Tirbuson

Eu tinha um saca-rolhas, para as garrafas de vinho. Ainda me lembro da cor. Era Bordeaux. O tom escuro de vinho tinto que me agrada tanto. Não tenho a certeza se essa cor muda com o tempo. Isto normalmente é o que acontece com as pessoas. Quero dizer, o tempo muda as pessoas. O pior é que não me lembro como me veio parar às mãos, se foi um presente de um ente querido. Lembro-me que uma vez vi uma faca pequena numa loja velha numa rua chuvosa. De um lado da faca estava escrito: “Talvez a minha dádiva seja uma que é pequena, mas tem cuidado porque se a perderes, vais perder-me a mim também.” Mas eu estava a falar do meu saca-rolhas, o meu primeiro e o único – até aqui – Tirbuson. Não me lembro se o comprei à pressa para abrir uma garrafa de vinho no Verão. Talvez este saca-rolhas me tenha pertencido só porque tive pressa de provar vinho com amigos ou com alguém de quem gostava, mas já não me lembro quem eram. Esta é a minha pena. Nem sequer me lembro se o encontrei na rua, esquecido por outro pessoa ou se o agarrei como um troféu de guerra. E se era uma relíquia de família? No caso de ser “um prémio de bravura”, gostava de saber em que guerra participei. Será que a venci para receber este tesouro? E se sim, quem eram os meus inimigos? Que lado era o certo? Espero que o meu fosse o certo, para que não tenha insultado a vontade de certos deuses zangados.

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Sólo las manos calientes dentro de un cuerpo

mi abuelo decía: no dejes que el animal huela tu miedo 

mi padre decía: no dejes de mirar al animal porque el caballo nunca cierra los ojos 

en el quirófano alguien decía: no dejes de irrigar con suero caliente los órganos de un vientre abierto 

mi cuerpo se repite sangrando y dice: en cada movimiento ya no soy el cuerpo que fui 

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Os beijos que vais dar

Na entrada e na saída do metro, nas carruagens, rápidos, longos, os beijos que vais dar na praia, na montanha, no carro, as mãos que vais dar, rápidos, longos, o sol que tantas vezes se vai ver a ele próprio nos teus olhos, os beijos no elevador, no carro, na faculdade, que vais dar, as mãos rápidas, os braços que te vão abraçar, os sinos passados, fotografias, as torres que vais subir, os espelhos todos em que te vais ver, segura, extremamente segura, linda, feia, obcecada, feliz, vazia, cheia, gorda, magra, dando-lhe as costas, experimentando vestidos, feliz, sentindo que a vida é um mergulho, dando a volta, que não há tempo, que há muito tempo, extremamente feliz, a euforia, o tédio, o que vais ver e dar, os sonhos abandonados, os sonhos realizados, a salitre depois do mergulho, o sol que vai ficar sempre dentro de ti e que tantas vezes se vai ver ao espelho em ti – e dentro, a corrente de vida segura, a felicidade extrema, a felicidade-mergulho ou a felicidade-estrela, as portas que vais abrir, a vida com todas as suas pegadas, dias vazios, dias citrinos, dias de chumbo, de calor ou de frio – mas dias de ganhar sempre e ganhar sempre contra ninguém, vais sentir neve nos olhos, neve nos pés, abraços nos pólos, abraços no centro, um olhar para cima que te vai libertar, sentir-te protegida, abraçada, ter recordações que te vão magoar, que te vão fazer mais forte, que vais ter que esquecer, os beijos que vais dar – no metro, rápidos na subida do autocarro, atrás, dentro, fora dos prédios, a chuva e o vento que te vai bater, todas as cores que vais vestir, todas as formas que vais tocar, sentir, modelar, guiar e ser guiada, pela estrela ou como estrela. Mas pensa, guarda e mantém, em todos os momentos, que está sempre ao teu lado o Capitão Soninho, ao lado de todos os beijos e de todas as páginas que vais virar, marcar, reler, saltar rápido, comer - páginas, capítulos - marcados, sublinhados, limpos, abandonados, livros que vais esquecer numa paragem, num autocarro, ou que vais querer incendiar, poemas que vais deixar em sítios a que não voltas – acidentes voluntários ou involuntários, conquistas, perdas que não existem, ajustes - Paginas rápidas, demoradas, relidas, reescritas, apagadas, riscadas, escritas nas margens, escritas no fundo, escritas por cima - Sempre escritas por cima com o privilegio de renovar, em varias cores e fundos.

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do ano da graça dos nossos senhores


o que não rebela no chão é homem que cai connosco, e o calor aumenta na forca que é não respirar aqui, porque ainda há a saliva azeda na fala sem pés, e o bafo da mesma grandeza. queremos pão, por ainda sentirmos pele, queremos esticar bem a vontade e notar o arco de uma montanha brava, o registro de uma manhã desafogada, mas a vergonha perde-se de alfinetes nas lágrimas, no cruento que nos diz ruinas do que se deve esquecer, 

as tempestades não quebram a surdina de uma inexistência absurda e vivem vendavais quietos, insectos sobrevoam o odor de quem mendiga o direito, com subterfúgios numa mente extinta e bocejo consentido. 

a santa vai magra, ao norte faminta de voz, ao sul distanciada pelo eco da pedra no berço do povo, os céus bordam os visionários e as calçadas pisam-nos, não há toque que não cheire a lamento e que não mereça piedade, a crença tem buracos intermináveis por pobreza extrema, tem cerco de explosão pronta para a aridez da mesa. continuem feras aos finados, saiam gritos ao silêncio, ainda assim as feras deixarão de ser feras e passarão a ansiosa maceração.

 um dia as mais pequenas montanhas cobrirão de conhecimento os delineamentos de mãos dadas, viajarão de respeito grande, será questão de um olhar relâmpago e dizer:
 
nós, descentrados, nós

de abraço de noite no mundo, dentro dos sinos, das badaladas, das religiões,

nós

Sebastianópolis abandonada

É tamanha coisa o Rio de Janeiro da boca para dentro

(Gabriel Soares de Sousa)
 

                I 
         De madrugada mataram um rapaz aqui na rua. Os vizinhos me disseram que ele foi tirado da cama aos berros, todo mundo ouviu. Aí atiraram nele. Morreu de pijama, quase na altura da avenida da praia. Não tinha família, pelo menos isso – os vizinhos disseram. Assim ninguém sofre.
          Anteontem (23/05/2013) deixaram a cabeça de outro rapaz no colo da estátua do José de Alencar, ali perto do Lamas. Tenho o hábito de acenar para a estátua quando passo por ela. É quase sempre uma saudação morna – vivemos perto um do outro, olá, eu te reconheço e reconheço a cidade porque você está sentado aí há mais de um século. Raramente passamos da troca de cortesias. Anteontem eu acenei para uma cabeça decepada. Mal consegui almoçar.
          A estátua é verde. Tem uns olhos entediados, as coxas magras de quem passa muito tempo sentado. Um caderno quase caindo da mão esquerda. Parece exausta. Sempre achei que era um cansaço arrependido: José foi petrificado assim para expiar a culpa daquelas sete cartas de 1867, nas quais defendia a escravidão: "A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito". 

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