1984, modos de escrever de George Orwell
/A vigilância generalizada, sintetizada nos conceitos Big Brother ou Big Data, inquieta muita gente. A mim também, sobretudo porque pode desbaratar o anonimato da minha vida privada. George Orwell, um dos pais fundadores das modernas distopias geradas nas sociedades de informação, acusado por muitos de ser um anti-soviético primário, sempre se opôs, é bom dizê-lo, ao capitalismo e aos totalitarismos de direita, lutou, aliás, na guerra civil espanhola, ao lado dos comunistas, tendo até sido ferido por uma “bala fascista”. Mas essa experiência mostrou-lhe que o maniqueísmo fascismo/comunismo era incrivelmente redutor. Por exemplo, em 1937, viu como os comunistas anarquistas de Barcelona foram abatidos pelos comunistas estalinistas, sob o pretexto de que faziam “objectivamente” o jogo dos franquistas. Foi isso que o levou a analisar mais cuidadosamente as técnicas de manipulação dos totalitarismos nazi e soviético (monstruosos mas também sedutores, só assim, aliás, se entende a sua perigosidade), verificando que o uso de tecnologias de comunicação de massas elevava a outro patamar o poder de manipulação, capaz agora de influir rapidamente na vida de milhões de pessoas, invadindo facilmente o lar de cada família, a intimidade de cada indivíduo. Inventando-se mesmo línguas burocráticas completas (a célebre Novilíngua de 1984, extirpada das suas subtileza e complexidade para melhor alienar os falantes) capazes de dar verosimilhança às mentiras produzidas pelos sistemas de propaganda. Assim, além de querer a submissão do povo, qualquer pensamento-único deseja também o conformismo, isto é, a aceitação acrítica do projecto político que é propagandeado. Já não se trata apenas de “pôr na linha” comportamentos recalcitrantes, pretende-se uma mutação interna da sensibilidade e do pensamento. Transformar o “faço isto porque sou obrigado” num “faço, penso e sinto isto porque, em boa verdade, eu o quero”. Um amor fati pífio. Isto mesmo vai sendo expresso nos ensaios e artigos que Orwell escreve durante a Segunda Grande Guerra, mas só com 1984 tirará todas as consequências do que viu e pensou. A ficção revelou-se-lhe o melhor meio para expor o que os Ocidentais pareciam incapazes de perceber. A inspiração veio também de outro livro distópico, o Nós (Мы,1921, URSS) de Yevgueny Zamyatin, onde um sistema racional extremado procura controlar tudo, fazendo tábua rasa das liberdades individuais em favor de um igualitarismo e conformismo irreprimíveis. E talvez possamos também evocar o panopticon de Bentham (séc. xviii), esse edifício que permite observar secretamente; no caso de 1984, para lá dos mecanismos tradicionais de controlo, um écran oculto examina cada um, até ao mais íntimo, em sua casa, uma omnipresença asfixiante. A finalidade da vigilância completa será a de condenar/eliminar todas as heterodoxias, levando os espíritos livres a uma nostalgia kamikaze. Sendo que, para Orwell, o pior estava, contudo, na destruição da verdade objectiva, arruinando-se simultaneamente o passado e o futuro, pilares essenciais do sentido não manipulado do presente. Um esmagamento impiedoso da liberdade individual, o maior dos bens para Orwell, e da realidade, permitindo a vitória da ilusão. Na vida real (que significa isto?), Orwell antagonizou-se com elementos do PEN Club de Londres em 1945 devido a controvérsias sobre a importância da liberdade de expressão, que muitos defendiam dever ser de geometria variável, criticável quando, por exemplo, era praticada na Índia, mas aceitável se tivesse o objectivo de emancipar o proletariado. Pedia-se na altura aos intelectuais que se autocensurassem por um “breve período de tempo”, até que a Revolução vencesse e o mundo fosse uma grande e magnífica cantata.
A narrativa pessimista de 1984 pretendia alertar, conjugar resistências, evitar aquilo que descrevia. Hoje, há quem julgue que o Big Data faz o Big Brother parecer um brinquedo inofensivo, mas há também quem veja quer o livro quer o histrionismo dos anarcas anti-vigilância como um exagero crítico bastante irrealista. Continuamos no jogo agónico entre previsões apolíneas e dionisíacas, optimistas e pessimistas, respectivamente. Um jogo sem verdadeiro vencedor, porque cada um utiliza as suas próprias regras. É por isso que quero desviar-me dessa polémica e convocar nas próximas linhas um elemento importante do MODO DE ESCREVER 1984. Acompanhado da tese sobre a relevância do sítio onde se escreve, da envolvência humana e, por exemplo, da saúde física para o resultado da escrita. Eu, mais um exemplo, sem algum gato por perto tenho sempre mais dificuldade em pôr correctamente as vírgulas (haverá tal coisa? Talvez não, mas o fascínio pela precisão lexical é muito intenso).
Em Maio de 1946, Orwell vai viver com o filho Richard para a ilha Jura, ao largo da Escócia, arquipélago das Hebrides, numa casa isolada (ainda que passasse algumas temporadas em Londres), imitando, mutatis mutandis, Henry Thoreau. O objectivo da autocracia foi escrever 1984, como se esta narrativa ficcional necessitasse de um isolamento especial para a concentração profunda no processo de escrita. No entanto, pelo que nos conta no seu domestic diary (vol. III), Orwell sentia-se demasiado ocupado pela caça e o cultivo da horta, confessando ter dificuldade em escrever algo que o satisfizesse. De qualquer forma, a insularidade, ainda que entrecortada, permitiu-lhe concluir um esboço de 1984 no Outono de 1947. A ilha, a horta e os tiros tinham dado frutos. Mas uma inflamação dos pulmões, rapidamente diagnosticada como tuberculose, obrigaram-no depois a frequentes hospitalizações e a uma luta “contra a morte” para terminar o opus magnum (apesar do já relativo sucesso de Animal Farm, publicado em 1945 após várias recusas). A versão definitiva do texto ficou pronta em Novembro de 1948 (inspiração para o título), pouco depois, Janeiro de 1950, findava a sua vida.
Assim, Nineteen Eighty-Four foi um livro escrito por um solitário, durante algum tempo livreiro (Booklover’s Corner), obrigando-se a fitar nos olhos o fim da literatura, e corrigido por um convalescente. Não quero abusar na relação entre o modus vivendi do escritor e o carácter distópico da obra. É possível, sem dúvida, escrever uma utopia tenebrosa vivendo hedonisticamente numa constelação de amigos e futilidades luxuosas. Mas estranho que Orwell, até ali de uma vitalidade quase heróica (lutou contra o franquismo, defendeu no terreno os mineiros do norte da Inglaterra, foi um cronista prolífico...), sem, contudo, nunca perder um halo de pessimismo, se tenha empenhado, exaltando uma fantasmagoria mortífera, em narrar uma história sobre o definhamento irredutível da liberdade individual, o apagamento da verdade objectiva, a censura da alegria de viver, o aniquilamento das emoções festivas... Se não houve uma relação causa-efeito simplista entre lugar e vitalidade do autor e tipo de obra, acredito pelo menos numa influência importante. Talvez até, ainda que parcialmente, uma influência procurada, isto é, projectando escrever um livro niilista, Orwell buscou o isolamento, afectivo e social, que lhe desse o tom existencial certo para o fazer. A meu ver, mais um exemplo da interdependência entre vida e obra (por isso "só interessa o que se escreve com o próprio sangue"), que, transformado num lema fácil de usar, daria: “adequa a vida à obra que queres escrever”.