A persistência das Imagens
/1. Talvez haja um momento, não necessariamente pensado pelos futuristas com a sua utopia de uma mecanização do “humano” como uma ainda sua possível extensão (“declaramos sem sorrir que na carne do homem dormem asas” e que ele “será dotado de órgãos inesperados, órgãos adaptados às exigências de um ambiente feito de choques contínuos”, proclama Marinetti no manifesto O Homem-Multiplicado e o Reino da Máquina)[1], um momento, afinal, em que as máquinas, os espelhos, os diferentes dispositivos, de tanto se reflectirem – de tanto pensar ou ser obrigados a trabalhar as propriedades da sua matéria e processos -, se tornam auto-suficientes e acabam por produzir, a partir de si mesmos, as suas ideias, emoções e imagens.
Nos anos 20 do século parece que passado – quando o mundo, dizia-se, era “moderno” -, num contexto em que se vivia uma relação extrema com o poder de abertura e de revelação do sujeito e do “humano” pelo real, os objectos e a máquina (o pintor, “muralista” e ocasionalmente cineasta, Fernand Léger, anunciava em 1924 “ a vinda [l’avène-ment] do objecto” que constituía, para ele, “o problema plástico da actualidade”)[2], essa possibilidade (oportunidade?) era pensada (vivida) como o devir-outro, in(h)umano, do sujeito enquanto parte (engrenagem) da instalação material das coisas (real) – do seu Dasein não só físico (“natural”) mas também tecnológico, traduzisse-se isso num devir-cosmos ou máquina (o que, muitas vezes, era o mesmo).
Então, sem pestanejar – porque o seu olhar já se pretendia o da câmara -, Dziga Vertov, por altura de O Homem da Câmara de Filmar (1928), afirmava que o “caos da vida se esclarecia à medida que [o operador] a observava e filmava” [285] e que o “Cine-Olho”, enquanto “união da ciência com o documentário”, teria a faculdade de proceder “à descodificação comunista do real,de modo a mostrar a verdade no ecrã [sem masca-ra]”[41/2][3]. Ou seja, para ele, equação sem resto/ rasto, Kino Glaz= Kino Pravda.
Mas também para Jean Epstein, logo em 1921, a câmera de filmar (a Bell-Howell) constituía um verdadeiro “cérebro de metal” [38], capaz de “registar [gravar] o pensamento”, de o “ampliar” e de o “criar mesmo onde ele não existia” [115] (“insidiosamen-te o cinema radiografa[-nos], pela-nos até ao osso, às nossas ideias mais secretas que ele revela” [115])[4].
2. É esse, ainda, o sentimento de “inquietante estranheza” (unheimliche [Freud]) que sentimos face às instalações fotográficas de Gregory Crewdson, sejam as da série Twilight (1998/2002) ou as das séries Dream House (2002) e Beneath the Roses (2003/5), séries em que utiliza actores (Julianne Moore, Tilda Swinton, Gwyneth Paltrow, William Macy, Philip Seymour Hoffman) em cenários com referência mais explícita ao cinema (de realizadores como Douglas Sirk, Nicholas Ray ou Todd Haynes, ou a géneros/ modos como o “cinemascope-melodrama”).
Crewdson realiza (produz?) aquilo que designa por “realist landscape photographs”, fotos(-quadros) de situações=ambientes=atmosferas que ele considera “puras imagens”, o mais possível “transparentes”, sem “grão” ou efeitos de “flou” (“there’s no blurring, no grain”), e de que ele acentua a bidimensionalidade=superfície (“I just want a pure image”, afirma)[5].
Assim, se a “realidade” – ela própria mais um efeito de respeito dos códigos/ conotações dos signos (ie. construção) do que “reprodução”/ “imitação” -, substituindo-se a qualquer ideologia / ontologia do “referente” (das “coisas”), é como que o fantasma (directo) da Fotografia [Maia: 14], então, dada a evacuação=erradicação do referente, o imaginário acaba por constituir a 3D=profundidade do trabalho sobre as imagens (enquanto “simulacros”) de Crewdson e a referência ao Melodrama (ao fim e ao cabo, um “semelhável” do real, a sua “tipifização”, arrumação em “categorias”) tanto o suporte/ ecrã de projecção e de (re)efabulação desse processo imaginário, como o seu material de base e a sua Iconografia – já que fixa temas (situações), figura-os e imagina-os, dá-lhes formas e plastifica-os como “imagens” com o estatuto (quase) directo de “clichés”= ar-quétipos=lugares-comuns=ícones.
“Single-frame movies” (Crewdson), estas imagens, devido ao efeito de condensação/ concentração na sua bidimensionalidade=superfície da “profundidade” imaginária, narrativa e plástica que as funda e de que emanam, adquirem o estatuto de alegorias=hieróglifos ( a re/interpretar, des/codificar pela visão).
A questão que aqui se coloca é a de como considerar esse trabalho de re-animação/ re-activação das imagens.
Trata-se de recriar a “ilusão de real” (ou a credibilidade da sua representação) ou de, é o que pensamos, de um modo mais performativo, construir um tipo próprio de percepção?
Mais instalações do real (vejam-se as fotos do seu próprio processo de produção) do que “representações” (ou mesmo mera reprodução de códigos), nelas, a dimensão de construção=encenação – utilizando, nomeadamente, como materiais/ peças, a iconografia (sempre de 2º ou maior grau) do cinema – visa produzir, pela imagem, o próprio “real” – dito de outro modo, um efeito emocional=passional da ordem da “realidade” (como que um seu “análogo” diferido). Como dizia Godard (citado por Abbas Kiarostami), não tanto o “efeito de real” como a realidade desse efeito (Godard: “o que se vê no ecrã não está vivo, o que se passa entre o espectador e o ecrã é que é vivo”)[6].
Daí, pensamo-lo, uma concepção de Fotografia – e talvez mesmo de Melodrama (ele próprio uma fotografia “retocada” do real já que, de novo Godard, “a realidade é um filme mal realizado”) – entendida sobretudo como “performatividade”, em que todo o processo de encenação=instalação fixa o proceder=fazer (por isso se usam actores) da sua rodagem enquanto actualização, em acto, do seu ser (porque é um proceder) que é o do cinema (no sentido em que Jacques Rivette afirmava que qualquer filme, ou o próprio cinema, constituía sempre um documentário sobre as suas condições de rodagem).
Olhemos agora para a foto da série Dream House com Julianne Moore (em Beneath the Roses há outra foto com ela, sentada à mesa com um adolescente, num cenário rústi-co, típico do “americana”) (IMAGEM 1).
O que ressalta antes de mais à vista é o paradoxo da “iluminação” que evoca os exercicios das várias versões de L’Empire des Lumières de Magritte: aqui, o paradoxo de um excesso de luz(es) (a do dia, a reflectida na parede, a artificial de um candeeiro aceso) que parece querer exluir da foto qualquer resto de sombra/ matéria/ noite (de qualquer modo presente na coloração crepuscular da paisagem, apercebida de uma janela, ao fundo).
Uma luz, portanto, paradoxal, (inter)medial e irreal (impura), que situa a foto numa ténue linha entre a bidimensionalidade (sem grão) do “quadro” e uma profundidade (de sombra, desolação, massa) que ainda disputa o “sentido” à imagem: a determinação do seu stimmung.
Desse combate, tensão, entre a luz e a sombra, o claro (a transparência diáfana) e o escuro (a matéria), sobram (restam?) dois corpos. Um, o masculino, irremediavelmente perdido (no sono e na zona de sombra), o outro, o feminino, o de Julianne Moore, indeciso - numa situação evocadora de Safe mas talvez trabalhada pelo “pathos” (crise) sexual de Far from Heaven (filmes, de 1995 e 2002, de Todd Haynes).
Ele é como que o vértice, a aresta mole, a massa (entre forma e não-forma: informe?) de intersecção/ fractura que ainda ata (lhe dá nó e tapa) o espaço (“béance”) suspenso no seu ponto (extremo) de ruptura.
O corpo é o nó, a linha (de cozer) e a cesura, o 3D de uma foto, concepção de forma, que não se consegue (quer?) libertar do real e da memória (seja a do melo cinematográfico) que a funda.
Como se nela (e é importante que este corpo, pelas suas características, seja o de Julianne Moore ) as personagens femininas de Safe e de Far from Heaven se fundissem (apaticamente) para acordar, meio zombies e sonâmbulas, do pesadelo da representação que as constitui.
O que estas “fotos” de Gregory Crewdson nos dão a ver é esse ponto em que os sistemas e os dispositivos de formas (no sentido em que para Giorgio Agamben os dispositivos podem ser “indutores de subjectivações”)[7] adormeceram (se desligaram) e (re)co-meçam outra vez, dir-se-ia que automaticamente, a sonhar (ie. imaginar: produzir imagens), pensar.
Com efeito, sabêmo-lo agora, o “outro-lado” do “espelho”= da representação constitui afinal o seu lado de cá, captado de uma forma cega (quase sem ver) no momento em que as superfícies imaginantes/ reflectoras, encadeadas no seu delírio de “transparência” (especular ou teórica), se tornam amnésicas (catatónicas) ou se abismam.
E o que aqui temos, em última instância, é isso: o real (o corpo de Julianne Moore), tal como o cinema (ou a fotografia), já sem aparelhos (afinal, encorporando-os), que se reproduz (“clona”?) e se processa, continua, contendo em si a hipótese de um novo (inumano) princípio.
3. Ora essa situação de “reflexividade” do real e das imagens – de produção de imagens-ideias e de ideias-imagens (para Epstein, lembremo-nos, “ver”=”idealizar”, configurando-se as imagens como “ideias de ideias” ou, como ele escreve, uma (idée)2, “uma ideia raíz quadrada de ideia”[op.cit.(38)]) – encontramo-la hoje nesse dispositivo desmultiplicador e teorizador (quase instantâneo) do cinema que é a Televisão (e em particular algumas séries, mais ou menos recentes, americanas: de Twin Peaks, X Files e The Sopranos a Six Feet Under, Mad Men ou Homeland).
É o caso recente de The Americans (e aqui havia que, no lugar do “c”, grafar uma foice-martelo invertida), uma série concebida por um ex-agente da CIA, Joseph Weisberg, com Keri Russell e Mathew Rhys (1ª temporada, 2013, estando a 2ª prevista para Fevereiro deste ano).
Claro que a série, como o próprio nome o indica (como referimos, à letra), lida com a problemática de uma “falha” (original?) de representação (da sua aura, ícones) que obriga a um trabalho duplo de figuração: uma constante tentativa de reparação/ sutura das coisas (da sua “fraqueza” ontológica e de imagem) não pela reposição de uma “essência” (essa, se existiu, perdeu-se) mas da sua aparência ( superfície).
Na circunstância temos um casal de espiões russos infiltrados (uma espécie de “célula adormecida”) nas pregas da vida e do sonho americanos que se vêem obrigados a todo um trabalho da “imagem” (da sua “vraisemblablisation”), de modo a ser “convincentes”, tão ou mais “americanos” do que os próprios americanos (vd. o confronto da sua vida de família com a do agente do FBI, seu vizinho). Sintoma desse trabalho de “clona-gem”, deperdição da “essência” (do conteúdo / motivação dos comportamentos) no relativismo das circunstâncias (os anos Reagan), o modo como, sem julgamentos morais simplificadores (na linha do “thriller” político de John Le Carré e do cinema de espiona-gem dos anos 60 e 70), as acções dos espiões de um lado e do outro são postas em paralelo.
Mais interessante do que isso é a impressão – criada episódio a episódio (alguns dirigidos por realizadores experientes como John Dahl ou Jean de Sergonzac) – de que o “simulacro” não só “supera” como se “substitui” e se “superioriza” ao modelo (no duplo plano, moral e formal(imagético)).
É essa a “espessura”, o “grão” da imagem do modo como o casal de espiões russos refaz e recria – como nas fotos de Crewdson - as situações icónicas tanto do modo de vida ( o seu lado Mad Men sujo) (IMAGEM 2), como do cinema americano – aqui sempre mais perto do (hiper)realismo icónico de The Americans (1958) de Robert Franck e da estética do novo cinema dos anos 70 (Lumet, Pakula, Shatzberg, Penn mas também já Friedkin ou Scorcese).
Crewdson com grão ? A crise (crítica) da “teoria (“olhar sobre”)?
E, sim, a TV (convém começar a readmiti-lo) também é cinema – como o cinema sempre conteve em si algo como a possibilidade do dispositivo de presença no diferi-mento da televisão (pense-se, por exemplo, na paradigmática sequência da gravação do programa de TV em The Ladies Man de Jerry Lewis [1961]).
[1] Vd. Antologia do Futurismo Italiano, ed./trad. José Mendes Ferreira, Vega, 1979 [83].
[2] F. Léger, “Autour du Ballet Mécanique”, Fonctions de la Peinture, Gonthier, Médiations nº35, 1965 [164/7].
[3] Citamos (e traduzimos) de Kino-Eye – The Writtings of Dziga Vertov, ed. Annette Michelson, The University of California Press, 1984.
[4] Cf. Bonjour Cinéma (1921), Maeght éd., 1995. Não era outra a opinião de Vertov que, já no fim da sua vida, em 1958, ainda considerava que “ a sincronização a 100% do pensamento, palavras e imagens”, no cinema, era “surpreendente”: “É como se víssemos o invisível – víssemos pensamentos no ecrã”, escreve [149].
[5] Citamos da tese de mestrado em Estudos Comparatistas de Paulo Maia, <Bigger than Life> - Melodramas domésticos: entre o cinema de Hollywood e o olhar fotográfico de Gregory Crewdson, Faculdade de Letras de Lisboa, Dezb/2013 [13].
[6] A. Kiarostami, “Un film, cent rêves” (1995), A. Kiarostami – textes, entretiens, Cahiers du Cinéma, 2008 [121].
[7] Cf. Giorgio Agamben, Qu’est-ce qu’un dispositif?, Rivages-poche nº 569, 2007 [42].