2002, fado das noites
de segunda-feira: dirigir
até a vídeo-locadora
para restituir os filmes
do final de semana.
Então sentia nos ossos
um prolongamento do estio.
Tinha os olhos embotados
como se alguém lhes soprasse
algo da poeira clara
dos jasmins macerados
e algo da eletricidade suja
da cidade, de seus prédios
brancos como intactos fósseis
de baleia no areal reencontrado.
Mirava a luz em torvelinho
nos alto dos postes: neblina
fina, amarela, granulada.
Respirava a desolação
acre das sarjetas:
em meio ao barro que secava
amontado de folhas castanhas,
restos de comida,
cigarros tragados e esmagados
por solas de sapatos
e ainda assim a cidade
esgotada era o meu amor.
Da juventude, remanesce
esse sentimento noturno.
Todavia, entre ontem e hoje,
um cais naufragou e não
os barcos que dele partiram.
Conheço apenas a deriva
e há muito deixei de crer.
Não acredito em minhas mãos.
Não acredito em meus amigos.
Não acredito na poesia
como algo que me transcende.
É, antes, a ressonância
da dor que me foi legada
por caber em meu próprio corpo.
No entanto, sei.
Maio também é um mês de repetições
e a verdade de suas noites
é caminhar sempre no mesmo jardim.
Idêntica, a relva massacrada. Idêntica
a cor do luar, cobre encardido,
e os ventos dispersos em grãos
de areia negra, poeira de carvão
contra o rosto, contra
uma vaga idéia de abandono,
desamparo, tédio. Idêntica
essa excitação nos ares
que me faz rosnar.
Tenho o coração aguilhoado
e quase me revejo
na noite passa diante de mim:
um espelho de água podre,
um cicio áspero de ramos
quando venta mais forte,
uma luz mortiça no interior
de uma casa em ruínas,
uma estátua na praça
recoberta de lodo e passado,
um fracasso diante de um poema
que exige algo como a fúria
exata e ideal.
Mas qual a fúria exata e ideal?
A fúria de ontem, que mantenho
como uma carta a mim mesmo
que o tempo revelou ridícula?
A fúria de agora, herdeira
de lirismos aleijados?
Ainda é fúria o que tenho
ou seria raiva – surda e subterrânea,
sentimento que mais plenamente
me irmana com os homens.
O que sobrevive, afinal?
Ainda tenho os olhos injetados
de poeira e eletricidade
e a noite de Maio, se manto for,
é cravejada de luzes duras
dos faróis dos carros e é
gelada como uma mancha de bolor
na parede do quarto.
Luz fuligem ferro carne
no acelerador de partículas
que estrangula a cidade.
Clarão imantado
sou eu próprio a comunhão
que renego, os olhos recobertos
por uma cicatriz de sal
e a língua ferida
por palavras tóxicas.
O céu se dilui em vapores róseos
e a noite é sujeira estática
como há dez anos
e como há dois mil anos.
Dentro de meu coração, grito
para uma fome dispersa em si mesma.
O amor, com a sua magreza de fantasma,
atravessa ossos e tecidos,
chega até a carne, marca o seu sinal,
e no desespero conflui
sonambulismo e insônia.