"da última vez que mariana olhou para cima..."


da última vez que mariana olhou para cima
havia  o céu
e luz solar
e algumas nuvens pairando iludindo
que o céu movia
quando eram elas que moviam
nas maiores partes do dia mariana olhava para cima e havia teto
e algumas vezes havia Heródoto ou caio mas também eliza
e osíris se anunciando numa cor de pulcra
ou burgandy e o sorriso de mariana virava
outras vezes que olhava para o céu havia apenas a ilusão e a vontade de que o tempo corra
em outras chuva
em algumas nuvens o novo sorriso de juliana reconquistado
e quando mariana coçava o umbigo e gemia
havia um feixe da internacional
ou talvez uma prismática acumulação de agua condensada
espraiando em arco a bandeira da diversidade sexual
muitas vezes olhava para o céu
mas o teto bloqueava
e muitas vezes o teto era o céu
ou uma redoma
teto branco transparente ou parreiras de uva
ou guirlandas sob as quais era bom os lábios
de alguém nos lábios e a mão na nuca
e outras eram pontas de figueiras
que os olhos de mariana viam
com luz azulada desfocada do próprio céu
própria atmosfera em que se é
quando olhava para cima e havia alguém
como Heródoto
sim era sempre Heródoto
que queria
pois havia o suor e o gemido
e a alegria
e a pequena morte

Dois poemas de Daniel Francoy

RAÇÃO MÍNIMA DE ESPANTO

 

Ração mínima de espanto
o dia vence com a sua parcimônia:
magra miséria, revolta
que é apenas raiva, ternura
nostálgica, degenerada.

Hoje reunimo-nos em assembleia
para decretar a morte dos escorpiões
e o amor fracassado pelos pássaros
rápidos como o fogo: dourados, sanguíneos,
uma mancha incendiada, um gorjeio
contra o silêncio morto da tarde.

Tenho a esperança do terror puro,
abismo de susto, mas o luar
é um delírio visto todas as noites;
algo como uma rouquidão desafinada
de uma voz que, veludo, é o breu noturno
e ainda há outras formulações possíveis:
o luar é o fracasso do céu
preso às minhas mandíbulas
e é a potência de meus dentes crispados
- vontade sonâmbula de mastigar -
abocanhando fiapos de tédio.

Fracasso em sonhar que sou Van Gogh.
Desconheço a metamorfose do fogo.
No espelho, o rosto é o rosto
que encarei antes de adormecer
enquanto escarrava sangue
contra o mármore da pia.
Em minhas mãos espalmadas, os dedos
alongados são franjas de espuma
e se fecho as mãos, retendo o vazio,
é como se eu sepultasse
um embrião que é vento e desespero
e se calo é porque estou órfão do horror
de exibir o meu rosto mutilado aos homens do meio-dia.

 

 

PÁSSAROS

 

As gaivotas não são brancas
como aquelas que aparecem em poemas: são
pássaros sujos em praias impróprias para o banho.
Disputam o que os turistas oferecem
e morrem nos canais onde a água poluída
com o mar se confunde – imundície
a espelhar o arrebol.
E há o abutre morto à margem da estrada.
Encontrei-o no amanhecer, indistinto
da terra e da relva massacradas.
Sei que o reencontrarei no entardecer
e talvez eu o nomeie melro.

Maio Revisitado

2002, fado das noites

de segunda-feira: dirigir

até a vídeo-locadora

para restituir os filmes

do final de semana.

Então sentia nos ossos

um prolongamento do estio.

Tinha os olhos embotados

como se alguém lhes soprasse

algo da poeira clara

dos jasmins macerados

e algo da eletricidade suja

da cidade, de seus prédios

brancos como intactos fósseis

de baleia no areal reencontrado.

 

Mirava a luz em torvelinho

nos alto dos postes: neblina

fina, amarela, granulada.

Respirava a desolação

acre das sarjetas:

em meio ao barro que secava

amontado de folhas castanhas,

restos de comida,

cigarros tragados e esmagados

por solas de sapatos

e ainda assim a cidade

esgotada era o meu amor.

 

Da juventude, remanesce

esse sentimento noturno.

Todavia, entre ontem e hoje,

um cais naufragou e não

os barcos que dele partiram.

Conheço apenas a deriva

e há muito deixei de crer.

Não acredito em minhas mãos.

Não acredito em meus amigos.

Não acredito na poesia

como algo que me transcende.

É, antes, a ressonância

da dor que me foi legada

por caber em meu próprio corpo.

 

No entanto, sei.

Maio também é um mês de repetições

e a verdade de suas noites

é caminhar sempre no mesmo jardim.

Idêntica, a relva massacrada. Idêntica

a cor do luar, cobre encardido,

e os ventos dispersos em grãos

de areia negra, poeira de carvão

contra o rosto, contra

uma vaga idéia de abandono,

desamparo, tédio. Idêntica

essa excitação nos ares

que me faz rosnar.

Tenho o coração aguilhoado

e quase me revejo

na noite passa diante de mim:

um espelho de água podre,

um cicio áspero de ramos

quando venta mais forte,

uma luz mortiça no interior

de uma casa em ruínas,

uma estátua na praça

recoberta de lodo e passado,

um fracasso diante de um poema

que exige algo como a fúria

exata e ideal.

 

Mas qual a fúria exata e ideal?

A fúria de ontem, que mantenho

como uma carta a mim mesmo

que o tempo revelou ridícula?

A fúria de agora, herdeira

de lirismos aleijados?

Ainda é fúria o que tenho

ou seria raiva – surda e subterrânea,

sentimento que mais plenamente

me irmana com os homens.

O que sobrevive, afinal?

Ainda tenho os olhos injetados

de poeira e eletricidade

e a noite de Maio, se manto for,

é cravejada de luzes duras

dos faróis dos carros e é

gelada como uma mancha de bolor

na parede do quarto.

 

Luz fuligem ferro carne

no acelerador de partículas

que estrangula a cidade.

Clarão imantado

sou eu próprio a comunhão

que renego, os olhos recobertos

por uma cicatriz de sal

e a língua ferida

por palavras tóxicas.

O céu se dilui em vapores róseos

e a noite é sujeira estática

como há dez anos

e como há dois mil anos.

Dentro de meu coração, grito

para uma fome dispersa em si mesma.

O amor, com a sua magreza de fantasma,

atravessa ossos e tecidos,

chega até a carne, marca o seu sinal,

e no desespero conflui

sonambulismo e insônia.

 

no fundo do raso do mar

no fundo do raso do mar
está a cara verdadeira
o retrato é ancestral
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação
o andamento é manso
ereto aberto
 a cara não é triste ou alegre
é manifestante
é uma tomada de reconhecimento
é uma tomada de negação e reconhecimento
é a momentânea falência dos olhos
estou
e com os braços de espinhos volto a lavar o rosto a louça
fecho o mar porque o outro recipiente
à mesa não pode perceber o aniversário
dos minutos

Dois poemas de Raquel Gaio

vi outro dia
um cavalo semi-morto no meu nome
no corpo dele, a mensagem :
quanto tempo resistimos agonizando?

as unhas parecem cozer o tempo
e a fé é uma grande ressaca

uma longa crina nubla nossa visão
temos o olho doente da mesma paisagem

há um grande abandono por aqui
um terreno baldio uma rodovia abismo
artérias inchadas de barrancos

mas (quase) ninguém vê

sabes que nossos nomes são grande uma invenção
mas o corpo, o precipício de toda espera.


e pensar que também é destino essa convalescência, essa busca pelo olho aberto, o enigma desapiedado, saber que cada ida também é uma volta precária, a carne aberta enferma primata, penso nas migrações que não aconteceram, no útero devastado, o tempo oxidando um corpo, estou numa cova de palavras e tu não me ouves daqui, estamos sempre aterrorizados pelos gestos, pelas patas inflamadas de vaidade, lodo, desejo, o colo, já te disseram que os ossos apodrecem diante de toda espera? temos na boca o desamparo da busca, e nos encontros a porção de eternidade, de infinito, labirinto que rege as distâncias e os espantos, todo nome aduba um terreno baldio e sei que no escuro, tu sabes também, não há ruído sem pretensão, sabemos da cólera e imaginamos o paraíso, o leito, um deus, mesmo sabendo o quão é difícil viver no nosso tempo, esse vazio, essa besta que grunhe, esse chicote que nos devora, tenho tanta ilusão nas articulações que desmorono antes mesmo de toda chegada.