Personagens secundárias

Escreves o livro da tua vida com a boca colada a um manancial. O teu coração está em Madrid, algures entre a promiscuidade da selva e a tristeza do arcanjo. Fazes um esforço insano para pareceres invariável, grato, trivial, nem que seja por um instante. Aprendeste a falar mais alto. A dobrar as consoantes, a abrir as vogais. Aprendeste a conviver com a elipse, a olhar com profundidade para os vazios narrativos que arrastam o fedor e a fidelidade pelas paredes do teu pequeno quarto alugado e até o teu desespero se tornou elegante e sociável, depois de teres provado a sua ineficácia total. Sempre que o narrador te obriga a caminhar pelas ruas movimentadas da cidade, sem outro propósito que não o da pura locomoção, tu fazes ligeiras digressões interiores para escapares à prepotência mecânica da fábula e extrais dessa minúscula infracção uma radiosa e inevitável felicidade. O enredo dobra-se e desdobra-se vezes sem 
conta numa sinuosa procissão de mandatos, ordens, desordens e recados, que cumpres escrupulosamente até não poderes mais. Quando anoitece e julgas que sais do trabalho, mandam-te finalmente jantar e depois regressar ao quarto, assistir a um pouco de solidão no ecrã. Mas assim que finges os protocolos do sono e crias a elipse terminal, diriges-te para a penumbra redentora de um bar, numa hora tóxica em que o diálogo reina sobre a descrição pouco apaziguada de um sofá, e ficas sentado junto de um par de pernas em chamas, com a garganta desfeita de tanto calares, um copo de uísque na mão onde o reflexo do teu rosto perdura trémulo e oxidado.
É quando te escorrem as lágrimas.

18.

os maiores confrontos dão-se quase por devoção nas noites de maior silêncio. as vozes são uma guerra individual e secreta com a verdade, porém, são por vezes desporto colectivo e violento de esgrima numa discussão caseira que atinge a dimensão de uma noite em branco. pelos olhos disparam-se feixes certeiros com o propósito de cegar de razões a oposição. o discurso fica ligeiramente atordoado numa fase inicial, porque por norma a escolha dos nossos delitos não coincide com o nervo que alimenta a essência da discordância. ora que surgem imprevisões durante o desgaste. os altos e baixos vão de uma parte à outra parte e sucedem-se da outra parte de volta a si. num destes instantes de erosão comum, suspendem-se por bilateral acordo naquilo que se firma: sonhámos em construir um palácio com barro, mas nos avessos dos tijolos descobrimos uma casa a precisar de cuidados intensivos. um deles abre uma janela. em seguida, o fumo que sai (se era o que havia) dissipa-se da confusão grave e aguda de oxigénios e algumas faltas de ar. 

7.

tem toda a gente debruçada sobre ela. recorte esguio sobre fundo azul, o corpo fingido de estatua e os cabelos, amarrados, em grande cúpula de olhar vidrado – somente por um segundo pestanejou através dessa cortina de gelo, embora não se tenha virado nenhuma vez para a multidão. de repente tudo fica solene. depois do arrebatamento, a euforia deu lugar aos receios múltiplos de quem vira acontecer tragédias e fracassos vezes demais. cada instante pulsava com as respirações em crescendo. e depois já nada se ouvia a não ser, a provação do som. ela - na agilidade habitual a que tinha acostumado outros tantos - severa consigo e ainda assim harmoniosa com os presentes. elegeu criteriosamente a sincronia da implosão com os braços em contacto com a vertigem. não demorou mais que pouco. e em menos de nada o que só ela sabia é que tinham sido eles os escolhidos para assistir in loco a sua irreversível despedida.

A chegada a casa

A chegada a casa. Despe-se do casaco e atira as chaves para cima do bibelô de louça chinesa barata - tilintam-lhe os passos pelo grande corredor - na casa de banho lava com a toalha os olhos manchados de contornos de negro. Toma um duche demorado e quente, sai em carne viva no que até poderia ser uma sensação falsa de rubor. Mas que no caso não é. Deita-se no sofá sem ligar o televisor, sem ligar a rádio, sem se baralhar no seu silêncio com nenhum som. Recusa jantar, acariciar o pelo postiço do bicho embalsamado que tem plantado no centro de um pé direito razoável. Mas isso não é o pior. Força-se a adormecer ali, entre o estado prostrado e o selo que se fecha posteriormente. Já nem se lembra se as feridas se lambem ou se os selos são pedaços que se colam autónomos às cartas. Deixa-se deixar, teimando entre a mudança das horas ou o filme que de outras janelas nunca ninguém vê. A não ser, a falta que lhe fazia em desfazer a falta que já é. Porque o carteiro deixou de tocar? Chega a casa, e todos os dias anota a mesma pergunta numa parede de cera. O tempo voa, é o que todos lhe dizem. Mas onde não moram asas e o canário perdeu o pio, restam de quatro paredes o abandono de uma sirene anestesiada. Morta, talvez. Azul, é a cor que se lembra. E depois, um tom esbatido. Talvez do corpo, sem mais o que despir, estátua que ainda resiste. Sem visitas. 

Sobre cafés

Exemplar de espécime de coffee shop britânica que não o Café Costa ou o Café Nero

Exemplar de espécime de coffee shop britânica que não o Café Costa ou o Café Nero

 

Em Inglaterra, da primeira vez que bebi um americano, basicamente um grande copo cheio de café que tende a saber à cevada que a minha tia-avó bebia, senti-me duplamente enganada. Não só porque achei que nunca me ia habituar a beber um café que me pareceu ser o equivalente emocional de uma enorme nostalgia do chá, como me pareceu obsceno ter de pagar mais de duas libras para beber um café.

De modo que guardas armados de metralhadoras e gigantescos pastores alemães atravessavam os corredores de Heathrow e eu vim cá para fora beber café de um copo de papel enquanto me lembrava de uma música do John Lee Hooker que inclui a expressão “drinking coffee from a paper cup” imediatamente seguido de um desdenhoso “lord have mercy” (a música faz parte da inenarrável banda sonora da série Homicide, o ensaio de David Simon para o The Wire, também passada em Baltimore). 

Album 2 cd ; Together (1989) Lyrics;Away from the city that hurts and knocks, I'm standing alone by the desolate docks in the still and the chill of the night I see the horizon the great unknown my heart has an ache it's as heavy as stone with the dawn

 

Há na maior parte das coffee shops inglesas uma diferença de preço consoante se consuma o café dentro ou fora do estabelecimento. Confesso que isto me faz uma enorme confusão, que tem tanto a ver com a suspeita de que há uma certa ofensa à hospitalidade que todo e qualquer espaço vagamente semelhante a um café deveria cultivar, como em termos de pegada ecológica não me parece fazer muito sentido não sair mais caro a um indivíduo beber café de um copo de papel com uma tampa de plástico do que de uma caneca. Por outro lado, percebo que se se vende meio litro de café a um cliente é complicado mantê-lo dentro do estabelecimento pelo tempo que leva a beber. 

A minha segunda tentativa com café americano acarretou melhoras significativas, que na verdade nada tiveram que ver com café. Há em Oxford uma livraria de quatro andares que ocupa um quarteirão, a Blackwell’s. No segundo piso há quase todo um andar dedicado a clássicas, uma versão do paraíso para qualquer classicista. Durante a minha primeira semana na cidade acabei por passar bastante tempo nesta secção. Imediatamente por baixo há um café Nero, que a par com o Costa e com o Starbucks, é uma das grandes cadeias de coffee shops que existem um pouco por toda a Inglaterra. Tenho uma relação ambivalente com coffee shops que vêm às cadeias. É verdade que em Lisboa beber uma bica é bastante igual em todos os lugares, não mais num Starbucks, se se pedir um expresso, do que no Café Luanda, mas é possível beber um café em cidades tão distintas como Londres ou Oxford ou Birmingham ou Manchester com a impressão de que estamos sempre no mesmo lugar. A impressão arrasta com ela outra, a de uma falsa familiaridade. É possível estar em casa em qualquer lugar porque os mesmos rótulos dominam a paisagem. Na verdade, chegando ao Sá Carneiro no Porto, topa-se com um café Costa. Tal como tínhamos topado com um Costa horas antes, em Gatwick. Na minha última viagem, este aeroporto tentava compensar isto de uma maneira vagamente esfíngica, apresentando também um rancho folclórico como atracção turística alternativa (ao Costa, claro).

Café Luanda (em Lisboa), de outra forma não relacionado com nostalgias colonialistas.

Café Luanda (em Lisboa), de outra forma não relacionado com nostalgias colonialistas.

A maior parte das coffee shops em Inglaterra fecham às seis da tarde. Quarteirões de portas fechadas exibindo uma melancolia rigorosa de repartição de finanças em cidade de província. No Inverno esta hora de fecho torna-se particularmente penosa. Não só porque as coffee shops que não vêm às cadeias são bons sítios para ler ou trabalhar, mas porque no meu caso, um dia de trabalho normal começa às 9 da manhã e termina por volta das 18. Mas assim que atingirmos o pino do Inverno é de noite às quatro da tarde. É como visitar uma cidade fantasma. Há estúdios e bibliotecas que se acendem assim que anoitece, sobretudo se caminharmos por certas zonas da cidade, mas assim que chegamos às ruas principais, os cafés, as livrarias e as lojas estão fechados. O pub ao fim do dia é a coisa mais parecida que existe com um café. O pub é uma espécie de limbo, onde não é suposto ir-se para jantar (embora isto varie bastante de pub para pub) e onde não é suposto ir-se beber um copo depois de jantar porque a maioria fecha por volta das dez e meia da noite.

Ao fim de algum tempo a viver numa cidade uma parte da nossa experiência nessa cidade são os sítios onde bebemos café. E esta não é uma parte menor. De manhã nos últimos instantes antes de irmos trabalhar ou ao fim do dia com os amigos, os cafés são uma parte importante da nossa vida e da paisagem das cidades do sul da Europa. Lugares que temos para ir. A expectativa dos minutos antes, ou de saber que naquele dia combinámos um café com alguém algures. Convidar alguém para beber um café em determinado café pode dar de barato uma série de pistas acerca de quem somos. E um sinal de que nos estamos a tornar amigos de alguém é se perguntamos ou se recebemos a pergunta sobre se queremos beber um café mais logo. Nunca se bebe um café com alguém que não nos interessa depois de um longo dia de trabalho. A vida está intimamente ligada às geografias que construímos em torno dos cafés. Imperceptíveis, discretas, elas estão tão ligadas à nossa rotina, como à nossa vida emocional. Daí a Ruy Belo lhe ter dado para escrever “e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar”.

Ruy Belo sentado, alegadamente depois de ter bebido café.

Ruy Belo sentado, alegadamente depois de ter bebido café.