Três mandamentos

para um propenso desígnio da sorte:

fazer um filho
plantar uma árvore
escrever um livro

a criação no tempo na angústia mais pura
— os quartetos por ler no terraço
goro invocado a nome na cabeça literária
    

para um intenso domínio da arte:

plantar um filho
escrever uma árvore
fazer um livro

o ato de enterrar o quê e o quanto puder  
à guisa de informação: iodo e tutano
para o desespero pelo idioma nos olhos


para um pretenso declínio da morte:

escrever um filho
fazer uma árvore
plantar um livro

até que se veja o ser revivo relâmpago
irregular e tão útil: cavalar
corrigido e aceito pelo crânio turquesa 

ordens expressas:
recordar remanejar transgredir o orfeu


Quatro poemas de Anelise Freitas

Canto XXVI (ou texto da aliteração velar-oclusiva I)

quando o gato das cordas gastas
pede no cantinho gemido
do ouvido um gesto me distrai
pegaria o resto e o registro
e rasgaria todas as fotos
gritando tus bolas batendo
guá! a onomatopeia ve-
lar e oclusiva enquanto eu pango 

 

Canto XXVII (ou texto da aliteração velar-oclusiva II)

sente enquanto cresce e não tem fim nem pingo
nem ponto nem garantia de que transformar um poema
em uma coisa capenga será extraordinária não garantimos
nada pra hoje gangue gago gota galinha e o paralelismo
de um poema é quando as sílabas apagadas ganham equilíbrio
aliteração e assonância = rima
ainda pingamos um pagode aqui
e outro em pindamoguangaba ou
pasárgada mas é preciso que rime, rimemos
riremos (muda o verso)

 

Canto XXVIII (ou texto da aliteração velar-oclusiva III)

pego um pequeno adendo pra dizer.
diga. digamos que: eu tenha nutrido amor por poeta
e amar é muito mais que corpo, é presença e gosto ainda
de você
enquanto chora,
talvez entre aquele cigarro e o agora
o mundo tenha acabado
e eu nem vi.

 

Canto XXIX (ou texto da aliteração velar-oclusiva IV)

e se eu te dissesse que amo você
que amo a maneira como aquele corpo
se move quando encontra música
que amo o rosto da menina portuguesa enquanto
sorri ou acende um cigarro
(que eu sei, eu estive lá,
eu precisei sair pra encontrar aqueles lábios)
que amo observar as costas
nuas da menina que pratica meditação
que eu amo aquela que dança sobre
a mesa ou veste maiô tatuagem
que eu amo a garota que transforma e
gerencia as coisas e tudo garante engaveta-se nela
que amo também a tua forma
irônica de encarar a vida não
porque eu admire ou me complete, mas
porque é uma forma criativa de ver a poesia
na sujeira dos sapatos que te acompanham
e os críticos guturalmente preveem crise no
pós-guerra


Eu falo para aqueles que correm de seus corações numa tarde de sol

Numa esquina você espera o ônibus
bem na frente do ponto de ônibus
bem na frente de um terreno
um terreno do tamanho da sua mão fechada
mas o terreno é um campo aberto
bem aberto, bem mais que seus dentes
bem mais que a justificação da caminhada
talvez até mais impenetrável que suas unhas

mas seria imponderável calcular um momento ou o todo
ao redor. seria pesado, do tamanho de um olhar que a gente
nunca quer ter.

eu falo para aqueles que correm de seus corações numa tarde de sol
e levam no bolso o passe do ônibus com todos os créditos
eu falo para aqueles que correm descalços pelo asfalto das ruas desossadas
e desatentos não tropeçam nos buracos

eu esfolo os olhos numa tentativa de fala
mas nada
nada
nada
parece alcançar a pequenez necessária
que se deve ter para que escutem a pele

eu falo para aqueles que subiram em suas cabeças e viram de lá
que o mergulho é algo que inunda
e corro atordoado por tantos muros
atento a tantas cercas
e falo para aqueles que ainda correm
falo correndo para aqueles que ainda estão

eu levo no bolso um peito aberto
um rebento
um sopro
uma barragem estourada

e agora te vejo ai
e te aviso:
teu ônibus vem,
mas demora. Os teus pés não precisam da espera, porque são asas.

Dois poemas de Ellen Maria Vasconcellos

Resumo da história

Um coração cheio de nortes morde o pano
encharcado de sangue gozo e lágrimas
e se arroja convicto
pela janela
levando vidros vidas e morte
sem se importar
com as veias, pele, nada
que se move ao redor dele.

Não foi assim mas isso é o que sobra
do que fez a faca à carne:
um corpo arquivo de quinhentos dias
um atlas de um país sem nome
e sem escala.

 

**

 

Ainda é cedo

olho pro céu buscando algo
me escapa o nome daquilo que sobra do cigarro
seja o que é
                                jogo longe
estou em terra nova de cinquenta estrelas
faz frio mas ainda não tremo
e não conheço ninguém por mais de vinte e quatro horas
um rosto
                 no entanto
                                   na fumaça que sopro se volta
com certa familiaridade
que sinto ter em situações de tímido desespero
brando (alguma vez já te aconteceu isso?)
e quando me vejo incapaz de seguir
olho pra ele
e ainda é cedo
falta mais música
                a dança
                              uns tragos
                              canções em guitarra
o corpo aguenta muito sem filtro
até que a noite pertença somente aos gatos
olho pra ele sem desculpa
(te tive aí, por uns segundos, em pause)
e de repente, vem o nome:
                                             bituca
                                                         guimba
(como será que diz em tua outra língua?)
e já é hora de voltar
                               ao ponto
                               de partida.

 


guilherme

eu não li o livro
do mathieu
mas eu li 
uma resenha
explicando
as sensações para tentar justificar
o tema do livro e tentar mostrar
o que é que amar quer dizer
estipulando data horário e traço
etimológico da palavra amor
para o nascimento de um laço
que a gente carrega assim
entre as estantes do teu quarto
entre as tuas meias pretas
entre a sua camiseta levantada e
os seis traços no seu abdômen
entre os teus sorrisos e
o cabelo amarrado separado
em duas partes
hoje se chama de samurai
esse estilo de coque
mas estranho seria
tentar remontar a herança
pela simples justaposição de figuras
que não tem entre si
absolutamente nada de relacionado
além de uma fatia de cabelo
jogada para cima
amarrado numa fitinha
emprestada de outro poema
formando um laço
formando um espaço e um
presságio de abraço
feito esses que agora a gente pode
se dar no meio da avenida paulista
aos domingos porque agora
mesmo a procuradoria tendo
multado a prefeitura por transformar
um espaço público em uma zona
de aproveitamento para o já
mencionado público
temos a segurança de podermos
nos abraçar sem sermos
obliterados por um carro
agora só nos resta o resto da
violência sistêmica que ainda
nos solapa feito caminhão
virado na estrada

a estrada que nos remete também 
ao sentido da viagem 
e à importância que ele dá ao 
processo 
ao momento em que não interpolamos 
o começo o fim e o meio e ficamos 
com a totalidade dos quilômetros 
percorridos pelos nossos pés 
entre uns momentos em outros
desviados sem as mãos em conjunto
tentando olhar mais um quadro
da frida na exposição 
do instituto 
que já nos guardou a presença 
uma vez
entre barcos
bexigas de bolinhas e fotos
espalhadas pelos cantos 
como aquelas luzes que hoje
eu guardo no quarto esperando 
à época natalina e o retorno 
dos pés que se afastaram na outra 
parte da avenida paulista
enquanto a CET abria 
a rua novamente 
para a invasão do privado 
no público

eu ainda não li o livro do mathieu
mas isso me fez pensar
que a busca do significado
 
de amar talvez tenha a mesma
sensação da viagem e do processo
 
e do quanto eu gostaria que você
fizesse parte
seja você ponto ou retrocesso
 
porque na minha estante ainda cabe
mais um pouco de estrada
mais um pouco de caminho e dor
nas costas

 

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