Três diplomas

Havia um homem muito grande, de seu nome L, que tinha uma letra em vez de nome. Isso causava-lhe muita impressão, apesar de não se chamar Luís nem coisa que o valha.

Certo dia, decidiu que seria bom apresentar-se a alguém. Ainda hoje não sabemos porquê, mas há algo em todos nós que se quer apresentar sem distrações, ou com variadas, consoante a época do ano. No Natal, por exemplo, fica bem um copo de vinho à lareira.

L quis candidatar-se.

Como em qualquer candidatura, é preciso saber ao que se vai, ainda que tal pormenor seja supérfluo, ou mesmo desnecessário. No caso de L veio a comprovar-se que era desnecessário.

O anúncio do jornal dizia: precisa-se de alguém cuja função não pode ser especificada num jornal comum, mas quando muito num anexo do diário da república, querido livro cujas entradas começam sempre assim: “querido diário, escrevo-te para te dizer que hoje me apaixonei...”. Toda a gente sabe que o diário da república está repleto de paixões bastante correspondidas. Entretanto percebi que em vez de entradas podia ter escrito entranhas. Mas agora já está demasiado longe, a palavra, para ser corrigida. Antigamente não, a gente rasurava e depois editava. Agora não.

L continuava a querer candidatar-se.

Ninguém lhe exigia outra coisa senão ser L, porque sempre souberam quem ele era, porque tinha barba e bigode e não dizia erros como “haviam três homens” ou “a gente vamos à praia”, mesmo que em ambas as situações o mais grave ser o facto real de apenas um homem constar na situação reportada, e não quatro, e ninguém ter ido à praia naquele dia por estar bastante frio e ainda mais chuva. Coloca-se a hipótese de talvez, eventualmente, por acaso, alguém ter ido à praia, mas L nunca iria com a sua “gente” naquele dia, porque estava naquilo a que os seus chamavam de “comício”(?).

L queria muito aquele lugar.

Pensou: “seria melhor ter um diploma que assegure que eu afinal posso ter um diploma. Aliás, eu não digo “a gente vamos”. As duas coisas, conjugadas, farão de mim presidente de qualquer coisa, depois de cessar o cargo público a que me candidato”.

L queria mesmo muito aquele lugar. Já lhe sentia o cheiro.

Entretanto, ninguém lhe disse que estava na essência do diploma, já desde os seus famosos tempos da antiguidade, a necessidade de existir. Ou seja, mesmo que fossem cinco palavras escarafunchadas a dizer: “fulano de tal é carpinteiro” (por fulano de tal entende-se toda e qualquer pessoa, e não um nome, o que seria estranho pois naturalmente escrever-se-ia Fulano de Tal, com letras maiúsculas), essas cinco palavras precisavam mesmo de existir, num papel qualquer. A diferência é que antigamente se dobravam os diplomas, e agora penduram-se na parede. Quando existem. É difícil enrolar o vazio, que o digam os ateus ou os estudantes de yoga.

Na altura, L frequentava uma cadeira de Mecânica Geral na Grande Universidade do Mundo, cujo acrónimo era demasiado ridículo para não ser inglês. Era um curso simples, em que se ensinava os rudimentos da roda, sem qualquer tipo de perspectiva histórica, até porque “perspectiva” se deve escrever sem “c”. Grande parte dos alunos chegava a perceber o mecanismo da roda, mas infelizmente L andava ocupado com outros assuntos, nomeadamente em correr o país para se tornar visível aos olhos de um determinado indivíduo para quem agora queria trabalhar mediante concurso público, e, portanto, e por inerência, fechado ao público, porque o público, o vulgo, a multidão, a turba não conhece anexos do tal diário que começam sempre por “querido diário, escrevo-te para te dizer que hoje me apaixonei...”

Uma ideia peregrina iluminou o rosto de L. E se pudesse dizer que era especialista em mecânica geral? A ideia era sedutora. Toda a gente gosta de um bom mecanista geral no seu departamento, especialmente porque a roda já foi inventada, e em qualquer ministério que se preze de ter o nome de ministério há computadores que não precisam de um mecanista geral, mas apenas de alguém com capacidade de apresentar rapidamente uma solução para o facto de “a opinião pública” considerar que determinada roda deixou de funcionar, ou deixou de ser roda, ou passou a ser um círculo unidimensional. Ser mecanista geral era perfeito. Bem vistas as coisas, chegou a ir várias vezes ao curso de Mecânica Geral e correu bem. Sim, percebeu tudo o que o professor dissera, não os princípios matemáticos e físicos subjacentes, claro que não, percebeu aquilo que era mais importante, a roda roda, pronto, que muito mais haverá a dizer sobre isso? A pergunta fora feita a um determinado membro ilustre do partido, que anuiu: então frequentaste (nunca diria “frequentastes”) a GUM, eu também por lá andei, conheceste (nunca diria “conhecestes”) o Eng.º Teles, sim, claro que sim, grande homem, exigente, claro, Análise Algorítmica, difícil, muito difícil, fiz, sim, fiz, tu também, claro, claro, bons tempos, como é que te chamas, L?, ah, claro, já ouvi falar de ti, bom trabalho, tens trabalhado bem, tens mostrado vontade, ambição, vamos ver, vamos ver, vamos ver.

L cada vez mais queria o seu diploma, a tal ponto que passou a ter não um, mas dois.

Pensou, já que tenho um diploma, mais vale ter outro. Sou mecanista geral, mas facilmente podia ser economicista, bastava um dia ter frequentado uma cadeira de Análise Geral numa Universidade Económica, há muitas, tantas quanto estrelas no céu. No fundo, será assim tão complicado? Com estes dois diplomas o lugar é meu.

Entetanto, lembrou-se de que talvez não fosse correcto ter três diplomas: dois era suficiente. Três “dava nas vistas”. Dois não, é mais verosímil do que um. Um pode ser mentira. Toda a gente tem um só.  Ninguém mente sobre dois diplomas. Não é pensável do ponto estratégico.

Candidatou-se.

O anexo publicou o resultado: L, mecanista geral e economicista, secretário adjunto chefe do ministério das pescas.

E foram felizes para sempre.

Despeço-me com amizade,

Pedro Braga Falcão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sete poemas

1. Ausência

A tua ausência arrefece
lentamente
o meu corpo.
Caminho sem chão.
Não sei como funciona
esta armadura.
Já não me pertence.

Desaprendi a ser
pela tua presença,
e a agonia invade,
por me saber
tão sem mim.

Mal consegues esconder
o andar desequilibrado.
E a alegria acanha-se
nos teus lábios.

Teria sido igual
se me tivesses deixado mais cedo.
Eu não seria mais.
E sou,
agora,
certamente menos.

 

 

2. 

O sorriso dos mortos
estende-se
em linhas finas sobre os rostos pálidos
prometendo descanso eterno.

(Abençoado anúncio do fim
que humaniza a existência)

Sorris porque sabes:
não sentirás mais
os tormentos
da solidão.

Entregaste
como a um velho amante
porque a vida
não quer mais o teu corpo gasto.

 

 

3. 

Em pequena descobri
que a alegria do mundo
se escondia
na banalidade dos milagres.
De coração aberto
absorvia os aromas
a brisa suave.

Mas as enxurradas
dilaceraram a alma nua
E o músculo palpitante
ficou pequeno e duro,
com pedras no espírito.

Voltar a amar as pequenas coisas
seria aceitar
que o mar bravo
traria à costa
mais do que conchas partidas.

 

4. 

Ensina-me a fazer Casa.
A pôr a mesa em ti,
para ti,
no olhar dos outros.

Não abraçarei qualquer sepultura fria
enquanto latejares na carne dos Homens.

Continuarei a procurar
o teu murmúrio
no vento que sopra.

 


5. 

Há uma praça no mundo
onde os vivos e os mortos
comungam.

À volta da mesa
parte-se o pão,
bebe-se vinho
e água da fonte.

Rufam tambores,
Soam as flautas
em harmoniosas melodias.

Celebram em festa,
a vida e a morte.

Quando a imensidão do mar
te imergir
não haverá mais
Tempo,
não haverá mais
Espaço.

Só uma praça
granítica
em comunhão,
enquanto os tambores
ao longe
silenciam o mundo
num último batimento.

 

6. 

Talvez porque não faça sentido
enlaçarmo-nos de outro modo.
Por dentro chega.

Tenho as entranhas enlaçadas,
Intrinsecamente minhas,
Teimosamente presas a ti.

Continuo inteira.
Talvez mais inteira.

Coubeste em mim
Bem, demais talvez.

O meu corpo não te estranhou,
Reconheceu-te.
Não sei bem de onde.

Começo a pensar que o coração de criança
Se afeiçoou a ti, teimosamente.

A culpa é dele.
Mesmo enrijecido,
Continuou a bater.

Reconheceu-te desses dias de orvalho.
E como elefante que não esquece,
Baralhou tudo,
Ligou-me por dentro.
E fora de mim, 
em carne,
continuou a bater
por ti.

 


7. Na ponta dos dedos

Sempre enrolaste cada cigarro
com a ponta dos dedos,
como quem ama
profundamente
o que mata.

Na tua insaciável fome de vida
devoraste a ponta dos dedos.

Imagino o fumo,
a cada travo,
a lambuzar-te as vísceras,
E pergunto
se também habito dentro de ti.

Também me amas
porque te mato aos poucos?

Preocupa-me este cordão umbilical
de sentimentos,
sem palavras,
que um dia nos uniu.
Irreal e etéreo.

Somos feitos de carne
e devoramos
as pontas dos dedos do mundo.
Mas quando as almas se cruzam,
o tempo suspende as marés.
Paira sobre nós uma canção de embalar
hipnótica.

Talvez porque quando te olho
uma criança pequena
no fundo do poço
sorri,
abraça-me.
E a minha alma reencontra
abrigo
na pureza da tua.


A mulher dos aforismos

Aquela mulher exalava aforismos como quem prega aos peixes. Era-lhe natural. Uma necessidade que se fazia de respostas, da boca ou do corpo, e que à surdez das pessoas quotidianas, só eu, feito peixe, a ouvia. E tomava nota. 

Tal como o bom pregador, preparava o discurso: Vieira com estudos de retórica, de língua e de exegese. Ela, diriam os académicos, estudou em Nag Hammadi. Também como o jesuíta, para além de todo o estudo, observa com atenção clínica os seus paroquianos. E responde consoante. Para quem esteja atento.

Certo dia comentava eu que a paisagem onde estávamos me fazia lembrar a minha última viagem. E recordava-a com a mesma melancolia de um casamento feliz do qual se enviuvara. Não sabia, no entanto, destrinçar a razão de tamanha felicidade guardada na memória. Se da maravilhosa companhia feminina, já devidamente polida por Safo na lembrança; se do sentimento de fuga do dia-a-dia e da ilusão revolucionária que a sensação de liberdade de duas semanas proporciona antes da contra-revolução; se dos amigos que lá revi; ou da paisagem, essa que lá, tanto como aqui, fazia a ponte entre essa realidade de meia lua e aquela que agora habitava.

"É por isso que não gosto de viajar!", interrompeu ela após o meu silêncio se ter prolongado no olhar lânguido da paisagem. 

Retorqui, instigado pela fundamentação do raciocínio. Sem nunca perder a calma que a caracterizava, prosseguiu.

"Tenho tudo aqui. Por isso escolho onde moro. Escolho a paisagem."

Desmontou-me o raciocínio com a mesma força com que me dissolvia a memória. Não para a apagar. Mas pela coragem de a trocar pela realidade.

"Às vezes tenho vergonha!", disse num sorriso fugidio de embaraço.

"De escolher?"

Fi-la convulsar o corpo todo outra vez. Desta vez sem lhe tocar. Mas não passou de um riso curto e sincero.

"Não! De dizer que não gosto de viajar!"

Nem só aforismos vive o homem, deixava estrondosamente implícito nos seus sermões! Vieira sabia do que falava. Também de partilhar! De vivências. Mesmo desconhecendo a obra um do outro, pareciam por vezes um decalque. Contava-me: 

"Às vezes estou tão excitada que basta tocarem-me nas mãos, apertar-mas com força, e tenho um orgasmo quase instantâneo!"

"A sério? Só de te apertar as mãos?"

"Estavas desatento!"

Fez-se um silêncio risonho. 

"De facto, da forma como falas com o corpo, não pode ser surpresa!"

Corando e apontando o olhar para o chão, respondeu com o tom de uma menina pequena:

"Não dá mesmo para enganar, pois não?"

"Falas como se isso fosse mau..."

"É que assim sinto-me sempre nua!"

"Só os semelhantes se reconhecem entre si."

Agarrou-me no queixo, com modos de quem afaga a barba em tons de volúpia e deu-me um beijo demorado. Não disse mais nada.

Continuava dividido entre o amor que fizéramos por outros mundos de orgasmos cósmicos e o querer dar estado material a esse edifício etérico. A topografia facial detalhava-me as angústias escritas nas palavras do rosto. E ainda que o manto de mento esconda alguma parte, os olhos reflectem para fora a escuridão que vai lá dentro. Desta vez decidiu usar a voz:

"Gostava tanto, tanto, tanto, mas tanto, de fazer amor contigo, que vou dedicar-me a outras actividades corpóreas, como tomar banho e comer!"

Abraçou-me com o mesmo fogo venusiano de sempre que me acende a raiz, levantou-se e foi nascer como Afrodite.

1984, modos de escrever de George Orwell

A vigilância generalizada, sintetizada nos conceitos Big Brother ou Big Data, inquieta muita gente. A mim também, sobretudo porque pode desbaratar o anonimato da minha vida privada. George Orwell, um dos pais fundadores das modernas distopias geradas nas sociedades de informação, acusado por muitos de ser um anti-soviético primário, sempre se opôs, é bom dizê-lo, ao capitalismo e aos totalitarismos de direita, lutou, aliás, na guerra civil espanhola, ao lado dos comunistas, tendo até sido ferido por uma “bala fascista”. Mas essa experiência mostrou-lhe que o maniqueísmo fascismo/comunismo era incrivelmente redutor. Por exemplo, em 1937, viu como os comunistas anarquistas de Barcelona foram abatidos pelos comunistas estalinistas, sob o pretexto de que faziam “objectivamente” o jogo dos franquistas. Foi isso que o levou a analisar mais cuidadosamente as técnicas de manipulação dos totalitarismos nazi e soviético (monstruosos mas também sedutores, só assim, aliás, se entende a sua perigosidade), verificando que o uso de tecnologias de comunicação de massas elevava a outro patamar o poder de manipulação, capaz agora de influir rapidamente na vida de milhões de pessoas, invadindo facilmente o lar de cada família, a intimidade de cada indivíduo. Inventando-se mesmo línguas burocráticas completas (a célebre Novilíngua de 1984, extirpada das suas subtileza e complexidade para melhor alienar os falantes) capazes de dar verosimilhança às mentiras produzidas pelos sistemas de propaganda. Assim, além de querer a submissão do povo, qualquer pensamento-único deseja também o conformismo, isto é, a aceitação acrítica do projecto político que é propagandeado. Já não se trata apenas de “pôr na linha” comportamentos recalcitrantes, pretende-se uma mutação interna da sensibilidade e do pensamento. Transformar o “faço isto porque sou obrigado” num “faço, penso e sinto isto porque, em boa verdade, eu o quero”. Um amor fati pífio. Isto mesmo vai sendo expresso nos ensaios e artigos que Orwell escreve durante a Segunda Grande Guerra, mas só com 1984 tirará todas as consequências do que viu e pensou. A ficção revelou-se-lhe o melhor meio para expor o que os Ocidentais pareciam incapazes de perceber. A inspiração veio também de outro livro distópico, o Nós (Мы,1921, URSS) de Yevgueny Zamyatin, onde um sistema racional extremado procura controlar tudo, fazendo tábua rasa das liberdades individuais em favor de um igualitarismo e conformismo irreprimíveis. E talvez possamos também evocar o panopticon de Bentham (séc. xviii), esse edifício que permite observar secretamente; no caso de 1984, para lá dos mecanismos tradicionais de controlo, um écran oculto examina cada um, até ao mais íntimo, em sua casa, uma omnipresença asfixiante. A finalidade da vigilância completa será a de condenar/eliminar todas as heterodoxias, levando os espíritos livres a uma nostalgia kamikaze. Sendo que, para Orwell, o pior estava, contudo, na destruição da verdade objectiva, arruinando-se simultaneamente o passado e o futuro, pilares essenciais do sentido não manipulado do presente. Um esmagamento impiedoso da liberdade individual, o maior dos bens para Orwell, e da realidade, permitindo a vitória da ilusão. Na vida real (que significa isto?), Orwell antagonizou-se com elementos do PEN Club de Londres em 1945 devido a controvérsias sobre a importância da liberdade de expressão, que muitos defendiam dever ser de geometria variável, criticável quando, por exemplo, era praticada na Índia, mas aceitável se tivesse o objectivo de emancipar o proletariado. Pedia-se na altura aos intelectuais que se autocensurassem por um “breve período de tempo”, até que a Revolução vencesse e o mundo fosse uma grande e magnífica cantata. 

A casa e a horta de Orwell na ilha de Jura, 

A casa e a horta de Orwell na ilha de Jura, 

A narrativa pessimista de 1984 pretendia alertar, conjugar resistências, evitar aquilo que descrevia. Hoje, há quem julgue que o Big Data faz o Big Brother parecer um brinquedo inofensivo, mas há também quem veja quer o livro quer o histrionismo dos anarcas anti-vigilância como um exagero crítico bastante irrealista. Continuamos no jogo agónico entre previsões apolíneas e dionisíacas, optimistas e pessimistas, respectivamente. Um jogo sem verdadeiro vencedor, porque cada um utiliza as suas próprias regras. É por isso que quero desviar-me dessa polémica e convocar nas próximas linhas um elemento importante do MODO DE ESCREVER 1984. Acompanhado da tese sobre a relevância do sítio onde se escreve, da envolvência humana e, por exemplo, da saúde física para o resultado da escrita. Eu, mais um exemplo, sem algum gato por perto tenho sempre mais dificuldade em pôr correctamente as vírgulas (haverá tal coisa? Talvez não, mas o fascínio pela precisão lexical é muito intenso).

Em Maio de 1946, Orwell vai viver com o filho Richard para a ilha Jura, ao largo da Escócia, arquipélago das Hebrides, numa casa isolada (ainda que passasse algumas temporadas em Londres), imitando, mutatis mutandis, Henry Thoreau. O objectivo da autocracia foi escrever 1984, como se esta narrativa ficcional necessitasse de um isolamento especial para a concentração profunda no processo de escrita. No entanto, pelo que nos conta no seu domestic diary (vol. III), Orwell sentia-se demasiado ocupado pela caça e o cultivo da horta, confessando ter dificuldade em escrever algo que o satisfizesse. De qualquer forma, a insularidade, ainda que entrecortada, permitiu-lhe concluir um esboço de 1984 no Outono de 1947. A ilha, a horta e os tiros tinham dado frutos. Mas uma inflamação dos pulmões, rapidamente diagnosticada como tuberculose, obrigaram-no depois a frequentes hospitalizações e a uma luta “contra a morte” para terminar o opus magnum (apesar do já relativo sucesso de Animal Farm, publicado em 1945 após várias recusas). A versão definitiva do texto ficou pronta em Novembro de 1948 (inspiração para o título), pouco depois, Janeiro de 1950, findava a sua vida.

Casa de Orwell na ilha de Jura

Casa de Orwell na ilha de Jura

Assim, Nineteen Eighty-Four foi um livro escrito por um solitário, durante algum tempo livreiro (Booklover’s Corner), obrigando-se a fitar nos olhos o fim da literatura, e corrigido por um convalescente. Não quero abusar na relação entre o modus vivendi do escritor e o carácter distópico da obra. É possível, sem dúvida, escrever uma utopia tenebrosa vivendo hedonisticamente numa constelação de amigos e futilidades luxuosas. Mas estranho que Orwell, até ali de uma vitalidade quase heróica (lutou contra o franquismo, defendeu no terreno os mineiros do norte da Inglaterra, foi um cronista prolífico...), sem, contudo, nunca perder um halo de pessimismo, se tenha empenhado, exaltando uma fantasmagoria mortífera, em narrar uma história sobre o definhamento irredutível da liberdade individual, o apagamento da verdade objectiva, a censura da alegria de viver, o aniquilamento das emoções festivas... Se não houve uma relação causa-efeito simplista entre lugar e vitalidade do autor e tipo de obra, acredito pelo menos numa influência importante. Talvez até, ainda que parcialmente, uma influência procurada, isto é, projectando escrever um livro niilista, Orwell buscou o isolamento, afectivo e social, que lhe desse o tom existencial certo para o fazer. A meu ver, mais um exemplo da interdependência entre vida e obra (por isso "só interessa o que se escreve com o próprio sangue"), que, transformado num lema fácil de usar, daria: “adequa a vida à obra que queres escrever”. 

O interruptor silencioso

Acende e apaga. Apaga. Se toca. Sem qualquer ruído. Um rosto ligado com a gaze da loucura. Plano aumentado. O olhar se aguenta, eléctrico – indo, vindo, desavindo, à extrema do lugar máximo permitido pela infra-estrutura do corpo. Se apaga o ruído. Apaga.   

Uma forte dentada, na única bóia de salvação à vista, põe à mostra uma primeira espessura de borracha negra, uma teia de corda branca ainda à mão da fúria, outra espessura de borracha negra, acabando, outra teia menina-do-olho intocada pela lâmina da acção. Acende e apaga. Um qualquer se acende, se se toca. Pedra circular, onde o buraco da mó é esvaziado do sentido motor, empalada até ao limite da escuridão. Sem fim, se toca. Acende e apaga. Apaga.    

Um pedaço de chapa fora de si, recortado sobre a noite, iluminando-a com a ferrugem dos seus tempos mortos. Uma família de aborígenes, um olhar que não aguento, de quem me não lembro digo para mim; fotografia datada no verso, pela mesma mão que os afasta para lá da memória; seus nomes e o meu são mesmos daquilo que desconheço de vista. Acende e apaga. Sem se tocar, ainda assim é um ruído que se acende. Apaga.  

Datas várias, dias seguidos, uns atrás dos outros riscados a lápis, uma conversa ferida aberta sobre a pele escura das palavras. Estou assim, de plantão ao que fica de pé por dizer. Acende e apaga. Apaga.  Os motores coração de tudo a funcionar à mostra de todos. Na ponta da língua, um arrazoado de sentidos disformes, multiformes, múltiplos de zero. Todos os instrumentos de corda, banidos neste dia de calendário. Se tocam. Rápido, uma vez e só. Se apagam. Na parede de material dúctil, se gravam a punho datas de nascimento das coisas já esquecidas, mortas e enterradas, de volta à superfície deste mundo faz-de-conta. O branco tem todas as cores, e nenhuma. No final de qualquer número na parede escrevo INSTÁVEL.  

De encontro à parede INSTÁVEL. Esticar o cordel à primeira fiada, de propósito desviar um nada à linearidade, a puxar ao sentimento do que se traça de INSTÁVEL. Sou de parte INSTÁVEL. Se toca. E sabe. Apaga. Acende e apaga.  

A tinta que há-de cobrir a superfície construída, toma a vida própria do gesto, se manifestando em curvas impróprias para a Grande Velocidade do Verbo. Nunca se tocando. Agora. Toca. Acende e apaga. Apaga.  

Rasga-se, na alvenaria da parede imagética, um vão, sem pressa; se abre aí um céu de poucas nuvens, marcado pela pauta das linhas de Alta Tensão.    

A serpente é avessa às esquinas; toma o lugar do morto às minhas costas, segurando, levando à boca, a máscara desfigurada de expressões minhas. Por cada escama que larga, é uma divisão que se ilumina de sentido. E tudo o que foi dito lá para trás, SE APAGA POR SI. Pois. A loucura é corpo que tem luz própria.     

Chego sempre depois da hora da visita. Depois. Alguma conversa com o porteiro. Conversa. De malucos. Estamos fartos, eu e ele, de manter sempre aquela mesma conversa. Atrasado. Diz-me «ENTRA» e «ALGUÉM QUE TE CARREGUE, NÃO EU, SEU POBRE DIABO». Não se importa e não quer saber, apenas pede que estacione o automóvel lá para os fundos, fora da vista de todos. Para quê tudo isto se não me demoro? Junto ali ao muro, empoleirado numa árvore, está meu pai, se segurando numa só mão a outra mão agarrando um saco de plástico, apanhando fruta da época que bom tempo aqui fora o permite. Sim. O enfermeiro deixa. Só por hoje. Hoje. É dia de vir aqui, visitar meu pai no manicómio.   

Luís Chacho