Poesia e Solidão

A poesia não se faz de correntes nem de contra-correntes[1]: a poesia faz-se de solidão. É em solidão que a escrevemos e em solidão que a habitamos. Ou melhor, investirmo-nos da sensibilidade poética é investirmo-nos da nossa solidão, inundarmos a mudez do mundo com o halo de uma autenticidade que nos pertence e que a ele reclamamos, por vezes, quando o que é excessivo em nós não encontra eco no silêncio fechado do que nos rodeia.

É comum, e talvez não despicienda, a noção de que a origem da poesia está historicamente associada ao aparecimento do culto religioso, esse elemento unificador das sociedades, mas também de confronto com as forças incoercíveis da natureza e com a inelutabilidade da vida. Creio, sobretudo, que o dado consumado de que morremos não é alheio à intrínseca necessidade que o ser humano experimenta de fazer a sua vida confluir para situações em que o sentimento estético actua como elemento redefinidor da existência, dando-lhe consciência da exiguidade e incomunicabilidade dos seus domínios, que no entanto se distendem e proporcionam algo semelhante a um alívio nessa distensão. Como disse a propósito da poesia de Antonio Gamoneda, a poesia dá-nos consciência da dimensão daquilo que entregamos à morte, ou seja, o nosso eu, opondo-o ao que sabemos que o extravasa porque, inacessível e inabitável, ainda assim se nos apresenta, mesmo que o não consigamos representar. Falo de Deus, o mais verdadeiro e mais vago dos conceitos.

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O trabalho

Alex Colville, Self -Portrait, 1942 (pormenor)

Alex Colville, Self -Portrait, 1942 (pormenor)

Nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos.

Jorge de Sena, «Mar de Pedras»

 

Só ficando cego posso fazer o meu trabalho. É a única maneira. Levei algum tempo até perceber que era a única forma de isto poder resultar. Mais tarde pode dar-se o caso de alguém vir dizer que eu percebi isso mais cedo do que quando vos informei. Que empatei ou adiei esta declaração. Mas não é verdade. É possível que tenha não querido ver, o que, tendo em conta as circunstâncias, até é adequado. A única maneira de continuar, é ficar cego. Estou a dizer. Não é que seja preciso cegar completamente. Mas é preciso ir ficando, sendo que no fim, quando o trabalho estiver acabado, estarei, como consequência desse processo, completamente cego. Comecei por perder algumas cores, agora estou na fase em que cores e perspectivas se somem. Escapam-me, pequenas linhas de luz que me escapam. A minha mulher, por exemplo, ela canta na sombra, alcandorada, a sua voz dura, não a cor que ela veste, o corpo dela na varanda mais baixa, uma sombra cortada contra a praia mais ao fundo. Eu tenho tempos de ter sido o homem que a viu, mas as cores vão-se perdendo. Não são já tão nítidas. Escolhamos um dia aleatoriamente. Ontem, por exemplo. Virei-me para o lado e fiquei a ver da janela o vulto que se aproximava subindo a rua. Só quando ele estava mesmo sobre a janela, um soldado de cabelo talvez amarelo, ele riscou o fósforo, a garrafa no seu barro opaco com as flores posta sobre o parapeito acendeu-se, uma parte das cores não estava lá, nunca se propagaram na refracção da luz, ele olhou para mim, eu vi-lhe o nariz, as orelhas grandes, era um rosto sem olhos, sem idade. Nunca cheguei a entender, enquanto podia ver nitidamente, exactamente o que é a cor. Abrupta, a mão bateu contra o vidro. Ele fez este gesto porque não pode dizer se eu estou já completamente cego e é até possível que esta cara me lembrasse do meu rosto se eu a pudesse ver (e eu conheço-a, a memória do meu rosto é completamente nítida, conheço-a melhor agora, a minha memória de todas as imagens, de resto, é agora muito mais aguda). Ficámos a olhar um para o outro, a piscar os olhos no crepúsculo. Podia ser que noutro tempo nos pudéssemos ter sentado um diante do outro e que a beleza de um espantasse o outro. Eu sentado no meu banco, do lado de dentro da loja, ele do lado de lá, com o braço a afastar a coronha da espingarda do vidro. Imaginei que podia ser ainda um rapaz, ou podia ser que fosse cara de barba feita, que melhor me enganasse. A água corria nos vidros e era já tarde e digo-te mesmo que não sei. É como te estou a dizer. É preciso que cegue. Para ver, há todas as coisas que deixarei de ver. Quando comecei, pensei que este era só o meu trabalho, que nada me ia ser tirado. Não que alguém me tivesse prometido alguma coisa, ou que me tivesse pedido alguma coisa, não foi isso, nada disso. À medida que o tempo foi passando, fui fazendo concessões de todo o tipo. No princípio, talvez que fosse apenas o medo de ficar sem trabalho. O que acontece a um homem a quem tiram o trabalho ou àquele que o perde? Na minha cabeça o som de duas sílabas, ca-sa, assim, divididas por um hífen e eu caindo no interstício, com uma nuvem de pó a levantar-se e as fundações da estrutura a partirem-se frágeis como os ossos de um velho e mesmo até o meu corpo a sumir-se, a acabar-se de repente, na margem de um passeio qualquer, numa qualquer beira de estrada, sem cinematografia nenhuma, na sarjeta mesmo. Sem trabalho, não és parte da estrutura, ou a estrutura rejeitou-te, não podes comprar o teu pão. O teu contracto social. Para um solitário como eu, o pão é o único laço que me une à sociedade a que pertenço. Repara que é como eu posso ser tolerado pela estrutura. Eu nunca pus a pergunta de outro modo. O que acontece a um homem com trabalho? Eu falo a mesma língua, sou pago com o mesmo dinheiro, fui educado nas mesmas escolas e tenho a mesma religião, ainda que nenhuma pátria valha ou explique o meu amor. Este corpo não tem de verdade idioma, hino, bandeira. Posto noutro sítio, aprenderá outra língua. E outro remédio não terá que escrever-se nela. E como qualquer outro, tenho cuidados com os que me rodeiam. Tenho por eles cuidado. Nesta mesa, com um canivete, alguém riscou «nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos». Antes de mim, andou para aqui um leitorzito de Jorge de Sena. Leitor. Como eu. Talvez o país que me resta seja isto. Cara e olhos e talvez óculos e sentado sobre a janela, ora atento ora desatento. Muito pouco diferente de mim, talvez. Os dedos dela, por um instante, pararam sobre a minha testa. Eu nunca a vi. Ela tocou-me, foi só isso, mais nada. Sofrimento nenhum nisso. Sofrimento em nada. Por um instante ameaçou o meu limite, qualquer coisa se abriu nesse lugar. Como eu. Talvez a única coisa que eu seja. O que guarda a narrativa. É por isso mesmo preciso que vá ficando cego. É a única maneira de conseguir fazer isto. Quando comecei, isto era só mais um trabalho. Mas à medida que o tempo foi passando, fui-me sentindo cada vez mais desligado de horários, entidades patronais, colegas, escritório. O trabalho começou a andar comigo. Não que tanto dele gostasse que ofício fosse. Não é um desses casos. Antes isto. É necessária a troca, versão civilizada do sacrifício. E a troca é este luxo. O que eu não posso. Todo o meu amor inteiramente.

 

Enumeração: August in Paris

a)
No papel em branco, começar por estabelecer a teoria das três cidades (no mínimo): aérea, ao nível dos cais, subterrânea. Ir para lá do sítio onde sempre caminham os nossos pés, aquele que vem nos mapas dos turistas, muito dobrados sobre si próprios. Quem sabe, contar depois, com falsa ingenuidade, (mas será difícil…) uma história que tentasse nada disso esquecer. Nada disso e tudo o mais. Recapitulando. Primeira cidade: nas torres o lugar suspenso das nuvens, as ruas e as praças como um brinquedo frágil e sofisticado, com um trânsito preciso, cuidadoso; segunda: uma cidade mesmo junto ao rio, percurso solitário e errático de cais, largando os negócios do corpo e da alma uns metros acima; terceira: uma imensa plataforma subterrânea, túneis e túneis entrecruzando-se, esgotos, colónias de ratazanas e uma necrópole que murmura um silêncio com demasiada terra e raízes.

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Volta à ligadura

Atrapalha-me o passo quando penso regressar. Digo baixinho palavras supostas, convenço-me de que dois gloriosos dias bastam para me atrever a olhar em frente. Sinto cansaço e digo adeus às casas baixas, àquelas varandas onde se afirmam ingénuos e percorro em desequilíbrio estas ruas uma última vez. Para trás fica gente bonita, sabes. Gente cuidada e lágrimas tantas. A aldeia vai ficando para trás e o meu coração soluça ao tentar acompanhar o ritmo apressado da locomotiva. Isto não devia ser assim: todas as viagens de despedida deviam ser acrescidas de um tempo extra. Duas horas mais dez minutos em ritmo lento, à força de querer olhar uma vez mais para trás. Aconchego-me no banco desconfortável e observo a manhã seca. Ali está a minha mãe. Alcanço-a com a minha mão, “estás tão perto”. Imagino a minha cara encostada ao vidro, construo frases de dezasseis palavras, entretenho-me. Havia um tempo em que a minha operação linguística bastava para me render aos novos hábitos citadinos. Mas hoje não. Hoje sou analfabeta, levo rebanhos numerosos, divago em montes alicerçados. Voltei. Mas é sempre por tão pouco tempo. Chego à cidade e ainda sou pastora. Talvez por isso as pessoas me olhem com sermão. Nada digo, avanço os pés apertados habituados à rotina do campo. Há ligaduras invisíveis sobre o meu corpo. Receio as mentiras que se adivinham, os dias passados no silêncio do centro, o dialecto correcto que afugenta sorrisos alheios. Ah, cheguei. Sem saber onde. 

 

À beira de uma graça furiosa

Alguém:

descobrir que não há Deus, que alegria! Põe a gente à vontade. Respira-se de outra maneira
e
deus. se tiverem equipamento. investiguem-no
e

Ainda não se respira como devia ser

I. Alguém dizia: a morte, na tua poesia, vive. Não é mortífera. Primeira impressão em negativo.

II. Num manual de anatomia espanhol de 1556, de um tal de Juan Valverde de Amusco, um écorché segura numa mão a faca, noutra a própria pele. Alguém diz: Apolo e Mársias. Proponho outra legenda: “A certa altura da sua juventude sumptuosa, Kafka pôs de lado a sua cópia bem manuseada de Herberto Helder e experimentou a arte da prestidigitação”. Tome-se a figura como parábola do ofício frio e exangue a que me proponho. A pele és tu. Venho do lado da faca, e não do fogo. É uma espécie de fidelidade.

III. Dizias: insondável entendimento das metamorfoses. Alguém dizia. Dizia: uma arte interna. E pegava em objectos vivos, terríveis. Líricos, vivos. Chegava ao centro. Dizia: placenta. Experimenta esses escafandros. Dizia. Desce aos poços, experimenta um a um ofícios debruçados, move o cuspo de um lado ao outro da boca, por exemplo, como alavanca para as mãos. Experimentei, e desci, e experimentei, e movi. E disse. Bombeei sangue até partes ocultas. Isto em frente a amigos. Que diziam: é bonito, esse jogo de tubos. Vi-os a não verem o prodígio. É também difícil o ofício de ver a ausência de prodígios.

Voltei a ser o mais inepto pirómano de ervas do meu tempo. Dizia: dai-me uma alavanca e eu emperrarei o mundo.

Venho pois falar-te dos meus escafandros avariados. De pedras de isqueiro gastas. Da felicidade da falha nos motores da fosforescência. Dos frutos frios, por fora, por dentro não aquecidos a electricidade. Alguém dizia. De botânica petrificada, de magia exausta. De coisas e palavras encerradas, e não cerradas, em torno do côncavo. Do ponto morto no meio de uma sofreguidão de ímans.

IV Dizias: a inteligência que aparelha o caos em relações sensíveis de elementos. Venho pois falar-te de uma certa estupidez.

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