escola
adormecemos de cansaço com as costas
contra pedras húmidas e frias
num edifício de uma rua
que devia dar para o monte parnasso
ou para a devastação de rituais irracionais
de onde se pudesse extrair outro começo
estudando cuidadosamente na penumbra
os rostos dos homens que entram e saem
tentando decidir quais de entre eles
não mereceriam algumas pauladas
cegamente desferidas 

ainda que possa mesmo ser
que uma de nós venha a ser mãe de rapazes
ordeiros e que todos os dias se vistam
de fatos cinzentos para servirem os sonhos
lucrativos de um patrão qualquer
que lhes dê conforto suficiente
para alimentar a ilusão de que não são eles
parte dos explorados
e que explorar outros é necessário e justificável 

um palerma que se penteie de risco ao lado
que para nossa maior raiva
alimente a multidão dos que queiram numa eleição qualquer
pôr a cruz no partido de algum psicopata incompetente até
a ser demagogo no seu ódio contra a humanidade
murmurando inanidades incoerentes
cheias de veneno e promessas de destruição 

numa falta de empatia legitimada
por uma muito antiga lógica de vingança
repetida até à náusea por gente disposta a acreditar
que da ignominia talvez venha
liberdade e igualdade 
seremos talvez mães de filhos da mãe
dizes tu e rimo-nos com um desespero
fundo e com gosto  

aqui dentro
reparo nas tuas mãos esfoladas
à nossa volta
as ruas estão a pegar fogo
temos cada vez mais sede
e há cada vez menos água 

Paris, 8 de Dezembro de 2018

Oxford, 14 de Dezembro de 2018