Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim
/[para o Miguel F.]
Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim
num livro meu na fnac e foi sentar-se à sombra
de um corredor e leu as minhas estórias e disse-me
isso mesmo com umas palavras hesitantes no gmail
e a alegria que senti não foi além de uns pontos
de exclamação em socorro da memória atrapalhada
foi pelos inícios dos anos oitenta na assírio & alvim
da estação da cp do rossio em lisboa onde poetas
se afadigavam na procura dos corpos e os comboios
para sintra os levavam aos ombros macios dos começos
foi aí na a&a que todos os dias cavalgávamos os livros
e depois subíamos ao bairro pelas escadinhas do duque
foi lá que perdi memória outros perderam só a noite
ou uma espécie de insensibilidade dura os salvou
eu continuo a voltar sempre um dia antes do outro
sem que os fios da memória se fixem de uma vez por todas
eterno recomeço que apenas a espaços se parece com a vida
mas o teu email querido miguel cravou fundo uma estaca
não sei se amanhã daqui a horas ou dias desaparecerá
essa pele que agora parece a dos meus vinte e tal anos
as páginas novas dos livros novos as linhas dos rostos
que afloram à tona do dia os pequenos gestos tão sós
os sentimentos sem corpos os lugares desocupados
como as palavras que sem sabermos nos mentiam
ah se eu soubesse então que as minhas palavras futuras
teria também de as varrer do sarro que nos outros eu via
crescer disfarçadas com o rancor a romper as lantejoulas
tão fácil que era passar pontes a voar e sorrir de lábios
rasgados e a dor a ficar aninhada numa puta do gingão
ou num banco de jardim na madrugada fria do cais
havia muito aço frio naquela maldita estação do rossio
e não sei se terá ficado estes anos a embotar o espaço
e o tempo que se espraiam entre os que se davam
o certo é que morreram alguns de nós
toupeiras inúteis.
Inédito, Julho de 2012